quinta-feira, 26 de março de 2020

Um Mentor Espiritual Incomoda Muita Gente...


1.
Vivem-se dias em que verdades tácitas precisam ser ditas clara e pausadamente, ainda sob risco de faltar a compreensão de muitos - nossas observações firmadas acerca de Chico Xavier e de questões a ele relacionadas, tais como os autores espirituais que por sua prodigiosa mediunidade vieram legar obras que fomentaram e fomentam confusão, em artigos neste espaço publicados, exortaram certas ordens de observações. Ordinariamente foi possível testemunhar quem desejasse, a exemplo do ocorrido ao médium mineiro, ter admoestações cotidianas de parte de seus mentores espirituais. Tais diretas intervenções parecem, aliás, ser da vontade plena de diversos indivíduos, e suspeitamos que o sejam de uma imensa maioria, mesmo dentre os que não se identificam como espíritas. Destes não há o que censurar em abrir mão do livre-arbítrio, mas dos espíritas é de espantar, senão condenar - no entanto, esta prática necromântica, ou seja, a consulta dos mortos para aconselhamento acerca do futuro é antiquíssima, muitos milhares de anos anterior ao surgimento do Espiritismo. É contra esta, aliás, que o legislador hebreu Moisés vem manifestar-se no livro do Deuteronômio, no capítulo 18, versículos de 9 a 12, e o termo usado ali para a condenação da prática é espírito adivinhador (v. 11), deixando claro a presença de tal prática adivinhatória, aquela que pressagia, pressente, desvenda ou descobre antecipadamente fatos ou acontecimentos vindouros. O que prescreve o Espiritismo é bem diverso disto, embora esta necromancia seja imprudente e correntemente levada a efeito em locais e por grupos que se afirmam espíritas. Mais comum ainda é a bibliomancia, em que O Evangelho Segundo o Espiritismo, preferencialmente, é aberto ao acaso, como que movidas suas páginas por uma vontade e inteligência ocultas, a fim de fazer cair num dado capítulo, item ou passagem que caiba ao consultante ou a alguém para quem se pratica tal arte. Estas e demais práticas divinatórias, não seja demasiado redundante registrar, não faz parte das atividades recomendadas pela Doutrina dos Espíritos, sendo seus executores inteira e pessoalmente responsáveis por estas e seus efeitos.

Há um apelo candente na ideia de se conhecer o futuro, embora aqueles que a historiografia notou como capazes de fazê-lo hajam previsto mortes, tragédias e calamidades. A figura nebulosa do médico francês Michel de Nostredame, o Nostradamus, é sempre evocada em tempos incertos e na culminância de hecatombes e fatalidades; o americano Edgar Cayce é outro visionário que tem suas previsões evocadas de quando em vez, para espanto geral, prevendo epidemias e desastres; da Internet, recentemente surgiu a obscura clarividente russa chamada Baba Vanga  que teria previsto a morte de Stalin, o acidente nuclear de Chernobil, os atentados do 11 de setembro e a eleição de Barack Obama a presidência dos EUA - claro, em se tratando da rede mundial de computadores, é difícil comprovar o que de fato ela teria antecipado. Esses e outros tantos alimentam a crença e as superstições, além dos temores mais intestinos das mentes sensíveis, que ora se abstém de ir comprovar se o que lhes alcança é o que fora adivinhado, haja visto que muitos dentre estes profetas usam de linguagem cifrada ou hermética, carecendo de interpretes ou tradutores nem sempre hábeis, ou bem intencionados. Uma questão frequentemente cara aos céticos mais renhidos diz respeito ao fato segundo o qual tais previsões, se reais, seriam a derrogação do livre-arbítrio - contudo, Allan Kardec trata desta questão, outrossim, em A Gênese com sua Teoria da Presciência, ou seja, o conhecimento do futuro. Neste ensaio ele cria a figura de um viajante que, posicionado ao cume de uma alta montanha é capaz de ver ao longe o caminho pelo qual vai um peregrino, antevendo na distância o que aguarda a este adiante - pudesse o que está acima comunicar do que há no porvir, parecerá prever o futuro do que está embaixo. Desta forma, o professor conclui:

