sábado, 19 de dezembro de 2020

Papai Noel

O materialismo ganhou – qualquer pensador lúcido há de obtemperar e expor seus argumentos, por mais otimistas que sejam, concorde sob esta questão; e não haverá censores que, ao acusa-lo pessimista, não tenham sentido no próprio ser os efeitos nauseabundos de existir num mundo onde a hegemonia das paixões e o apego a matéria resultem nos efeitos mais nefastos. Todavia, se resiste o Espiritismo pelas letras vivas e atuais de Allan Kardec como um dos sustentáculos a apontar para a verdadeira realidade da vida, não será menos pungente que as expressões da prática espírita em território nacional façam débeis e estultos, iludidos pelas narrativas de além-túmulo e seus divulgadores de primeira hora, criando um ambiente falacioso, invulgarmente propicio a mitificação e ao simulacro, claramente ilegítimo, bastardo, inane.

O Espiritismo em sua missão de restaurador do significado original da palavra de Jesus de Nazaré é qual trombeta soprando num ermo de surdos, e ainda assim não é uma doutrina que carrega consigo senão uma mensagem muito antiga, promanada da realidade oculta das eras que dão a materialidade da vida humana seu lugar como um teatro de sombras, fugaz e ilusório – e ao Espírito centraliza-o como o ser real, imortal, perpétuo. Aqui e ali a História humana conta com expressões que resgatam, ainda que simbolicamente, tal verdade, senão no todo, em parte. Acercados que estamos do período natalino, em que a cristandade comemora o nascimento de Jesus de Nazaré, uma figura de destaque surge em peças publicitárias, e personificado em centros de comércio e consumo – o Papai Noel. Muitos espíritas o rechaçam, enquanto outros o adotam pela força condicionante das tradições.

Os que logram detrata-lo denunciam seu apelo mercantil de caráter adulterador do real sentido do Natal; enquanto os que o filiam veem-no como parte fundamental das comemorações do período, uma parcela lúdica de infantilidade inocente a resistir aos avanços cruéis tão próprios do mundo adulto. No entanto, a figura do Papai Noel está carregada de um simbolismo que no amago resgata e sustenta a doutrina de Jesus de Nazaré, aquela mesma recuperada pelo Espiritismo – retratado como um idoso trajando cores berrantes (costumeiramente vermelho) em meio a um deserto gelado (costumeiramente as paisagens típicas do círculo polar ártico), o assim chamado bom velhinho o que representa? Nas antiquíssimas tradições simbólicas a água, que sempre se comporta com absoluta horizontalidade independente do recipiente que a contenha caracteriza a matéria e por extensão o mundo material – os enregelantes desertos da terra não são justamente um sem fim horizontal de água em estado sólido? Não ofertariam as paisagens polares uma representação extrema da frieza e desolação material? E em meio a ela uma só criatura, tremeluzindo em vermelho como o fogo, que seja qual for sua fonte sempre mantém a verticalidade, desafia a inclemência de tal clima como a expressão indômita do Espírito, prosseguindo sempre adiante, alheio ao pior do que o cerca, focado a cumprir sua razão de ser, espalhando em cada lar uma parcela deste saber, representado pelo presente ofertado as crianças, à mente jovem mais apta a adquirir, conter e viver segundo a égide espiritualista. Em sua condição idosa e obesa, vem encarnar a imortalidade e ancestralidade do Espírito, bem como a fartura de sua condição, pleno de experiências e saberes, de Inteligência ampla e de potencial ilimitado para as realizações da existência.

Sob a superfície das aparências e dos adornos que foram atados a sua figura, o Papai Noel guarda na essência esta significação profunda, talvez um esboço palatável a mentalidade infantil, um ensaio preparatório para o caudaloso texto evangélico e a história de Jesus de Nazaré, tão cruel em seu epílogo. A alternativa para os que sustentam o prazer sádico de revelar a uma criança que o Papai Noel é uma invenção é ver se avizinhar da humanidade, década após outra, o frio domínio do materialismo, que subverte o símbolo do fogo espiritual em fogo das paixões e dos desejos, e o bom velhinho no mais inoxidável garoto-propaganda do consumismo sem freios, e absolutamente vazio. Que os espíritas não queiram associar-se ao catolicismo é compreensível e recomendável; mas nenhum pensador livre, estudante do verdadeiro saber, há de perder-se ao se associar as ideias, conceitos e símbolos que de fato repercutam a doutrina de Jesus de Nazaré, preservando-lhe o fundamento, exortando o Espírito em detrimento da materialidade acerba do mundo. Qual a melhor alternativa para os pequenos? Um Papai Noel ou nenhum?

sábado, 11 de julho de 2020

Ainda Sobre Jesus


1.
Ademais toda comoção quase nula causada pela existência mesma do presente blog, e de todo o seu conteúdo, o derradeiro artigo aqui publicado suscitou domésticas palestras acerca de um pormenor, no tocante a aparência que Jesus de Nazaré houvera de ter envergado quando se sua passagem entre as gentes da Palestina do século I. A descrição original atribuída ao historiador judaico-romano Flávio Josefo, e recuperada pelo polímata Robert Eisler é espantosa, principalmente pela completa disparidade que forçosamente leva ao leitor a comparação com toda a imagética cristã que retrata a figura de Jesus - homem caucasiano, de olhos e cabelos claros, alto e trajado de branco. A fim de ilustrar o artigo anterior, foram apanhadas parte das imagens confeccionadas por Carl Heinrich Bloch, artista dinamarquês do século XIX, que entre 1865 e 1879 executara 23 pinturas com cenas da vida de Jesus sob encomenda do Palácio de Frederiksborg; os originais ainda se encontram no castelo, que deixou de ser a residência da família real dinamarquesa para tornar-se o Museu de História Nacional da Dinamarca. Tais imagens foram, e ainda são largamente utilizadas em material promocional da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, os Mórmons. A reafirmar este padrão europeu atribuído a Jesus, há ainda a tal carta de Públio Lentulus, suposto político romano e, ainda, a quem se diz haver sido em existência passado o mentor de Chico Xavier, o Espírito obsessor Emmanuel - que se faça a justiça, o próprio Espírito reivindicou tal identidade para si, contando com o crédito extenso de grande parte do ilegítimo movimento espírita nacional. Entre esta última, considerada uma falsificação medieval, e as imagens confeccionadas pelos pintores ao longo dos séculos não há distinções visíveis, senão similaridades - para ressaltar a divergência entre esta e aquela atribuída a Flávio Josefo, vale enxertar a descrição do historiador à apreciação:

Naquela época, também, apareceu um certo homem (de mágico poder), se é permitido chamá-lo de homem, a quem certos gregos chamam de filho de Deus, mas seus discípulos o chamam de verdadeiro profeta, capaz de ressuscitar os mortos e curar todas as doenças. Sua natureza e sua forma eram humanas (homem de aparência simples, idade madura, baixa estatura, três côvados de altura, corcunda, de rosto comprido, nariz comprido e sobrancelhas unidas para espanto de quem o veja, com cabelo escasso, mas separados no meio da cabeça à maneira dos nazarenos, e com barba subdesenvolvida).

Em verdade, para o Espiritismo pouco causa a aparência que se deseja atribuir a Jesus - mas certo critério de bom senso se espera haver do estudioso, que não recusa o proveito que toda espécie de saber lhe acresce ao progresso próprio, para concluir que há qualquer cousa de aberrante na imagem classicamente imputada a Jesus. Dado conhecimento, mesmo que superficial, da história das regiões do mundo, dos povos que as habitam e habitaram, das correntes migratórias ao longo dos séculos e milênios pode resultar em concordar que um Jesus caucasiano seria estranho - e mais estranho que tal aparência em dissonância a seus pares não fora notada nos Evangelhos, menos ainda por Josefo que é, sob concordância unânime dos acadêmicos, oficialmente a mais antiga descrição do aspecto de Jesus. Não, para o Espiritismo a imagem não é nada; mas para o homem encarnado, é natural ter suas ideias representadas por algo concreto, e este ponto focal ele o deseja agradável segundo seus próprios padrões estéticos - é o que explica a prevalência da imagem mais conhecida da Jesus, e do fato de ela se refletir nos relatos, absolutamente ficcionais, das obras examinadas no artigo anterior; e razão pela qual nos utilizamos das pinturas de Carl Heinrich Bloch, entre outros, para o estampar.

Não é o desejo aqui compor um ensaio pormenorizado de tudo quanto diga respeito a este aspecto da vida de Jesus; ainda menos que isto deva importar a maneira como presente nas obras citadas, para o espírita - não deve, e não demanda reiterar, são visões particulares de seus compositores, de seus autores, que nenhum compromisso doutrinário manifestaram em seus escritos, não fazendo mais que compor sentenças de teor lírico a fim de levar os leitores ao pranto. No entanto, à título de trazer informes, conhecimentos e saber acerca desta questão, igualmente objeto de estudo do mundo acadêmico, escusamo-nos a solicitar a licença de devotar algumas laudas a esta, no presente espaço, num exercício escapista de compulsar a manifestação da vida humana em certas expressões no planeta, a fim de alcançar alguma conclusão acerca do tema.

2.
Antes, no entanto, é preciso compor um breviário do que é conhecimento comum entre estudiosos acerca da aparência que Jesus de Nazaré envergara - e, antes que cause estranhamento aos devotos da primeira hora, o que a Ciência busca é o Jesus histórico, o homem que de fato pisou o solo poeirento da Palestina do século I; questões quanto a atribuições metafísicas relativas a natureza de Jesus são mote da religião, artigo de fé e objeto de culto. A historiografia e as disciplinas com que guarda relações tem debruçado esforços contínuos para alcançar a realidade das narrativas bíblicas, e muitas de suas descobertas e conclusões interessam para dar a devida medida humana a Jesus, nos distanciando da versão culturalmente construída dele, e largamente aceita pela irreflexão própria do senso comum.

Jesus é, como notado unanimemente pelos fragmentos colhidos dos livros que foram analisados em artigo anterior, representado com uma aparência caucasiana, alto, portando madeixas longas e claras tal qual a barba, olhos cristalinos, e uma túnica alva. Seria demasiada leviandade dar crédito a que, factualmente, esse Jesus de feições europeias existira, e maior imprudência ainda divulgá-lo como expressão da verdade. Os autores das obras em questão não apenas esforçaram-se na prática de tal desajuízo como embusteiros alguns, ingênuos outros, como todos, partindo de uma visão de fé, suficientemente maleável e fluída para abarcar a poesia e lirismo necessária a dobrar as objeções mais engessadas, trabalharam na contramão da fé raciocinada prescrita pelo Espiritismo. Ao fazê-lo se expuseram, e expuseram os reais compromissos que os levaram a partir de premissas conhecidas e reconhecidas como historicamente falsas - personalismo, fama, influência, acumulo de fortunas, etc.; ou seja, nenhum objetivo nobre os norteou. Tão prejudicial quanto foram os leitores que deram seu total crédito a tais narrativas e asserções, trabalhando como divulgadores secundários desses autores e suas obras, maculando ainda mais a imagem da Doutrina dos Espíritos, fornecendo razão aos detratores pontuais, e o desdouro a generalidade das gentes.

