sábado, 19 de dezembro de 2020

Papai Noel

O materialismo ganhou – qualquer pensador lúcido há de obtemperar e expor seus argumentos, por mais otimistas que sejam, concorde sob esta questão; e não haverá censores que, ao acusa-lo pessimista, não tenham sentido no próprio ser os efeitos nauseabundos de existir num mundo onde a hegemonia das paixões e o apego a matéria resultem nos efeitos mais nefastos. Todavia, se resiste o Espiritismo pelas letras vivas e atuais de Allan Kardec como um dos sustentáculos a apontar para a verdadeira realidade da vida, não será menos pungente que as expressões da prática espírita em território nacional façam débeis e estultos, iludidos pelas narrativas de além-túmulo e seus divulgadores de primeira hora, criando um ambiente falacioso, invulgarmente propicio a mitificação e ao simulacro, claramente ilegítimo, bastardo, inane.

O Espiritismo em sua missão de restaurador do significado original da palavra de Jesus de Nazaré é qual trombeta soprando num ermo de surdos, e ainda assim não é uma doutrina que carrega consigo senão uma mensagem muito antiga, promanada da realidade oculta das eras que dão a materialidade da vida humana seu lugar como um teatro de sombras, fugaz e ilusório – e ao Espírito centraliza-o como o ser real, imortal, perpétuo. Aqui e ali a História humana conta com expressões que resgatam, ainda que simbolicamente, tal verdade, senão no todo, em parte. Acercados que estamos do período natalino, em que a cristandade comemora o nascimento de Jesus de Nazaré, uma figura de destaque surge em peças publicitárias, e personificado em centros de comércio e consumo – o Papai Noel. Muitos espíritas o rechaçam, enquanto outros o adotam pela força condicionante das tradições.

Os que logram detrata-lo denunciam seu apelo mercantil de caráter adulterador do real sentido do Natal; enquanto os que o filiam veem-no como parte fundamental das comemorações do período, uma parcela lúdica de infantilidade inocente a resistir aos avanços cruéis tão próprios do mundo adulto. No entanto, a figura do Papai Noel está carregada de um simbolismo que no amago resgata e sustenta a doutrina de Jesus de Nazaré, aquela mesma recuperada pelo Espiritismo – retratado como um idoso trajando cores berrantes (costumeiramente vermelho) em meio a um deserto gelado (costumeiramente as paisagens típicas do círculo polar ártico), o assim chamado bom velhinho o que representa? Nas antiquíssimas tradições simbólicas a água, que sempre se comporta com absoluta horizontalidade independente do recipiente que a contenha caracteriza a matéria e por extensão o mundo material – os enregelantes desertos da terra não são justamente um sem fim horizontal de água em estado sólido? Não ofertariam as paisagens polares uma representação extrema da frieza e desolação material? E em meio a ela uma só criatura, tremeluzindo em vermelho como o fogo, que seja qual for sua fonte sempre mantém a verticalidade, desafia a inclemência de tal clima como a expressão indômita do Espírito, prosseguindo sempre adiante, alheio ao pior do que o cerca, focado a cumprir sua razão de ser, espalhando em cada lar uma parcela deste saber, representado pelo presente ofertado as crianças, à mente jovem mais apta a adquirir, conter e viver segundo a égide espiritualista. Em sua condição idosa e obesa, vem encarnar a imortalidade e ancestralidade do Espírito, bem como a fartura de sua condição, pleno de experiências e saberes, de Inteligência ampla e de potencial ilimitado para as realizações da existência.

Sob a superfície das aparências e dos adornos que foram atados a sua figura, o Papai Noel guarda na essência esta significação profunda, talvez um esboço palatável a mentalidade infantil, um ensaio preparatório para o caudaloso texto evangélico e a história de Jesus de Nazaré, tão cruel em seu epílogo. A alternativa para os que sustentam o prazer sádico de revelar a uma criança que o Papai Noel é uma invenção é ver se avizinhar da humanidade, década após outra, o frio domínio do materialismo, que subverte o símbolo do fogo espiritual em fogo das paixões e dos desejos, e o bom velhinho no mais inoxidável garoto-propaganda do consumismo sem freios, e absolutamente vazio. Que os espíritas não queiram associar-se ao catolicismo é compreensível e recomendável; mas nenhum pensador livre, estudante do verdadeiro saber, há de perder-se ao se associar as ideias, conceitos e símbolos que de fato repercutam a doutrina de Jesus de Nazaré, preservando-lhe o fundamento, exortando o Espírito em detrimento da materialidade acerba do mundo. Qual a melhor alternativa para os pequenos? Um Papai Noel ou nenhum?