Bem se compreende, pois, que, de conformidade com o grau de sua perfeição, possa um Espírito abarcar um período de alguns anos, de alguns séculos, mesmo de muitos milhares de anos, porquanto, que é um século em face do infinito? Diante dele, os acontecimentos não se desenrolam sucessivamente, como os incidentes da estrada diante do viajor: ele vê simultaneamente o começo e o fim do período; todos os eventos que, nesse período, constituem o futuro para o homem da Terra são o presente para ele, que poderia então vir dizer-nos com certeza: tal coisa acontecerá em tal época, porque essa coisa ele a vê como o homem da montanha vê o que espera o viajante no curso da viajem. Se assim não procede, é porque poderia ser prejudicial ao homem o conhecimento do futuro, conhecimento que lhe pearia o livre-arbítrio, paralisá-lo-ia no trabalho que lhe cumpre executar a bem do seu progresso.

O caminho traçado ao viajante é como que a linha indelével ascendente do progresso do Espírito, e a um outro Espírito que está muito acima deste hipotético que se lhe está abaixo, vê-lo em sua trajetória será como que antever, precisamente, suas ações, seus próximos passos, assim como um pai é capaz de antever as ações de um filho porque o conhece em profundidade. Não obstante, aos pais compete fatalmente confiar haver dado o melhor sustentáculo moral e espiritual aos filhos, a fim que estes fruam pela vida por seus próprios esforços, cometendo de per si os atos que resultarão desdobramentos ora positivos, ora negativos, cujos quais lhes caberá inteira responsabilidade. Saber o que resultará amanhã os passos dados hoje parece um alento, cuja tentação abarrota em todos os lugares, as mais disparatadas sessões mediúnicas, numa irresponsável prática da necromancia. Em complemento a questão 871 de O Livro dos Espíritos, Allan Kardec vem lucidamente esclarecer acerca dos efeitos do conhecimento do futuro:

Quanto mais se reflete nas consequências que teria para o homem o conhecimento do futuro, melhor se vê quanto foi sábia a Providência em lho ocultar. A certeza de um acontecimento venturoso o lançaria na inação. A de um acontecimento infeliz o encheria de desânimo. Em ambos os casos, suas forças ficariam paralisadas. Daí o não lhe ser mostrado o futuro, senão como meta que lhe cumpre atingir por seus esforços, mas ignorando os trâmites por que terá de passar para alcançá-la. O conhecimento de todos os incidentes da jornada lhe tolheria a iniciativa e o uso do livre-arbítrio. Ele se deixaria resvalar pelo declive fatal dos acontecimentos, sem exercer suas faculdades. Quando o feliz êxito de uma coisa está assegurado, ninguém mais com ela se preocupa.

2.
A presciência guarda este caráter extraordinário para as massas ignorantes, tanto quanto para certos espiritualistas que, equivocadamente creem ser espíritas - e embora estes últimos venham apelar as vozes de além-túmulo para conhecer o porvir, a generalidade dos homens sobre a Terra busca, com pontuais e anonimas exceções, guiar-se por intermédio de práticas divinatórias, sendo o horóscopo diário a mais ordinária de suas expressões. Não há nenhum equívoco em desejar um conselho, uma orientação, a voz de uma experiência superior quando diante de uma decisão difícil a ser tomada - é tal tarefa, aliás, que cabe aos Espíritos guia, os benfeitores espirituais. Imaginar ou almejar, porém, que estes Espíritos decretem como exatos um futuro venturoso, é por-se na condição de um ingênuo pronto a ser ludibriado. As seguintes questões de O Livro dos Espíritos tratam dos guias:

491. Qual a missão do Espírito protetor?
A de um pai com relação aos filhos; a de guiar o seu protegido pela senda do bem, auxiliá-lo com seus conselhos, consolá-lo nas suas aflições, levantar-lhe o ânimo nas provas da vida.