A figura de Jesus longe está desta persona idealizada - o berço de tal exemplar deificado de homem europeu remonta ao paganismo ocidental, cujos deuses de seus panteões eram representados com longos e volumosos cabelos e barbas. Tal imagem veio a ser adotada como aquela atribuída, por extensão, aos filósofos, votados a arte do pensar, pouco se ocupando com questões de aparência. No medievo, a representação de Jesus adotaria similaridades com os monarcas de então, cuja figura de poder indicava portar cabelos e barbas longas - antes de tais fontes diretas de influências incidirem na imagem pensada para Jesus, a arte paleocristã, contudo, o representava como um judeu palestino do período, ou seja, com cabelos e barba curtos. As imagens das moedas da época, das poucas que traziam a representação de um judeu ofertavam tal mesma análoga estampa. E não poderia ser diverso, estando Jesus inserido no mundo romano, onde o estilo adotado repudiava como desonra para um homem portar cabelos crescidos, o que Paulo expressa claramente em sua primeira carta aos Coríntios. A única exceção cabível para o comprimento dos cabelos e barba de Jesus seria se houvera feito um voto nazirista, que compreendia entre outras regras mais não consumir vinho - ele é visto o fazendo, por exemplo, no Evangelho de Mateus, o que leva concluir que não consumara tal voto e que, portanto, tinha cabelos e barba curtos.

Os registros fósseis do período indicam que os judeus palestinos guardam correspondência aos judeus iraquianos atuais, ou seja, tinham cabelos e olhos castanho escuros ou pretos, pele morena, de subtipo oliva, guiando-nos a visão de um Jesus tipicamente oriental, de porte árabe. Tais fósseis ainda vem revelar que a altura média de um homem então era de cerca de 1,60cm., não sendo Jesus, portanto, muito mais alto do que isto. Quanto ao que vestia, o traje típico era uma túnica chamada chiton, constituída de uma camada externa de tecido mais fino chamada sindon, feita de suas peças, uma frontal e outra traseira, ambas atadas nos ombros e ornadas por listras até a bainha. A túnica interna poderia ser de uma só peça, que ia até os joelhos apenas, pois túnicas longas eram próprias das mulheres ou, usadas ocasionalmente por abastados e socialmente bem posicionados. Por sobre as túnicas se usava um manto chamado Himation, confeccionado usualmente em lã. Suas cores certamente estavam longe do púrpura e dos mais finos tons de azul e vermelho, pigmentações caras reservadas apenas aos endinheirados - na transfiguração, os Evangelhos registraram que as roupas de Jesus adotaram um tom branco brilhante, o que faz supor que usualmente suas roupas não eram assim, mas provavelmente desprovidas de tingimento, de tonalidades pasteis e sujas pelas condições da aridez da região. As sandálias da época eram de uma simplicidade estoica, sendo compostas de dois seguimentos de couro mais grossos para a sola, com tiras finas a fixá-la nos pés, uma variação do que o brasileiro encontra nos tradicionais chinelos Havaianas, certamente mais rústicas e, creia-se, mas frágeis. E isto é tudo o que a historiografia pode conjecturar acerca de Jesus, sendo-lhe impossível especular sem base quanto as particularidades de sua expressão física e facial - até que se encontrem novos documentos que venham trazer dados novos, a descrição de Flávio Josefo, por mais chocante pareça, permanece o mais próximo de uma descrição fiel de Jesus; e é a este que em pormenores analisaremos a seguir.

3.
Dispensado o primeiro seguimento da descrição de Josefo, o foco no aspecto físico de Jesus se encontra nas sentenças posteriores, onde afirma que sua aparência era simples, portanto, condizente com a pobreza e humildade a ele atribuídos; pontua que sua idade era madura, e aqui se poderia partir para uma polêmica igualmente fértil acerca dos anos em que iniciara sua jornada pública e aquele em que encontrou seu fim - há estudiosos que afirmam que Jesus morreu aos 36 anos, outros o levam até os 40, de tal conta que esta maturidade presente no texto pode ser bastante relativa, indicando um homem em idade adulta plena, diversamente de um jovem adulto de vinte e poucos anos. Ou sua face e compleição deveriam estampar uma idade inconciliável com a realidade de seus anos, reflexo da dureza inclemente da vida àquele tempo, manifesta sob um sol onipresente e desgastante. Um dado nos Evangelhos leva a tal conclusão - no livro de João, capítulo 8, versículos 56 a 59 encontramos o seguinte:

Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu dia, e viu-o, e alegrou-se. Disseram-lhe, pois os judeus: Ainda não tens cinquenta anos, e viste Abraão? Disse-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que antes que Abraão existisse, eu sou. Então pegaram em pedras para lhe atirarem; mas Jesus ocultou-se, e saiu do templo, passando pelo meio deles, e assim se retirou.

A surpresa de seus pares indica que imaginavam-no mais velho, um possível denunciador de sua aparência degradada - Jesus provavelmente era precocemente envelhecido. A seguir, o historiador nota que Jesus tivera uma baixa estatura, dando inclusive a medida de três côvados - o côvado é uma unidade de medida milenar que variou ao longo da História e do povo a que serviu-se dela; ao tempo da composição de tais linhas por Flávio Josefo, o côvado egípcio era o de uso comum, e ele representava cerca de 50cm., dando a Jesus 1,50cm. de altura, o que explicaria o fato de ser este um aspecto de sua figura a se registrar, já que os homens de seu tempo eram cerca de 10cm. mais altos - Jesus era, portanto, baixinho. Parte de sua altura talvez se devesse a esta condição notada pelo historiador, segundo a qual Jesus padecia de hipercifose torácica, a corcunda - é possível que seja esta peculiaridade efeito da adoção de uma postura de trabalho, a qual tenha sido submetido desde a infância, possivelmente associada a carpintaria como profissão indicada de seu pai; mas aqui, seria preciso uma pesquisa aprofundada acerca das condições de trabalho de um carpinteiro àquele tempo e naquela região. Por outro lado, é possível que, baixinho, também fosse magro em demasia, tendo uma curvatura de notar-se na coluna, sendo apontado como corcunda sem que de fato apresentasse um quadro grave. A alusão feita ao rosto e nariz compridos pode indicá-lo como homem do oriente próximo, um judeu comum, ou mesmo deixar patente que, dentre estes, Jesus portava uma face e nariz especialmente longos - mesmo dentre uma extensa gama de variações estéticas presente nos povos orientais, particularmente dos originários do Oriente Médio, há rostos e narizes mais belos que outros, de modo que se torna impossível precisar tal valor atribuído a Jesus. Poderia ele ter um nariz invulgarmente grande, adunco, destacando-se numa face de queixo longo e proeminente, ou nada disso. Mas, encimando este nariz judeu, havia uma sobrancelha unida, o que vulgarmente se conhece por monocelha. Da mesma forma, torna-se especulação fantasiosa afirmar que era esta sobrancelha longa ou curta, grossa ou fina, bem desenhada ou desgrenhada - mas, é forçoso concluir, pela paridade com os povos do oriente, que o portador de uma monocelha não há teria discretamente, e sendo homem Jesus talvez a tivesse em bom volume, a tal ponto que fez-se predicado digno de considerar, e espanto de quem o via.


Mas que não nos enganemos quanto aos padrões de beleza aceitáveis àquele tempo e região do mundo, pois far-se-ia injusta comparação ao que hoje é tido por belo; no Tardjiquistão, por exemplo, a monocelha destacada é sinal de beleza... em mulheres. Obviamente, nem todas nascem com tal abundância nos sobrolhos, ficando a cargo das peripécias da maquiagem unir o que nasceu separado. Há, inclusive, uma modelo grega, Sophia Hadjipanteli, profissionalmente evidente por conta de sua rara beleza e de suas enormes e unidas sobrancelhas. Mas nenhum pelo facial há de causar maior pasmo que aqueles que enfeitaram as faces das mulheres do harém do Xá da Pérsia Nácer Aldim Xá Cajar, que governou o país (atual Irã) entre 1848 e 1896. Além dos sobrolhos unidos, suas esposas cultivavam o buço, e desconheciam a depilação ao que indicam suas pernas repletas de longos fios, como registradas pelos retratos que ele mesmo colheu de suas amadas, facilmente encontráveis na internet. Era este o padrão de beleza, ao menos para o Xá da Pérsia; é um desafio considerar o valor estético de tal cultura sob o padrão europeu dominante no ocidente contemporâneo.


Jesus, outrossim, segundo a descrição, padecia de calvície, ou alopecia androgenética, condição absolutamente comum ao gênero masculino (cerca de 50% dos homens são acometidos de calvície), de causas ordinariamente hereditárias, manifestando-se costumeiramente entre os 17 e os 23 anos de idade, mas podendo ter seu início aos 25 anos; entretanto, segundo o texto, não fora completamente desprovido de cabelos, dando a crer que estivesse em vias de tornar-se careca, como ocorre quando certos homens atingem a meia-idade. Bem, havia fios suficientes para que os fendesse ao meio 'à maneira dos nazarenos'; parte das causas a que se atribuí a calvície é o excesso de oleosidade capilar, de modo que o volume deste parco cabelo que Jesus ostentava está na razão da imaginação de cada um. Ao fim e ao cabo, mas não menos importante, Jesus teria uma barba subdesenvolvida; possivelmente curta, ou no pior cenário, repleta de falhas. Toda esta descrição elaborada por Josefo compõe, ao que parece, a imagem de um homem destituído de atributos físico agradáveis aos olhos, bastante feio se o leitor levar em conta a padrão adotado consensualmente para Jesus. A considerar o livro de Isaías no Velho Testamento, crendo haver tido a presciência do aspecto físico de Jesus, ele assim profetizou no capítulo 53, versículos 1 e 2:

Porque foi subindo como renovo perante ele, e como raiz de uma terra seca; não tinha beleza nem formosura e, olhando nós para ele, não havia boa aparência nele, para que o desejássemos. Era desprezado, e o mais rejeitado entre os homens, homem de dores, e experimentado nos trabalhos; e, como um de quem os homens escondiam o rosto, era desprezado, e não fizemos dele caso algum.