501. Por que é oculta a ação dos Espíritos sobre a nossa existência e por que, quando nos protegem, não o fazem de modo ostensivo?
Se vos fosse dado contar sempre com a ação deles, não obraríeis por vós mesmos e o vosso Espírito não progrediria. Para que este possa adiantar-se, precisa de experiência, adquirindo-a frequentemente à sua custa. É necessário que exercite suas forças, sem o que seria como a criança a quem não consentem que ande sozinha. A ação dos Espíritos que vos querem bem é sempre regulada de maneira que não tolha o livre-arbítrio, porquanto se não tivésseis responsabilidade, não avançaríeis na senda que vos há de conduzir a Deus. Não vendo quem o ampara, o homem se confia às suas próprias forças. Sobre ele, entretanto, vela o seu guia e, de tempos em tempos, lhe brada, advertindo-o do perigo.

Esta última questão, a propósito, resulta num comprovante mais da atuação anômala de Emmanuel, a que já foi detidamente tratada em artigos anteriores aqui publicados. Não nos furtamos, uma vez mais, vir transcrever as lições de Allan Kardec e dos Espíritos da Codificação acerca deste tema - em O Céu e o Inferno, em seu capítulo X, Intervenção dos Demônios nas Modernas Manifestações, pode-se apreciar o seguinte:

Que mérito teríamos nós se, para tudo saber, apenas bastasse interrogar os Espíritos? Por esse preço, todo imbecil poderia tornar-se sábio.

Do mesmo tomo, no capítulo VII, As Penas Futuras Segundo o Espiritismo, encontra-se:

Quaisquer que sejam a inferioridade e perversidade dos Espíritos, Deus jamais os abandona. Todos têm seu anjo da guarda (guia) que por eles vela, espreita-lhes os movimentos da alma, e se esforçam por suscitar-lhes bons pensamentos, desejosos de progredir, de reparar em uma nova existência o mal que praticaram. Contudo, essa interferência do guia faz-se quase sempre ocultamente e de modo a não haver pressão, pois que o Espírito deve progredir por impulso da própria vontade, nunca por qualquer sujeição.

Ou ainda, em O Livro dos Médiuns, item 303, há a passagem:

Se os homens não tivessem mais do que se dirigirem aos Espíritos para tudo saberem, estariam privados do livre-arbítrio e fora do caminho traçado por Deus à Humanidade. O homem deve agir por si mesmo. Deus não manda os Espíritos para que lhe achanem a estrada material da vida, mas para que lhe preparem a do futuro.

Ainda que o sentido à tez da pele por Chico Xavier não lidou diretamente com quaisquer previsões mirabolantes acerca de seu futuro, as intervenções empreendidas por Emmanuel no curso de tolher o livre-arbítrio deste foram além de consentidas, foram desejadas, exortadas e esperadas. Nem a doença, nem o cansaço, nem o comum das expressões da vida humana na Terra podiam desviar Chico Xavier de prosseguir trabalhando, psicografando, atendendo aos necessitados que para si acorriam com toda sorte de adversidade a afligir-lhes. O médium mineiro pôs-se aos caprichos de um Espírito que por ele, coagiu a seguir caminhos, constrangeu a tomar ações e atitudes, mesmo que lhe fosse contrário ao arbítrio. Tal relação em que a sujeição de um frente a dominação do outro urdiram um harmônico encadeamento com um fim que, em retrospecto, é conhecido e reconhecido, encontra muitos apoiadores e aderentes, que sob os mais diversos e absurdos argumentos defendem tudo quanto a biografia de Chico Xavier registrou. Subsiste firmemente a ideia segundo a qual o médium era um Espírito missionário, o que aponta a necessidade de coagir por parte de Emmanuel. Mas eis que a lógica se estabelece contra tal pressuposto, indicando para efeito didático, contrapor o momento em que Allan Kardec, de fato um Espírito missionário, fora convidado a assumir sua imensa tarefa, e o modo por que Chico Xavier fora impelido por Emmanuel ao trabalho de servir a registrar um mundo de obras equivocadas, cujos erros foram já alvo de artigos passados. De mais a mais, quem assim crê, demonstra desconhecer as funções de um benfeitor espiritual, bem como carece de maior estudo em relação ao livre-arbítrio, tanto quanto aos aspectos da vida do médium mineiro - o fato de alguns, ou muitos indivíduos terem sido tocados pessoalmente pela obra deste, ou terem sido levados ao Espiritismo por estas, não é o indicativo senão da confusão e deturpação aí contidas. O que ganha o Espiritismo em ter aderentes que se encontram presos por uma divida de gratidão que cega, afeitos ao desmedido das emoções e não a retidão da lógica racional?

3.
As duas questões que abrem o seguimento anterior pintam a figura dos benfeitores espirituais como pais; em complemento a questão 495 de O Livro dos Espíritos, São Luís e Santo Agostinho tecem outra imagem igualmente calorosa e receptiva:

Oh! Interrogai os vossos anjos guardiães; estabelecei entre eles e vós essa terna intimidade que reina entre os melhores amigos. Não penseis em lhes ocultar nada, pois que eles têm o olhar de Deus e não podeis enganá-los. Pensai no futuro; procurai adiantar-vos na vida presente. Assim fazendo, encurtarei vossas provas e mais felizes tornareis as vossas existências. Vamos, homens, coragem! De uma vez por todas, lançai para longe todos os preconceitos e ideias preconcebidas. Entrai na nova senda que diante dos passos se vos abre. Caminhai! Tendes guias, segui-os, que a meta não vos pode faltar, porquanto essa meta é o próprio Deus. (...) Não vos parece grandemente consoladora a ideia de terdes sempre junto de vós seres que vos são superiores, prontos sempre a vos aconselhar e amparar, a vos ajudar na ascensão da abrupta montanha do bem; mais sinceros e dedicados amigos do que todos os que mais intimamente se vos liguem na Terra?

Num mundo em que o materialismo é a tônica, tais palavras acerca dos benfeitores espirituais soam anacrônicas - que homens de fato podem analisar os próprios pensamentos e ações e afirmar que avançaram irreprochavelmente na senda do bem, que não faltaram uma só vez e dedicaram todo seu ser ao progresso e satisfação de seus pares? O superlativo chamamento da vida, transfigurado na oculta presença dos benfeitores espirituais pede um rumo diverso do entendido pelas massas agônicas que hora se debatem sobre a Terra. A felicidade do homem é o mesmo gozo do animal, da satisfação das necessidades do corpo, do descanso necessário, de suprir a fome que atordoa e a sede que esgota, de fruir do sexo e de prazeres fugazes - a felicidade espiritual é uma quimera que não atrai, a fé no futuro é letra morta nos Evangelhos, a promessa do Reino de Deus é um distante e caduco voto. O que importa é contentar agora, imediatamente. Diante disto a sentença que versa que Deus não manda os Espíritos para que lhe achanem a estrada material da vida, mas para que lhe preparem a do futuro parecem escritas em indecifrável idioma - nem mesmo aqueles que se propõem espíritas parecem prontos a compreender tal fato. Menos ainda dispostos estão a mudança de postura consciente exigida para avançar por este caminho.