Acaso de fato esta passagem bíblica sublinha Jesus como alguém sem beleza física, dando crédito a descrição de Flávio Josefo, é interessante pensar como o Espiritismo, milênios mais tarde cravaria que o corpo físico não é nada, que o aspecto das formas é transitório e desimportante frente ao Espírito - isto empresta a Jesus uma grandeza maior, tendo ele exemplificado em si um manifesto contra o materialismo, desafiando o preconceito social, e mesmo as ressalvas estéticas de seu povo. É de se imaginar que sua atitude tenha, sendo ele miserável, feio e sujo, apontando para os bem nascidos doutores da lei e lhes demonstrando um conhecimento imensurável, a ponto de calá-los e, ainda, vindo ilustrar suas palavras em atos considerados miraculosos, que se voltassem com toda fúria contra ele, levando-o finalmente a morte. Sua presença era já um tapa às faces orgulhosas dos fariseus e saduceus, um desafiante impávido cuja conduta e atitudes não eram condizentes ao que sua aparência e origem humilde faria esperar-se dele. Uma pesquisa superficial dos aspectos físicos dos povos do oriente próximo, dos padrões estéticos que valorizaram em suas culturas ao longo dos milênios, certamente, não daria a Jesus e seus pares a consideração que os paradigmas atuais pedem no ocidente. Ao contrário: coerente é vislumbrar que, transportados para os dias atuais, Jesus e seus discípulos mais próximos parecer-se-iam a um bando suspeito de moradores de rua, pedintes sem pouso ou destino, deambulando pelas ruas a cata da próxima refeição. E aqui os textos bíblicos podem ainda trazer alguma luz - no Evangelho de João, capítulo 18, versículos 4 a 8 encontra-se o seguinte:

Sabendo, pois, Jesus todas as coisas que sobre ele haviam de vir, adiantou-se, e disse-lhes: A quem buscais? Responderam-lhe: A Jesus Nazareno. Disse-lhes Jesus: Sou eu. E Judas, que o traía, estava com eles. Quando, pois, lhes disse: Sou eu, recuaram, e caíram por terra. Tornou-lhes, pois, a perguntar. A quem buscais? E eles disseram: A Jesus Nazareno. Jesus respondeu: Já vos disse que sou eu; se, pois, me buscais a mim, deixar ir estes;

A expressão cair por terra não tem o significado literal de que seus captores, entre judeus e oficias romanos, ajoelharam-se ou caíram ao solo diante da presença de Jesus - esta expressão significa, aqui, que tal agrupamento admirou-se ante a figura de Jesus, a tal ponto de não haver lhe dado o crédito e ter ele de identificar-se duas vezes. Jesus, portanto, encontrava-se distante de corresponder às histórias que dele se devia contar o povo - não é de duvidar que ia a mente de seus captores que as ordens que cumpriam estariam equivocadas, pois sobre tal figura qualquer acusação parecer-lhes-ia descabida. Jesus devia compor uma feição insignificante, reles, desimportante, incapaz de chamar a atenção exclusivamente por seus atributos físicos, muitíssimo distante do alto homem de túnica branca, cabelos claros esvoaçantes e olhos translúcidos em tons de azul. Não foi senão com grande surpresa que a reconstrução facial empreendida pelo artista forense Richard Neave, executada já há alguns anos veio causar comoção entre os crentes, pois está mais em paridade ao que realmente se supõe fora Jesus numa contrastante comparação as suas usuais representações. Outro especialista que recentemente debruçou-se a dar contributos a questão foi a historiadora inglesa Joan Taylor, que lançou a obra What Did Jesus Look Like? em 2018, onde ela própria executara um esboço de como teria sido Jesus, corroborando o trabalho de Neave e outros estudiosos que tem revelado o passado, fazendo emergir o Jesus histórico - não é de abalar, por efeito, que frente aos artigos de fé e a descabida crença religiosa que tudo idealiza sem considerar a razão, o verdadeiro Jesus permaneça revelado em palavras e atos, o que deve realmente importar acerca dele. Quanto as muitas obras de arte que eventualmente surgem junto ao ilegítimo movimento espírita brasileiro, tais como supostas representações reais da face de Jesus, ou de sua mãe, não são mais que a judiciosa expressão do acúmulo secular de crenças, influências e superstições culturalmente aderidas a Jesus, a fim de vir representá-lo segundo os anseios imagéticos ideais de seus autores. Ao fim e ao cabo, são tais obras a manifestação dos Espíritos, que refletem a cristandade em sua generalidade; esperar que tudo o que comuniquem esteja de par e passo a verdade é o que constitui a grande chaga que impede a real prática do Espiritismo em território nacional. E sem a correta prática, efeito do pleno entendimento, Jesus permanece objeto de fé, jamais da razão - por isso as obras compulsadas no anterior artigo não serem espíritas, expressões ficcionais das ideias de seus autores.


sábado, 4 de julho de 2020

Jesus entre os 'espíritas'

Introdução

Jesus - quão imensurável é o significado contido neste nome? Desde que um hebreu fendeu o tecido da História humana cerca de vinte séculos se passaram, e o que de fato ocorreu naqueles dias, numa Palestina sob domínio do Império Romano, é mote de exame, estudo e discussão incessante. Aos defensores da ideia segundo a qual Jesus é uma invenção, conspira favoravelmente um oceano de tempo e de repercussões históricas que, a bem da verdade, pouco ou nada interviu diretamente este para o desdobrar dos eventos. Os mitos enodoaram os fatos sob um véu de interpretações repletas de fantasia, superstição, fanatismo e idolatria. Um homem tornou-se um Deus, suas palavras a nova ordem, seus atos em milagres que derrogaram a Lei Natural. Mas de sobre suas sandálias puídas no árido e poeirento deserto palestino, ele teve a presciência do porvir e soube o que resultaria sua passagem entre as gentes - prometeu restaurar o que haveria de ser perdido, prometeu um bálsamo, um consolador para a homem que lhe teria distante da essência de seus ensinamentos. O Espiritismo restituiu o significado original das palavras e atos de Jesus de Nazaré, expurgando a chaga das interpretações de vanguarda que fizeram dele um ser sobre-humano e sobrenatural. A esse respeito, Allan Kardec escreveu em O Evangelho Segundo o Espiritismo:

O Espiritismo é a ciência nova que vem revelar aos homens, por meio de provas irrecusáveis, a existência e a natureza do mundo espiritual e as suas relações com o mundo corpóreo. Ele no-lo mostra, não mais como coisa sobrenatural, porém, ao contrário, como uma das forças vivas e sem cessar atuantes da Natureza, como a fonte de uma imensidade de fenômenos até hoje incompreendidos e, por isso, relegados para o domínio do fantástico e do maravilhoso. É a essas relações que o Cristo alude em muitas circunstâncias e daí vem que muito do que Ele disse permaneceu ininteligível ou falsamente interpretado. O Espiritismo é a chave com o auxílio do qual tudo se explica de modo fácil. (...) Nada ensina em contrário ao que ensinou o Cristo; mas desenvolve, completa e explica, em termos claros e para toda gente, o que foi dito apenas sob forma alegórica. Vem cumprir, nos tempos preditos, o que o Cristo anunciou e preparar a realização das coisas futuras. Ele é, pois, obra do Cristo, que preside, conforme igualmente o anunciou, à regeneração que se opera e prepara o Reino de Deus na Terra.

O estudioso espírita encontra facilmente um sem número de referências a Jesus desde O Livro dos Espíritos, alcançando em O Evangelho Segundo o Espiritismo um tratado acerca de suas parábolas, de suas lições, chegando A Gênese com as explicações naturais dos atos que equivocadamente a historiografia, dando voz a ignorância ancestral, registrou como miraculosos. Sem ter à mão em seu tempo senão os Evangelhos canônicos contidos na Bíblia, Allan Kardec contou com a orientação direta e ativa dos Espíritos da Codificação para compor tais obras, resguardando-se a posição do homem de intelecto que habilmente trata as ideias por si mesmas, e não como o idólatra que toma as fontes como expressão cabal da verdade. Desde então, as Ciências avançaram sobre questões jamais antes estudadas, e a figura humana de Jesus de Nazaré começou a tomar forma, vaporosamente se irrompendo dentre as brumas do tempo, separando-se da figura deificada, mitificada e idolatrada de Jesus Cristo. Com certa audácia imagina-se que Allan Kardec abriria mão do segundo em nome do primeiro, ainda que não completamente, posto que as Ciências materialistas nada acrescem aos aspectos filosóficos éticos e morais que o Espiritismo aborda, por meio daquela que persiste sendo a fonte mais adequada, os Evangelhos.

Ainda que haja sido apontado como guia e modelo da humanidade na questão 625 de O Livro dos Espíritos, tornando-se objeto e parte essencial das Obras da Codificação, Jesus parece permanecer tão desconhecido na abordagem do Espiritismo, quanto os fundamentos doutrinários espiritas o são de parte daqueles mesmos que se declaram seus aderentes. Alvo e mote dileto de diversos autores, encarnados ou não, a atenta leitura de suas obras as opõem frente a abordagem espírita. Evocando a dinâmica mesma que sugerimos em artigo de 27 de setembro último, empreenderemos em exame um cotejamento entre algumas destas obras que, segmentadas ao adjutório de livros espíritas, tem em Jesus suas razões de existir, com o fito de dar comprovação a tal asserção. Para tal empresa o artigo citado lista tão somente três livros (O Sublime Peregrino de Ramatis, O Redentor de Edgard Armond, e Os Últimos Seis Dias de Jesus de Jamiro dos Santos Filho), ao que pudemos acrescer de A Caminho da Luz, Há 2000 Anos e O Consolador, atribuídos ao Espírito Emmanuel, Cornélius o Centurião que viu Jesus atribuído a J. W. Rochester, e Os Quatro Evangelhos de J. B. Roustaing; são, portanto, oito obras que tangem a figura de Jesus, ainda que não seja ele forçosamente o protagonista em todas elas. Sabidamente, nem todos os mesmos pontos biográficos de sua vida são abordados, mas ao fazê-lo pontualmente fornecem material vasto para estudo, permitindo ao espírita constatar a penetração do mito frente aos fatos, a supremacia da versão tradicional que obscurece a restauração empreendida pela Doutrina dos Espíritos. Imaginamos alcançar por provas abundantes a constatação da discrepância existente entre o que é tomado como a expressão da verdade cabal dos narradores de além-túmulo, e aquilo que registra os princípios do Espiritismo, bem como os novos conhecimentos hauridos do trabalho de um sem número de pesquisadores acerca de Jesus e de seu tempo. Portanto, certos tópicos de interesse geral acerca do nazareno restringirão o foco e o critério, fixando-se nas passagens das obras em exame que tratam do assunto, seguidas pelo que pontua as Obras Básicas, comentadas e concluídas ao final, segundo convenha. Sem isto, cada livro por si resguarda tanto mais material aberrante quanto deseje o leitor encontrar ao esmiúça-las por seus próprios meios, mantendo o método prescrito pelo Espiritismo ao nortear a fé raciocinada em tal esclarecedor e necessário exercício.

1. A Natureza de Jesus
Antes de tudo, precisamos compreender que Jesus não foi um filósofo e nem poderá ser classificado entre os valores propriamente humanos, tendo-se em conta os valores divinos de sua hierarquia espiritual, na direção das coletividades terrícolas.” - O Consolador, 3º Parte, II Evangelho

As peças nas narrações evangélicas identificam-se naturalmente, entre si, como partes indispensáveis de um todo, mas somos compelidos a observar que, se Mateus, Marcos e Lucas receberam a tarefa de apresentar, nos textos sagrados, o Pastos de Israel na sua feição sublime, a João coube a tarefa de revelar o Cristo Divino, na sua sagrada missão universalista.” - O Consolador, 3º Parte, II Evangelho

288-'Meu Pai e eu somos Um' - Podemos receber mais alguns esclarecimentos sobre essa afirmativa do Cristo?
A afirmativa evidenciava a sua perfeita identidade com Deus, na direção de todos os processo atinentes à marcha evolutiva do planeta terrestre.” - O Consolador, 3º Parte, II Evangelho

Seja como for, percebe-se que Jesus, naquele instante - o Filho do Homem, isto é, o que evoluíra pelas encarnações humanas, o Governador Planetário, em perfeita sintonia com o Cristo Planetário - reintegrou-se em todo o poder do Espírito Crístico, da esfera dos Amadores, tornando-se integralmente apto para a realização de sua sacrificial tarefa na Terra.” - O Redentor, cap. 17, O Início da Tarefa Pública

Jesus foi um 'Avatar', ou seja, uma entidade da mais alta estirpe sideral já liberta da roda exaustiva das reencarnações educativas ou expiatórias. Em consequência, a sua encarnação não obedeceu às mesmas leis próprias das encarnações comuns dos Espíritos primários e atraídos à carne devido aos recalques da predominância do instinto animal.” - O Sublime Peregrino, cap. 2, Jesus e sua Descida à Terra

Portanto, já é tempo de vos afirmar que o Cristo Planetário é uma entidade arcangélica, enquanto Jesus de Nazaré, espírito sublime e angélico, foi seu médium mais perfeito na Terra!” - O Sublime Peregrino, cap. 5, Jesus de Nazaré e o Cristo Planetário

Efetivamente, Jesus, Espírito perfeito, puro entre os mais puros de quantos, sob a sua direção, trabalham para o vosso progresso, vossa regeneração, vossa transformação física, moral e intelectual, a fim de vos conduzir à perfeição; (...)” - Os Quatro Evangelhos, vol. I

Então ali, naquele pátio, olhando-o de frente vi que ele não poderia ser Deus, mas também não era um homem comum. Era, sim, um espírito puro, descido de Altas Esferas e encarnado num corpo constituído de carne e osso como todos nós. (...) Essa era a parte comum dele, ter o corpo igual a de todos os homens. Nada mais.” - Os Últimos Seis Dias de Jesus, Segundo Dia Segunda-feira, Os Sacerdotes e Escribas

Jesus não é Deus, e isto é óbvio para qualquer espírita; mas não impede a adoração cega, uma clara herança atávica, senão um forte condicionamento que repercute num extremo ao ridículo de certas narrativas, constrangedoras, acerca de Jesus de Nazaré. Jesus é um Espírito, criado simples e ignorante como qualquer outro, que por múltiplas reencarnações deambulou pela existência em atos que não devem nada ao daqueles catalogados nas expressões da vida humana na Terra. Jesus amou e odiou em semelhante medida, cometeu atos meritórios e outros reprováveis, foi pai, mãe, irmão, filho, avô, tirano, assassino, amigo, amante, filantropo, hipócrita, demagogo, altruísta, grosseiro, violento, doce, benemérito, nobre, humilde, egoísta, enfim; imaginar diferente é, sim, concordar a quem toma-o havendo progredido sem sobressaltos, o que a razão mais elementar condena. Como pode o Espiritismo encontrar pleno entendimento nas mentes das gentes se não há compreensão deste seu fidalgo caráter, de haver restaurado o sentido original dos atos e palavras de Jesus? Sem isto, sua natureza persiste no campo do sobrenatural, do maravilhoso e da fantasia. Nem mesmo os 'espíritas' se entendem - enquanto uns o querem Espírito Superior, outros o veem na qualidade de Espírito Puro; mas esta questão deu e dá margem a discussões inúteis, sendo que em se optando por classificar Jesus como um ou outro dentro da escala hierárquica de progresso sugerida por Allan Kardec, que prejuízo decorre? Seus atos e palavras perdem importância? Outrossim, esta escala não tem caráter absoluto, deixando à vista uma área intermediária bastante extensa entre as categorias classificadas, de conta que mais ou menos posicionado entre uma e outra, Jesus não perderia em importância, senão a quem guarda limites ao pensamento, valorando tais pormenores. O que não se concebe, no entanto, é que exista um Cristo Planetário ou cousa semelhante sem que, para tanto, haja uma razão expressamente lógica que o justifique. Possível é fazer uma leitura materialista da ideia segundo a qual um Espírito de elevado progresso não pode encarnar-se num planeta inferior a sua própria condição íntima sem encontrar dificuldades aí. Por que não poderia? Seria preciso um sujeito a servir-lhe de médium? Não faz sentido sem um argumento racional que o sustente. O Espiritismo, ao contrário, prescreve encarnações missionárias que, pode-se supor, são corriqueiras levando-se em conta a vastidão de mundos habitados do Universo - imagina-se o transtorno que decorreria não fosse um processo natural, desprovido de dificuldades maiores e firulas imaginativas inventadas por autores de mentes superexcitadas. Porém, no tocante a Jesus, encontra o estudioso o trecho seguinte, que o posiciona na escala de progresso espírita:

Sem nada prejulgar quanto à natureza do Cristo, natureza cujo exame não entra no quadro desta obra, considerando-o apenas um Espírito superior, não podemos deixar de reconhecê-lo um dos de ordem mais elevada e colocado, por suas virtudes, muitíssimo acima da humanidade terrestre.” - A Gênese, cap. XV, Os Milagres do Evangelho, Superioridade da Natureza de Jesus

2. O Corpo de Jesus
P_Mas como, sendo de carne comum, poderia desmaterializar-se, como fez várias vezes e de forma tão natural e perfeita, como consta dos Evangelhos? R_Porque tinha um corpo de carne, sem dúvida, porém de consistência diferente, de densidade muito menor, de matéria mais pura, de vibração mais alta, adequada a conter um Espírito de Sua elevada hierarquia; corpo, a seu turno, gerado por um vaso físico devidamente preparado e selecionado anteriormente ao nascimento, de vibração e pureza que comportasse Sua permanência em nosso plano grosseiro e impuro.” - O Redentor, cap. 4, Controvérsias Doutrinárias

(...) na verdade o nascimento do Mestre obedeceu às leis comuns da genética humana. Seu organismo era realmente físico. Evidentemente, tratava-se de um organismo isento de qualquer distorção patogênica própria ou hereditária, pois descendia da mais pura linhagem biológica das gerações passadas.” - O Sublime Peregrino, cap. 7, A Natureza do Corpo de Jesus

Jesus houvera podido, unicamente por ato exclusivo da sua vontade, atraindo a si os fluidos ambientes necessários, constituir o perispírito ou corpo fluídico tangível que vestiu para surgir no vosso mundo sob o aspecto de uma criancinha.” - Os Quatro Evangelhos, vol. I

Maior ainda era a diferença entre esse corpo de Jesus e os vossos corpos de lama. Aquele participava em grande escala do corpo do homem nos mundos superiores, por isso que se compunha dos mesmos elementos, mas modificado, solidificado por meio dos fluidos humanos ou animalizados, de modo a manter-se, segundo a vontade do Mestre e as necessidades da sua missão terrena, visível e tangível para os homens, com todas as humanas aparências corporais do vosso planeta.” - Os Quatro Evangelhos, vol. I

Nossa doutrina explica facilmente esse fato esclarecendo as seguidas materializações dele. Embora alguns acreditem que ele tenha tido um corpo fluídico durante a sua vida na Terra, sabemos que, caso fosse essa a verdade, tudo o que ele passou na cruz teria sido uma farsa, coisa inadmissível.” - Os Últimos Seis Dias de Jesus, Preâmbulo, A Permissão

A questão da natureza do corpo de Jesus é uma chaga originada da peculiar e patética figura do advogado francês Jean Baptiste Roustaing, que absolutamente despreparado para compreender tudo quanto lera das Obras Básicas, deu-se ao egomaníaco exercício missionário de receber mensagens espirituais dos, supostamente, apóstolos de Jesus, que vieram - veja só - restituir o sentido real dos Evangelhos, que se perdeu pelas adulterações e interpolações ali cometidas ao longo dos séculos. Menos ainda entenderam os que lhe deram crédito, chamando sua obra vasta, repetitiva e pseudo-sábia de 'a revelação da revelação'. Muitos mais competentes já jogaram uma luz racional sobre tais tomos, demonstrando-lhes, senão a cópia descarada de trechos e conceitos presentes nos livros de Allan Kardec, a retomada de heresias medievais ladeadas de invenções descabidas frente ao Espiritismo. Alardeou-se a tanto esta empreitada de Roustaing que, coetâneo do Codificador, teve este de haver-se em dar uma resposta, que se encontra presente em A Gênese, para que ficasse em definitivo às claras as razões pelas quais Jesus não poderia envergar um corpo fluídico, numa imitação vulgar de vida encarnada. Obviamente, para os autores das obras em exame aqui, se Jesus não tinha um corpo fluídico fora, justamente, porque o tinha em semelhança ao de um super-herói dos gibis - acaba por ser o mesmo argumento, ainda que torcido, que dá a matéria uma importância desmedida. Jesus tinha a saúde que um homem de seu tempo poderia ter; o que se descobriria, por comparação, a um corpo saudável de um homem dos tempos atuais? O que haveria de revelar o corpo de Jesus se a disposição de um médico legista, com toda gama dos modernos métodos e aparelhos a descortinar-lhe as entranhas? As condições de existência humana em seu tempo e naquela região do planeta eram mais duras, e seria uma fantasia completa acreditar que seu corpo não ostentaria as marcas de tal estilo de vida. Com a palavra, Allan Kardec:

Como homem, tinha a organização dos seres carnais; (...) A sua superioridade com relação aos homens não derivava das qualidades particulares do seu corpo, (...) Se tudo nele fosse aparente, todos os atos de sua vida, (...) não teria passado de vão simulacro, para enganar com relação à sua natureza e fazer crer num sacrifício ilusório de sua vida, numa comédia indigna de um homem simplesmente honesto, indigna, portanto, e com mais forte razão de um ser tão superior. Numa palavra: Ele teria abusado da boa-fé dos seus contemporâneos e da posteridade.” - A Gênese, cap. XV, Os Milagres do Evangelho, Superioridade da natureza de Jesus

3. A Missão de Jesus
As próprias esferas mais próximas da Terra, que pela força das circunstâncias se acercam mais das controvérsias dos homens que do sincero aprendizado dos espíritos estudiosos e desprendidos do orbe, refletem as opiniões contraditórias da Humanidade, a respeito do Salvador de todas as criaturas.” - A Caminho da Luz, cap. XII, A Vinda de Jesus

Reunir-se-á, de novo, a sociedade celeste, pela terceira vez, na atmosfera terrestre, desde que o Cristo recebeu a sagrada missão de abraçar e redimir a nossa Humanidade, decidindo novamente sobre os destinos do nosso mundo.” - A Caminho da Luz, cap. XXIV, O Espiritismo e as Grandes Transições

Para alcançar a paciência e o heroísmo domésticos, faz-se mister a mais entranhada fé em Deus, tomando-se como espelho divino a exemplificação de Jesus, no seu apostolado de abnegação e de dor, à face da Terra.” - O Consolador, 1º Parte, II Sentimento

Em sua exemplificação divina, faz-se mister considerar, antes de tudo, o seu amor, a sua humildade, a sua renúncia por toda a Humanidade.” - O Consolador, 3º Parte, II Evangelho

A tarefa messiânica era sanear a Terra de suas iniquidades, oferecer a humanidade diretrizes espirituais mais perfeitas, definitivas, redimir os homens e encaminhá-los para Seu reino divino de luzes e de amor e foi cumprida em todos os sentidos, (...)” - O Redentor, Prólogo

A sua encarnação messiânica e a sua paixão sacrificial tiveram como objetivo acelerar, tanto quanto possível, o ritmo da evolução espiritual dos terrícolas, a fim de proporcionar a redenção do maior número possível de almas, durante a 'separação do joio e do trigo, dos lobos e das ovelhas', no profético Juízo Final já em consecução no século atual.” - O Sublime Peregrino, cap. 1, Considerações Sobre a Divindade e Existência de Jesus

Assumindo a posse do seu delicado instrumento carnal, ele iniciou a sua viagem messiânica pelo deserto da incompreensão humana, culminando em sacrificar sua própria vida para redimir os seus irmãos encarnados.” - O Sublime Peregrino, cap. 2, Jesus e sua Descida à Terra

Aquela missão lhe competia, primeiro como encarregado que é do progresso humano; (...)” - Os Quatro Evangelhos, vol. I

Já pela sua natureza espiritual, (...) Jesus (...) tinha consciência exata da sua origem (...), era sempre o protetor e governador do vosso planeta e presidia à vida e a à harmonia universais em todos os reinos da natureza, constantemente em relação com Deus, (...)” - Os Quatro Evangelhos, vol. I

Cumpria-lhe (a Jesus) proferir palavras que repercutissem no futuro.” - Os Quatro Evangelhos, vol. I

Jesus certamente não falou aos hindus, tampouco aos muçulmanos, ainda menos calariam suas palavras aos zoroastrianos e jainistas, ou aos budistas e xintoístas; não haveriam suas palavras de se destinarem os romanos cultores de Júpiter, e todo panteão de origem grega adotado e adorado então.  Mas Jesus falou aos hebreus? Por certo que sim, e apenas a eles destinava-se sua mensagem - suas parábolas e seus atos registram um profundo conhecimento do meio em que se encarnara, e a alma daquele povo buscava trazer a realidade do Espírito, em missão de combate frontal ao materialismo   que ali vicejava, e vicejava movido pelos fariseus, ladeados pelos saduceus. Ora, o materialismo é um cancro próprio da natureza dos Espíritos que se reencarnam na Terra, e não haveria de extinguir-se de um só golpe; eis porque calou pelos milênios o que dissera e fizera Jesus, ainda que parte de sua mensagem e ações hajam sofrido adulterações em seu significado e natureza. E também por tal razão o Espiritismo surgiu. Descortina-se mais absurdo crer que Jesus dir-se-ia o meio único para se atingir a 'salvação', conceito que prevê a perdição do Espírito imortal - para o quê?, pergunta-se aos autoproclamados espíritas que ainda sustentam tal crença. A caridade é o meio, os Espíritos a Allan Kardec alertaram, e sustentar que tal prática de bonomia é prerrogativa exclusiva da cristandade é demonstrativo de extrema ignorância. Ditos contrários a isto, postos na boca de Jesus em partes dos Evangelhos, parece ter o fim de afirmá-lo a encarnação de Deus, e também sedimentar a hegemonia do cristianismo de antanho, expresso pela Igreja Católica. A visão dos autores 'espíritas' apenas vem refletir a adoração cega a um homem-deus, tomando-se-lhe a figura ao superlativo de uma deidade primitiva qualquer. Para o Espiritismo, todavia, a questão da missão de Jesus é diversa, e se não se pode afirmá-la mais prosaica é, senão, menos hiperbólica em sua extensão, mas não em seu alcance. Os trechos a seguir registram isto, demonstrando a real natureza da missão de Jesus de Nazaré:

Jesus, que prezava, sobretudo, a simplicidade e as qualidades da alma, que, na lei, preferia o espírito que vivifica à letra que mata, se aplicou durante toda a sua missão, a lhes desmascarar a hipocrisia, pelo que tinha neles encaniçados inimigos. Essa a razão por que se ligaram aos príncipes dos sacerdotes para amotinar contra Ele o povo e eliminá-lo.” - O Evangelho Segundo o Espiritismo, Introdução, III Notícias Históricas

Ele viera ensinar aos homens que a verdadeira vida não é a que transcorre na Terra, e sim a que é vivida no Reino dos Céus; viera ensinar-lhes o caminho que a esse reino conduz, os meios de eles se reconciliarem com Deus e de pressentirem esses meios na marcha das coisas por vir, para a realização dos destinos humanos.” - O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. I Não Vim Destruir a Lei

4. Jesus e os Essênios
O Mestre, porém, não obstante a elevada cultura das escolas essênias, não necessitou da sua contribuição. Desde os seus primeiros dias na Terra, mostrou-se tal qual era, com a superioridade que o planeta lhe conheceu desde os tempos longínquos do princípio.” - A Caminho da Luz, cap. XII, A Vinda de Jesus

É sabido que João Batista era essênio, como essênio eram José de Arimatéia, Nicodemo, a família de Jesus e inúmeros outros que na vida do Mestre desempenharam papéis relevantes, como também o próprio Jesus que conviveu com essa seita, frequentando assiduamente seus mosteiros, enterrados nas montanhas palestinas, onde sempre encontrava ambiente espiritualizado e puro, apto a lhe fornecer as energias de que carecia nos primeiros tempos da preparação para o desempenho de sua transcendente missão.” - O Redentor, cap. 13, A Fraternidade Essênia

Jesus, realmente, esteve em contato com os Essênios durante algum tempo e conheceu-lhes os costumes, as austeras virtudes, (...) Muitos dos seus gestos, práticas e atos (...) deixavam perceber as características essênicas de elevado teor espiritual, (...) o Mestre (...) não se filiou propriamente à Confraria dos Essênios, (...) embora tenha participado dos ritos internos, que os próprios mentores Essênios os achavam dispensáveis para uma entidade do seu quilate.” - O Sublime Peregrino, cap. 26, Jesus e os Essênios

O termo essênio deriva de essaya, ou médico em aramaico - e eles surgiram em decorrência da invasão selêucida na Palestina, cerca de 200 anos antes do nascimento de Jesus. Por essa época, as tradições hebraicas se viram ameaçada pela cultura helenística dos invasores (os selêucidas eram gregos que habitavam a Síria), e a crença em um messias capaz de preservar sua cultura e valores surgiu por consequência, mas não apenas, já que a ortodoxia religiosa expandiu-se, criando grupos sectários, dentre os quais os essênios. Partindo para isolamento no Deserto da Judeia, os essênios dedicavam-se a orar, meditar e estudar as escrituras, longe do mundo que consideravam impuro. Em vida monástica, realizavam partilhas igualitárias de bens, proibiam a presença de mulheres e puniam duramente quem não seguisse as normas; são liderados por um Mestre da Justiça, sacerdote mitificado que conta com o auxílio de um membro que assume funções decisórias frente a questões doutrinárias, de justiça e pureza - esse membro, conhecido por epis copus, ou 'aquele que olha de cima' em grego, vai dar origem posteriormente a figura do bispo (episcopus em latim). O historiador judaico-romano Flávio Josefo conviveu por três anos com um mestre essênio, de quem teve lições e pode registrar seus hábitos e ritos - os essênios despertavam antes do nascer do Sol em absoluto silêncio e assim permaneciam, em prece, até receberem suas tarefas; pelas cinco horas seguintes dedicavam-se a elas (cultivo de alimentos, ou o estudo das escrituras, por exemplo), tomando um banho frio ao seu término. Vestiam túnicas brancas e almoçavam, ainda em silêncio, ouvindo as orações do sacerdote encarregado; ao fim deste retiravam suas túnicas e voltavam ao trabalho até o poente, quando tomavam novo banho, vestiam suas túnicas brancas para a refeição noturna e, então, se recolhiam para o descanso. Alimentavam-se de legumes e algumas frutas, além de um pão bem rústico desprovido de fermento; bebiam um vinho fraco semi-fermentado e jejuavam aos sábados. Não se alimentavam de carne a exceção de peixes, que eram abertos vivos e seu sangue drenado. Apesar de tal confiável fonte, muito mistério e informações desencontradas ainda subsistem acerca dos essênios e de suas práticas - no entanto, reconhece-se nesta vida monástica, uma quase clausura, a mesma espécie de existência prescrita a muitas ordens religiosas católicas, algumas resistindo ao progresso dos tempos. Far-se-ia admirável Jesus adotando hábitos tão rigorosos frente a uma tão liberta consciência por ele demonstrada em atos e palavras; acaso o ascetismo, ou práticas próximas a este fossem o proceder correto, por que então não isolou-se ele com seus discípulos? Porque não recomendou com fervor e repetição a necessidade do jejum, ou o respeito ao sábado? Não foi ele, aliás, que amiúde desafiou essa regra? Realmente, se fora como descrito por Josefo, os essênios estão mais a feição de um clero repleto de práticas sacerdotais do que de uma irmandade de cultores de altos valores intelectuais e espirituais. Ao que consta nas obras em análise, reside aqui outro ponto dissonante entre os autores; para o Espiritismo, no entanto, a questão é clara:

Pelo gênero de vida que levavam, assemelhavam-se muito aos primeiros cristãos, e os princípios da moral que professavam induziram muitas pessoas a supor que Jesus, antes de dar começo à sua missão pública, lhes pertencera à comunidade. É certo que ele há de tê-la conhecido, mas nada prova que se lhe houvesse filiado, sendo, pois, hipotético tudo quanto a esse respeito se escreveu” - O Evangelho Segundo o Espiritismo, Introdução, III Notícias Histórias

5. Maria e a Família de Jesus
As figuras de Simeão, Ana, Isabel, João Batista, José, bem como a personalidade sublimada de Maria, têm sido muitas vezes objeto de observações injustas e maliciosas; mas a realidade é que somente com o concurso daqueles mensageiros da Boa Nova, portadores da contribuição de fervor, crença e vida, poderia Jesus lançar na Terra os fundamentos da verdade inabalável.” - A Caminho da Luz, cap. XII, A Vinda de Jesus

_Mãe, não chores!... Assim te ensinei. Reparti contigo minha ciência, para que esta hora decisiva de sofrimentos te fosse menos dolorosa. Oh! Mãe, tu entendeste meus ensinamentos e me acreditaste... A minha morte não pode apavorar-te. Já te expliquei que nossa separação será apenas momentânea! Mãe, terás perdido tua fé? Ouvindo-o, a mulher cessou o choro convulsivo e sentindo-se reconfortada, corrigiu-se.” - Cornélius o Centurião que viu Jesus!, Primeira Parte, A Mãe de Jesus

Buscará na piedosa Mãe de Jesus o símbolo das virtudes cristãs, transmitindo aos que a cercam os dons sublimes da humildade e da perseverança, sem qualquer preocupação pelas gloriosas efêmeras da vida material.” - O Consolador, 1º Parte, II-Sentimento

Maria, sua mãe, sabendo do isolamento em que vivia, sem conforto, e das durezas e dificuldades da missão que apenas iniciava, pediu-lhe que também aceitasse em sua companhia Cleófas.” - O Redentor, cap. 23, Na Sinagoga de Nazaré (nota de rodapé)

Nunca encontrara apoio e compreensão espiritual naqueles irmãos afins que, ao contrário, sempre desejaram que Ele permanecesse em casa e discordavam de suas atividades religiosas; e, como já dissemos atrás, no lar somente contou desde o início com a cooperação da sua Mãe.” - O Redentor, cap. 30, O Desenvolvimento da Pregação

Maria era todo coração e pouco intelecto; um ser amorável, cujo sentimento se desenvolvera até à plenitude angélica. (...) Maria era um espírito amoroso, terno e paciente, completamente liberta do personalismo tão próprio das almas primárias e sem se escravizar à ancestralidade da carne. Possuía virtudes excelsas oriundas do seu elevado grau espiritual.” - O Sublime Peregrino, cap. VIII, Maria e sua Missão na Terra

Maria era um Espírito muito puro, Espírito superior, que descera à terra com a missão sagrada de cooperar no preparo da regeneração humana.” - Os Quatro Evangelhos, vol. I

O Senhor estava com Maria, mulher entre todas bendita, por ser ela, entre todas, Espírito muito puro no desempenho de uma missão na terra.” - Os Quatro Evangelhos, vol. I

_Meu filho, conheceste hoje outro anjo que o Pai concedeu vir a Terra... Ela veio iluminar a escuridão dessas paragens e se posicionou como serva de Deus, a fim de intermediar a chegada de outra luz, a Luz do Mundo... Mãe é aquela que se faz de colo para nosso cansaço, que se faz de ombro para as nossas lágrimas e luz para as nossas esperanças... E Maria é tudo isso e muito mais... Ela é nossa Mãe Santíssima!” - Os Últimos Seis Dias de Jesus, Quinto Dia Quinta-feira, Maria de Nazaré

Eis o ponto de maior discordância dentre todos os autores que, unanimemente tem em Maria um Espírito de alta estirpe, frente ao Espiritismo. O culto mariano, como referido em artigo anterior postado neste espaço, é uma interpolação do culto a Ísis, deusa originária do Egito Antigo, cuja adoração ultrapassou as fronteiras do país africano, estendendo-se por todo o mundo greco-romano de antanho. Ísis é a filha primogênita de Geb e Nut, respectivamente o deus da Terra e a regente do Cosmos. Ela casa-se com seu irmão Osíris concebendo Hórus, o deus do firmamento ligado ao Sol. Por milênios Ísis foi venerada como a representação máxima da essência materna, zelosa com todos sejam quais forem suas origens e posição social, gênero ou raça - olha com igual solicitude por cada criatura, com grande instinto protetor e maternal. Seu culto era especialmente intenso junto ao Império Romano no século I d.C.; a cultura associada a ela é riquíssima e impossível de resumir aqui, cabendo ao leitor fazer sua própria pesquisa - interessa para o momento sua similitude com Maria. Não é, nem longinquamente consensual a influência do culto a Ísis àquele surgido a partir da mãe de Jesus, nem entre as correntes cristãs, menos ainda entre estudiosos do cristianismo ou da cultura egípcia antiga. No entanto, não há como negar similaridades que não podem ser simples coincidências: Ísis e Maria têm alguns epítetos em comum, como 'rainha do céu', 'nossa senhora' ou 'mãe de Deus', para citar os exemplos mais significativos; há também as mui comuns procissões em que a imagem de Maria, em suas muitas representações, conduz o cortejo, uma manifestação popular de grande paridade com o Navigium Isidis, festival romano dedicado a deusa Ísis e que, segundo certos eruditos, também teria originado o Carnaval. Mas, se a religião dos antigos egípcios e romanos é hoje questão a ser tratada na Academia, o culto mariano como expressão da religião cristã segue com extrema força e significância social. No entanto, para o Espiritismo, ela e os demais filhos que teve estão longe de obter tal relevância, o que deveria expressar-se pelo conhecimento suposto que os autores deveriam ter das Obras Básicas, traduzido por manifestarem concordes a estas - isto não ocorre contudo. Mas o que registram as letras kardecianas acerca de Maria?

Pelo que concerne a seus irmãos, sabe-se que não o estimavam. Espíritos pouco adiantados, não lhe compreendiam a missão: tinham por excêntrico o seu proceder e seus ensinamentos não os tocavam, tanto que nenhum deles o seguiu como discípulo. Dir-se-ia mesmo que partilhavam, até certo ponto, das prevenções de seus inimigos. O que é fato, em suma, é que o acolhiam mais como um estranho do que como um irmão, quando aparecia à família. João diz, positivamente (7:5), 'que eles não lhe davam crédito'. Quanto à sua mãe, ninguém ousaria contestar a ternura que lhe dedicava. Deve-se, entretanto, convir igualmente em que também ela não fazia ideia muito exata da missão do filho, pois não se vê que lhe tenha seguido os ensinos, nem dado testemunho dele, como fez João Batista.” - O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XIV, Honrai o vosso pai e a vossa mãe

6. A Aparência de Jesus
Vestia túnica branca e por cima dela, um manto escuro cor de vinho. Seus cabelos longos balançavam ao vento como o trigal maduro. (...) Seus traços fisionômicos finos e regulares eram os mais belos que seus olhos jamais fitaram. Os cabelos castanhos tinham reflexos dourados e deles pareciam sair raios de luz como o sol. (...) Seus olhos grandes e expressivos pareciam mudar de cor, ora ficavam azuis, de um azul celeste, ora negros e aveludados, emitindo raro fulgor. (...) Seu rosto pálido, emoldurado por barba e bigodes, estava levemente queimado do Sol.” - Cornélius o Centurião que Viu Jesus!, cap. O Encontro com Jesus

Seus cabelos esvoaçavam às brisas da tarde mansa, como se fossem fios de luz desconhecida nas claridades serenas do crepúsculo; e de seus olhos compassivos parecia nascer uma onda de piedade e comiseração infinitas. Descalço e pobre, notava-se-lhe a limpeza da túnica, cuja brancura se casava à leveza dos seus traços delicados.” - Há 2000 Anos, cap. III, Em Casa de Pilatos

Tratava-se de um homem ainda moço, que deixava transparecer nos olhos, profundamente misericordiosos, uma beleza suave e indefinível. Longos e sedosos cabelos molduravam-lhe o semblante compassivo, como se fosse fios castanhos, levemente dourados por luz desconhecida. Sorriso divino, revelando ao mesmo tempo bondade imensa e singular energia, irradiava da sua melancólica e majestosa figura uma fascinação irresistível.” - Há 2000 Anos, cap. V, O Messias de Nazaré

Sua fisionomia parecia transfigurada em resplendente beleza. Os cabelos, como de costume, caíam-lhe aos ombros, à moda dos nazarenos, esvoaçando levemente aos ósculos cariciosos dos ventos brandos da tarde.” - Há 2000 Anos, cap. VII, As Pregações do Tiberíades

Jesus, ali chegando, repousou alguns dias em casa da sogra de Simão Bar Jonas. Nesse tempo tinha ele quase 32 anos. Era esbelto, mas robusto, estatura acima da mediana, rosto ovalado, emoldurado por uma barba fina, castanho-avermelhada, repartida ao meio e encaracolada nas pontas; usava cabelo caindo pelas costas, da mesma cor da barba. Tinha a testa alta e ampla, olhos grandes, claros, têmporas encovadas; tez morena como a de sua Mãe, sobrecílios e cílios compridos, sombreando o rosto.” - O Redentor, cap. 25, Os Trabalhos na Galileia

Também se pode considerar um relato autêntico a carta enviada a Tibério, pelo senador Públio Lentulo, quando presidente da Judéia, narrando a existência de um 'homem de grandes virtudes chamado Jesus, pelo povo inculcado de profeta da verdade e pelos seus discípulos de filho de Deus. É um homem de justa estatura, muito belo no aspecto; e há tanta majestade no seu rosto, obrigando os que o veem a amá-lo ou a temê-lo. Tem os cabelos cor de amêndoa madura, são distendidos até as orelhas; e das orelhas, até as espáduas; são da cor da terra, porém reluzente. Ao meio da sua fronte, uma linha separando os cabelos, na forma em uso pelos nazarenos. Seu rosto é cheio; de aspecto muito sereno; nenhuma ruga ou mancha se vê em sua face; o nariz e a boca são irrepreensíveis. A barba é espessa, semelhante aos cabelos, não muito longa e separada pelo meio; seu olhar é muito afetuoso e grave; terá os olhos expressivos e claros, resplandecendo no seu rosto como os raios do sol; porém, ninguém pode olhar fixo o seu semblante, pois se resplende, subjuga; e quando ameniza, comove até as lágrimas! Faz-se amar e é alegre; porém, com gravidade. Nunca alguém o viu rir, mas, antes, chorar.” - O Sublime Peregrino, cap. 1, Considerações Sobre a Divindade e Existência de Jesus

Ele era mais belo do que qualquer um poderia expressar... Seus cabelos dourados, cor de amêndoa, eram repartidos ao meio, caindo nos ombros largos. Um pouco ondulados, alguns fios se dobravam nas pontas. (...) A barba rala cobria-lhe a face alva, e era da mesma cor dos cabelos, e isso formava um conjunto perfeito. Os lábios finos emolduravam o rosto, tornando-o delicado, meigo, com expressão suave. (...) Os olhos eram azuis sem ferir. Suavemente azuis, poder-se-ia assim dizer, e isso causava espanto a todos, pois os judeus tinham sempre os cabelos negros e os olhos da cor da jabuticaba. (...) Ele não era magro, tampouco musculoso. Posso dizer que possuía o corpo de estátua exata, perfeita, e estava no auge do vigor físico com seus 33 anos.” - Os Últimos Seis Dias de Jesus,  Primeiro Dia Domingo, Jesus de Nazaré

Detalhes vem, detalhes vão, e Allan Kardec permanece isento da discussão mais estéril que, ainda, move muitos que se arvoram aderentes do Espiritismo - que importa a aparência que teve Jesus quando encarnado? Seria demasiado aberrante se, entre homens de tez escura e baixa estatura nascesse um gigante de pele alva, cabelos quase louros e olhos azuis translúcidos, apenas por que é o que se espera que a matéria grosseira do corpo faça ao refletir o Espírito que ela manifesta - mas, não está aí um padrão eurocêntrico, senão racista? Não é, ainda, dar importância demasiada a forma, a matéria? Seria preciso muita especulação e dar absoluto crédito as comunicações de além-túmulo para defender que a pele branca é a correta demonstração física de um Espírito de alta estirpe, quando encarnado. Acaso Jesus fosse tão etnicamente diverso de seus pares, os Evangelhos certamente registrariam tal incrível façanha da genética, algo que por si só seria tão maravilhoso quanto seus feitos considerados miraculosos. Há quem dê por certo que Há 2000 Anos contou com o auxílio involuntário (plágio) de parte da obra do professor gaúcho Radagasio Taborda, que em 1931 fez lançar a obra Crestomatia: Excertos Escolhidos em Prosa e Verso dos Melhores Escritores Brasileiros e Portugueses, onde consta a tal epístola atribuída ao suposto senador Públio Lentulus, e que Chico Xavier possuía em sua biblioteca. Temos em posse um opúsculo de 17 páginas de autoria de um historiador chamado Carlos Henrique Nagipe Assunção intitulado Sim, Existe um Públio Lentulus ao Tempo do Imperador Tibério (sic), onde judiciosamente se propõe provar que houve um sujeito que corresponderia a figura que o mentor de Chico Xavier alega ter sido como descrito na citada obra - ainda aqui, mui sabiamente, o bacharel não se arrisca a avançar nos demais equívocos presentes na narrativa, menos ainda a questionar a autenticidade da carta que teria escrito este, descrevendo a Jesus. Oficialmente, a descrição mais antiga de Jesus fora realizada por Flávio Josefo, historiador e apologista judaico-romano; sua obra mais polêmica, por justamente tratar de Jesus é Antiguidades Judaicas. O trecho onde o descreve é considerado por muitos estudiosos uma criminosa interpolação realizada por Eusébio de Cesareia, que fora bispo de tal localidade e é tido como o pai da História da Igreja. Descobertas relativamente recentes, contudo, mantém a chama da polêmica acessa, contestando tais conclusões - o polímata judeu Robert Eisler, em sua obra The Messiah Jesus and John the Baptist, reconstituiu o testemunho de Josefo com base numa tradução anterior a das supostas adulterações realizadas por sacerdotes cristãos; é a versão mais ancestral e, imagina-se, a mais segura e credível. No entanto, a aparência de Jesus descrita aí é, no mínimo, contrária aquela a ele atribuída, e que os autores 'espíritas' ecoam em suas obras analisadas:

Naquela época, também, apareceu um certo homem (de mágico poder), se é permitido chamá-lo de homem, a quem certos gregos chamam de filho de Deus, mas seus discípulos o chamam de verdadeiro profeta, capaz de ressuscitar os mortos e curar todas as doenças. Sua natureza e sua forma eram humanas (homem de aparência simples, idade madura, baixa estatura, três côvados de altura, corcunda, de rosto comprido, nariz comprido e sobrancelhas unidas para espanto de quem o veja, com cabelo escasso, mas separados no meio da cabeça à maneira dos nazarenos, e com barba subdesenvolvida).

Seria, no mínimo, curioso se fosse esta a aparência real de Jesus, bem como, outrossim, plenamente coerente com o período histórico e condições de vida. No mais, é preciso recordar aos que dão importância as formas o que fora expresso a Allan Kardec pelos Espíritos da Codificação:

Os Espíritos superiores não se preocupam absolutamente com a forma. Para eles, o fundo do pensamento é tudo.” - O Livro dos Espíritos, Introdução, item XIII

Para os Espíritos, principalmente para os Espíritos superiores, a ideia é tudo, a forma nava vale.” - O Livro dos Espíritos, Introdução, item XIV

Teu Espírito é tudo; teu corpo é simples veste que apodrece: eis tudo.” - O Livro dos Espíritos, resposta a questão 96a

Conclusão
Quem estará com a verdade? Emmanuel frente a Edgard Armond? Ou seria Ramatis a quem se deveria depositar maior confiança? Talvez J. W. Rochester seja o azarão aqui, e sua obra esteja em concordância com a verdade dos fatos, ou quem sabe Jamiro dos Santos Filho e esta atípica forma de regressão a que se submetera, atípica e completamente fantasiosa. Os adeptos de Roustaing, que ainda são muitos, não guardam dúvidas que a verdade está com seu autor de estimação. Todavia, a verdade não pode estar no que se contradiz, já alertara São Jerônimo séculos atrás - quando não há consenso, pede a lógica concluir que ninguém está de posse dela; contudo se o Espiritismo é a Doutrina dos Espíritos, é preciso igualmente inferir que os Espíritos que com Allan Kardec erigiram as obras que contem a exposição dos princípios desta são, necessariamente, possuidores de um conhecimento diverso do expresso pelos autores das oito obras aqui examinadas. No item 257 de O Livro dos Espíritos o Codificador presta contas: “Interrogamos, aos milhares, Espíritos que na Terra pertenceram a todas as classes da sociedade, ocuparam todas as posições sociais; estudamo-los em todos os períodos da vida espírita, a partir do momento em que abandonaram o corpo; acompanhamo-los passo a passo na vida de além-túmulo, como observar as mudanças que se operavam neles, nas suas ideias, nos seus sentimentos e, sob esse aspecto, não foram os que aqui se contaram entre os homens mais vulgares os que nos proporcionaram menos preciosos elementos de estudo.” Pode-se firmar que há verdade contida no consenso de milhares de Espíritos acerca das questões mais abstratas constituintes dos fundamentos do Espiritismo, mas e quanto aos pormenores biográficos de Jesus de Nazaré? Que mérito haveria no Espiritismo como restaurador do sentido original das palavras e ações de Jesus se viesse, como outros anteriormente, falseá-los ou interpretá-los erroneamente? O 'consolador prometido' que não consola, uma revelação que nada revela... qualquer resposta bastaria para pô-lo ao rés das obras que, como as presentemente estudadas, simplesmente dão a versão mais agradável ao leitor, que tem as mesmas caducas crenças de seus autores. Mas o Espiritismo é a verdade, e a verdade não é popular, notara um gênio brasileiro já há muito relegado a obscuridade. A verdade espírita assenta-se no Controle Universal dos Ensinamentos dos Espíritos, que prescreve cinco critérios observáveis para se dar crédito ao que surja de um médium: 1_as mensagens devem ser espontâneas; 2_as mensagens têm de ser idênticas ('senão quanto a forma, quanto ao fundo'); 3_é preciso um grande número de médiuns ('estranhos uns aos outros'); 4_as mensagens devem ser recebidas 'em vários lugares'; 5_as mensagens devem ser simultâneas ('ao mesmo tempo'). Quais dentre os oito livros compulsados na dinâmica que gerou o presente artigo se adéqua a este critério? Absolutamente nenhum deles. São a expressão pessoal e particular da visão e opiniões dos que as escreveram; não passam, portanto, de ficção - e o 'espírita' que arriscar ver neles algo diferente do exercício prosaico de reinterpretar as passagens evangélicas ao pendor pessoal pode encontrar acolhimento, aceitação, espírito de grupo, e ainda comunhão de pensamento; mas, certamente estará distante do Espiritismo, e muito longe da verdade, assumindo para si o papel de uma máquina de crer, autômata, irracional e idólatra.

domingo, 7 de junho de 2020

Marte


Segundo os Espíritos, de todos os mundos que compõem o nosso sistema planetário, a Terra é dos habitantes menos adiantados, física e moralmente. Marte lhe estaria ainda abaixo, sendo-lhe Júpiter superior de muito, a todos os respeitos.” - rodapé à questão 188 de O Livro dos Espíritos.

“26. O número e o estado dos satélites de cada planeta têm variado de acordo com as condições especiais em que eles se formaram. Alguns não deram origem a nenhum astro secundário, como se verifica com Mercúrio, Vênus e Marte, ao passo que outros, como a Terra, Júpiter, Saturno, etc., formaram um ou vários desses astros secundários.” - item de A Gênese, capítulo VI, Uranografia Geral; a que a editora acresce em nota de rodapé: “Em 1877, foram descobertos dois satélites de Marte: Fobos e Deimos.

3º Ao tempo de Buffon, somente se conheciam os seis planetas de que os antigos eram conhecedores: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno.” - A Gênese, capítulo VIII Teorias Sobre a Formação da Terra.

“Segundo os Espíritos, o planeta Marte seria ainda menos adiantado que a Terra. Os Espíritos ali encarnados parecem pertencer quase que exclusivamente à nona classe, a dos Espíritos impuros, de sorte que o primeiro quadro, que demos acima, seria a imagem desse mundo.” - tal quadro ele o expõe alguns parágrafos acima: “Suponhamos, então, um globo habitado exclusivamente por Espíritos da nona classe, por Espíritos impuros, e para lá nos transportemos pelo pensamento. Nele veremos todas as paixões liberadas e sem freio; o estado moral no mais baixo grau de embrutecimento; a vida animal em toda a sua brutalidade; nada de laços sociais, porquanto cada um só vive e age por si e para satisfazer seus grosseiros apetites; o egoísmo ali reina como soberano absoluto, arrastando no seu cortejo o ódio, a inveja, o ciúme, a cupidez e o assassínio.” - Revista Espírita, março de 1858.

Marte é um planeta inferior à Terra, da qual é grosseiro esboço; não é necessário habitá-lo. Marte é a primeira encarnação dos mais grosseiros demônios. Os seres que o habitam são rudimentares; têm a forma humana, mas sem nenhuma beleza; têm todos os instintos do homem, sem a nobreza da bondade. Entregues às necessidades materiais, comem, bebem, batem-se, acasalam-se. Mas como Deus não abandona nenhuma de suas criaturas, no fundo das trevas de sua inteligência jaz latente o vago conhecimento de si mesmo, mais ou menos desenvolvido. Esse instinto é suficiente pra torná-los superiores uns aos outros e preparar a eclosão para uma vida mais completa. A deles é curta como a dos insetos efêmeros. Os homens, que são apenas matéria, desaparecem após curta duração. Deus tem horror ao mal e só o tolera como servindo de princípio ao bem. Ele abrevia o seu reino, sobre o qual triunfa a ressurreição. Nesse planeta a terra é árida; pouca verdura; uma folhagem sombria, que a primavera não renova; um dia igual e cinzento. Apenas aparente, o Sol jamais prodigaliza suas festas; o tempo escoa monótono, sem as alternativas e as esperanças das novas estações; não é inverno, não é verão. Mais curto, o dia não é medido do mesmo modo; a noite reina mais longa. Sem indústria, sem invenções, os habitantes de Marte consomem a vida à procura de alimento. Suas grosseiras habitações, baixas como um casebre, são repugnantes pela incúria e pela desordem que nelas reinam. As mulheres se destacam sobre os homens; mais abandonadas, mais famélicas, não passam de suas fêmeas. Têm apenas o sentimento maternal; dão à luz com facilidade, sem nenhuma angústia; alimentam e aguardam seus filhos a seu lado, até o completo desenvolvimento de suas forças, e os expulsam sem pesar e sem saudades. Não são canibais; suas contínuas batalhas não têm outro objetivo que não seja a posse de um terreno mais ou menos abundante em caça. Caçam nas planícies intermináveis. Inquietos e instáveis como os seres desprovidos de inteligência, deslocam-se incessantemente. A igualdade da estação, a mesma em toda parte, comporta, em consequência, as mesmas necessidades e as mesmas ocupações; há pouca diferença entre os habitantes de um e de outro hemisfério. Para eles a morte não representa nenhum pavor ou mistério; consideram-na apenas como a putrefação do corpo, que queimam imediatamente. Quando um desses homens vai morrer, logo é abandonado; então, só e deitado, pensa pela primeira vez; um vago instinto o assalta; como a andorinha advertida da próxima estação, sente que nem tudo está acabado, que vai recomeçar alguma coisa desconhecida. Não é bastante inteligente para supor, temer ou esperar, mas calcula, às pressas, suas vitórias e derrotas; pensa no número de caças que abateu e se regozija ou se aflige conforme os resultados obtidos. Sua mulher - só têm uma por vez, embora possam trocá-las sempre que lhes convêm - agachada à entrada, atira seixos no ar, quando formam um montículo, ela julga que chegou a hora e se aventura a olhar para o interior, se suas previsões se tiverem realizado, se o homem estiver morto, ela entra sem um grito, sem uma lágrima, despoja-o da pele de animais que o envolve, vai friamente avisar seus vizinhos, que transportam o corpo e o incineram, tão logo esfria. Os animais, que por toda parte sofrem os reflexos humanos, são mais selvagens, mais cruéis que em qualquer outro lugar. O cão e o lobo são uma só e a mesma espécie, incessantemente em luta com o homem, que, contra ele, se entrega a combates encaniçados. Aliás, menos numerosos, menos variados que na Terra, os animais são a miniatura deles mesmos. Os elementos têm cólera cega do caos; o mar furioso separa os continentes sem navegação possível; o vento ruge e curva as árvores até o solo; as águas submergem as terras ingratas, que não fecunda; o terreno não oferece as mesmas condições geológicas da Terra; o fogo não o aquece; os vulcões são desconhecidos; as montanhas, pouco elevadas, não oferecem nenhuma beleza; fatigam o olhar e desencorajam a exploração; enfim, por toda parte, monotonia e violência; por toda parte a flor sem cor e sem perfume, por toda parte o homem sem previdência, matando para sobreviver. Georges.” - Revista Espírita, outubro de 1860, ao que Allan Kardec acresce: “Observação - para servir de transição entre o quadro de Marte e o de Júpiter, seria necessário o de um mundo intermediário, da Terra, por exemplo, mas que conhecemos suficientemente. Observando-a, fácil é reconhecer que mais se aproxima de Marte que de Júpiter, posto que, mesmo no seio da própria civilização, ainda se encontram seres tão abjetos e tão desprovidos de sentimentos e de humanidade, vivendo no mais absoluto embrutecimento e não pensando senão em suas necessidades materiais, sem jamais terem voltado o olhar para o céu, que parecem ter vindo diretamente de Marte.

Todos tais informes resumem suficientemente bem tudo quanto guardam os escritos kardecianos a respeito do planeta vermelho - ademais, Marte é citado pontualmente ali e acolá, sem acrescer em nada ao exposto. Não é necessário ser um entendido em astrofísica para constatar-se que, por todas as aparências, o narrado, principalmente na derradeira comunicação assinada pelo Espírito Georges, não tem correspondência com os fatos - e por todas as aparências ressalta-se, pois que apostar na absoluta idoneidade da mensagem é o mesmo que fazê-lo por crer na boa fé dos países que tem perscrutado e explorado o planeta vizinho, no tocante a divulgar tudo quanto lá encontraram sem impor nenhuma restrição ao escrutínio público. Allan Kardec fora cauteloso com tais informes, na mesma medida que estes lhe atiçaram a curiosidade e o desejo por conhecimento. No entanto, talvez mesmo suspeitando da veracidade do que continham estes, pô-los a categoria de mera suposição; a tanto que não constam de nenhuma das obras que pontificam as bases da Doutrina dos Espíritos. A fim de examinar tais comunicações de além-túmulo que dão conta das expressões da vida neste mundo, parte a parte, apontaremos observações aos aspectos aí expostos.

- Condições planetárias
“Nesse planeta a terra é árida; pouca verdura; uma folhagem sombria, que a primavera não renova; um dia igual e cinzento. Apenas aparente, o Sol jamais prodigaliza suas festas; o tempo escoa monótono, sem as alternativas e as esperanças das novas estações; não é inverno, não é verão. Mais curto, o dia não é medido do mesmo modo; a noite reina mais longa. (...) A igualdade da estação, a mesma em toda parte, comporta, em consequência, as mesmas necessidades e as mesmas ocupações; (...) Os elementos têm cólera cega do caos; o mar furioso separa os continentes sem navegação possível; o vento ruge e curva as árvores até o solo; as águas submergem as terras ingratas, que não fecunda; o terreno não oferece as mesmas condições geológicas da Terra; o fogo não o aquece; os vulcões são desconhecidos; as montanhas, pouco elevadas, não oferecem nenhuma beleza; fatigam o olhar e desencorajam a exploração; enfim, por toda parte, monotonia e violência;” - um estudo da Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (ou apenas NASA), agência estadunidense responsável pela exploração espacial, lançado em 2004, indicou que Marte possuiu mares em seu passado remoto. Atualmente, contudo, o planeta vizinho é um deserto rochoso de cor avermelhada, graças a grande quantidade de ferro presente na composição de seu solo. O pouco gelo existente encontra-se nos polos marcianos e é composto não de água, mas de gás carbônico em estado sólido, uma substância que na Terra é conhecida como gelo seco. Uma vez que a atmosfera é rica neste gás, durante o inverno o gelo dos polos de expande quase alcançando o equador, numa glaciação sazonal decorrente dos até -142º graus Célsius que o planeta registra nesta estação; nos verões, a temperatura sobe para confortáveis +20º graus Célsius, extinguindo a capa branca de neve carbônica, expondo o solo avermelhado. Ou seja, assim como a Terra, Marte possui estações do ano, de duração mais longa, contudo. Tal fato se deve a que o ano marciano tem 687 dias, dias estes de 24 horas e 37 minutos. Um fato curioso que pode indicar em parte o caráter do Espírito comunicante diz respeito a alegação da existência de vida vegetal - em Marte há tempestades de areia que deixam o céu rosado e que, vistas da Terra, formam marchas mais ou menos uniformes, cuja semelhança levou os observadores do passado a acreditarem-se diante de florestas. O conhecimento atual não registra nenhuma forma de vida vegetal lá. Tais tormentas de areia são violentíssimas, podendo cobrir todo o planeta, e durar mesmo anos; talvez um dos poucos pontos de concordância parcial com a mensagem do Espírito. Claro, qualquer leitor minimamente instruído há de lançar reprovações ao trecho que trata da inexistência de vulcões marcianos, e de notar que as montanhas são lá de pouca expressão. Não há como considerar tais apontamentos em vista do Monte Olimpo, o maior vulcão do sistema solar, com impressionantes 27 quilômetros de altura e 600 quilômetros de base; há ainda outros vulcões na superfície marciana, tal como o Monte Ascraeus, com mais de 11 quilômetros de altura. Ao que se constata, tais pontos são os de maior dessemelhança entre o descrito pela comunicação espiritual e o que o conhecimento de hoje registra acerca de Marte.


 - Expressões da vida animal
(...) suas contínuas batalhas não têm outro objetivo que não seja a posse de um terreno mais ou menos abundante em caça. (...) Os animais, que por toda parte sofrem os reflexos humanos, são mais selvagens, mais cruéis que em qualquer outro lugar. O cão e o lobo são uma só e a mesma espécie, incessantemente em luta com o homem, que, contra ele, se entrega a combates encaniçados. Aliás, menos numerosos, menos variados que na Terra, os animais são a miniatura deles mesmos.” - até o presente momento, nenhuma forma de vida, da microscópica a macroscópica foi encontrada em Marte. A imaginação humana, por outro lado, sempre atribuiu a existência de alguma forma de vida ao planeta vermelho. Decorrência da grande quantidade de imagens que as sondas terrestres têm captado, os adeptos das teorias da conspiração alegam ver nestas toda sorte de provas da presença de vida, pareidolias que dão conta de haverem desde animais a homens-lagarto, passando por macacos e bípedes humanoides indolentemente apreciando a paisagem. Todavia, tais supostos registros não são mais que efeito de imaginações férteis.

- Expressões da vida humana
Os seres que o habitam são rudimentares; têm a forma humana, mas sem nenhuma beleza; têm todos os instintos do homem, sem a nobreza da bondade. Entregues às necessidades materiais, comem, bebem, batem-se, acasalam-se. (...) A (vida) deles é curta como a dos insetos efêmeros. Os homens, que são apenas matéria, desaparecem após curta duração. (...) Suas grosseiras habitações, baixas como um casebre, são repugnantes pela incúria e pela desordem que nelas reinam. (...) Caçam nas planícies intermináveis. Inquietos e instáveis como os seres desprovidos de inteligência, deslocam-se incessantemente. (...) enfim, por toda parte, monotonia e violência; por toda parte a flor sem cor e sem perfume, por toda parte o homem sem previdência, matando para sobreviver.” - poder-se-ia concluir em vista de tais trechos que a humanidade marciana é nômade, caçadora e cuja vida, violenta, é de curta duração; suas habitações, pode-se inferir, a exemplo daquelas erigidas pelos povos indígenas têm existência transitória; no entanto, aqui é já território especulativo. Por conta disto as questões de ordem espiritual, e os modos pelos quais seus supostos habitantes de organizam socialmente pouco importam para provar-lhes a existência - o modo como é tratado o gênero feminino, como procriam e cuidam dos filhos, sua relação com a morte e que tais são acessórios inúteis. Enquanto não forem encontrados vestígios de habitações, os despojos que lhos denuncie a presença, sejam grandes ou pequenos, recentes ou antigos, pouco importará que da vida não tenham senão uma visão primitiva e eminentemente material, ou que guardem algum senso de pudor que os impeça de consumir a carne de seus semelhantes.


- Especulações imaginativas
Contudo, ainda que a mensagem toda padeça de uma forte tendência a fantasia, alguns dados podem levar-nos, com as luzes dos dias atuais, a imaginar a possibilidade, ainda que remota, que parte do que ela contém possua expressões verdadeiras. E se o que narra não for o presente, mas o passado do planeta Marte? Para onde foram seus habitantes, e sua vida vegetal e animal? Extinguiram-se, é o que se conclui. Em 2011 a NASA descobriu um buraco no solo marciano, cuja foto foi divulgada apenas em março do presente ano; estima-se que tenha cerca de 35 metros de diâmetro e algo em torno de 20 metros de profundidade, supondo-se ser uma abertura por onde um veio de lava haja escapado no passado, uma vez que este se encontra localizado na encosta do vulcão Pavonis Mons. Não poucos observadores quiseram crer que, se há vida em Marte, ela se esconde no subsolo, e aquele orifício pode representar uma passagem para este mundo subterrâneo. A fartura de vulcões e seus tamanhos hiperbólicos podem ter eivado o subsolo marciano com cadeias de cavernas, túneis e passagens imensas, onde toda uma humanidade esconder-se-ia do clima hostil da superfície. Tudo leva a crer, na mensagem do Espírito, e a lógica do Espiritismo remete a isto também, que os marcianos são vida material grosseira o que, portanto, a faria visível, palpável, perceptível para os sentidos da humanidade terrena - algo que se encontra no espectro oposto quando se trata dos que habitam Júpiter, por exemplo, um mundo muito superior a Terra. Ou não? Bem, se se levar em conta as diversidades elementares de cada mundo, a expressão material da vida é uma loteria; Allan Kardec acerca disto tece um comentário a questão 58 de O Livro dos Espíritos bastante pertinente para o presente artigo:

As condições de existência dos seres que habitam os diferentes mundos hão de ser adequados ao meio em que lhes cumpre viver. Se jamais houvéramos visto peixes, não compreenderíamos pudesse haver seres que vivessem dentro d'água. Assim acontece com relação aos outros mundos, que sem dúvida contêm elementos que desconhecemos.

A vida em Marte pode, portanto, manifestar-se por meios que escapem a captação da materialidade terrestre? Quem pode sabê-lo? Tal exercício de especulação, ainda que leve a mais perguntas, até o presente momento irrespondíveis, tece hipóteses em dissonância a comunicação espiritual, dando senão ao estudioso a concluir por sua falsidade - ou antes, seria mais prudente assumir a postura de Allan Kardec, aguardando para um futuro hipotético o avançar do conhecimento humano acerca da existência de vida fora da Terra, acrescida ou não de informes espirituais, de fato, representação da verdade então conhecida do homem futuro. Até lá, Marte é um planeta estéril e árido, um vizinho de planícies ferrosas e vulcões superlativos, de invernos rigorosos e tempestades de areia planetárias, mas também um mundo que incendeia a imaginação humana por suas latentes possibilidades, desde há muitos milênios.