Somente aí, em insuflar a bonomia, é que se irmana a postura de Emmanuel a dos guias espirituais; todavia, em que se prestem a toda assistência que podem remotamente dar, instando bom ânimo, orientando e guiando aos esforços sinceros na senda do progresso, nenhum guia espiritual há que pressionar seu protegido, constranger ou mesmo ameaçar, indo contra o livre-arbítrio deste. E aí é que pesam os fatos contra o mentor de Chico Xavier - o modo como operou atenta contra o bom senso e contra os postulados espíritas. Caberá ao leitor se questionar, ao fazer uma análise pessoal e íntima, se tem as disposições particulares do médium mineiro para suportar um mentor espiritual, presente, atuante e ostensivamente autoritário, que o impedirá de descansar, de recuperar-se de uma moléstia, de faltar aos compromissos assumidos por razões judiciosas, de fruir conversas vãs ou sequer aprender a tocar um instrumento musical. O capiau interiorano suportou isto e muito mais ao longo de mais de setenta anos, como bem se pode ler em qualquer de suas biografias disponíveis. Quererão insistir em afirmar a missão de Chico Xavier como forma de indultar Emmanuel, ou a solicitar averiguar o resultado prático de tal aberrante relação, qual seja os mais de quatro centenas de livros psicografados, quando de fato o conteúdo destes não transforma o médium mineiro em um Espírito missionário, menos ainda Emmanuel em um benfeitor espiritual. E disto já tratamos com riqueza de minucias em artigos aqui publicados no ano de 2019, e que estão prontos a apreciação de qualquer interessado.

O que se pode concluir diante disto? Que Emmanuel não fora um guia espiritual, tampouco que haja Chico Xavier sido tão bom quanto lhe supre o mito - a este pormenor, a propósito, dão as ações de bonomia do médium muito mais um caráter publicitário do que sincero. Chico Xavier não poderia ter desejado marqueteiro melhor.

Destarte, para este mar sem fim de cabeças humanas que deambulam em busca da felicidade, desta mesma felicidade de contornos materialistas, resta aos que aí, acompanhando a marcha aspiram e pressentem a vida como uma fenômeno muito mais amplo, debruçar esforços ao estudo de doutrinas espiritualistas, das quais o Espiritismo é senão, para nós outros, o expoente máximo - e de seu Codificador, o professor Allan Kardec, surge uma voz de ânimo desde mais de cento e cinquenta anos passados, instando a um fim que o futuro reserva a todos:

Todos os Espíritos, mais ou menos bons, quando encarnados, constituem a espécie humana e, como o nosso mundo é um dos menos adiantados, nele se conta maior número de Espíritos maus do que de bons. Tal a razão por que aí vemos tanta perversidade. Façamos, pois, todos os esforços para a este planeta não voltarmos, após a presente estada, e para merecermos ir repousar em mundo melhor, em um desses mundos privilegiados, onde não nos lembraremos da nossa passagem por aqui, senão como de um exílio temporário.

terça-feira, 10 de março de 2020

Transfiguração



Em artigo aqui publicado em 4 de outubro último, sob o título Qual o Tamanho do Espírito?, vimos expor considerações acerca de aspectos poucos conhecidos e debatidos do perispírito, no tocante as suas propriedades, relativo a estatura do ser. Ao final, não repercute senão a verdade havermos concluído que muitos dos seres míticos, mitológicos e folclóricos, dentre as minúsculas fadas pouco maiores que alguns insetos, até os gigantes que se elevam acima das copas das árvores, resultam da visão de Espíritos que por tais formas se apresentam. Podem mesmo ser a reminiscência de médiuns que os viram quando em estados excitatórios da consciência, quais os sonâmbulos e os extáticos - sabe-se que em erraticidade, uma multidão infindável de indivíduos toma formas as mais diversas. Para se conceber o que há por aí, será preciso imaginar as figuras mais ostensivamente chamativas dentre o enorme espectro dos tipos humanos encarnados, dos enormemente altos acometidos de gigantismo aos mais diminutos representantes dos portadores de nanismo primordial, daqueles vitimados pela morbidez da obesidade aos mais esquálidos sujeitos, dos casos mais graves e jamais registrados pela medicina teratológica de gemelaridades parasitárias até os indivíduos mais bizarros que a modificação corporal da matéria dá um pálido esboço - sem que sejam esquecidos os mais insólitos quadros do hibridismos, em que a figura humana mescla-se a dos animais, e mesmo o surgimento dos seres mitológicos dignos dos bestiários mais ricos do medievo. Obviamente, autores  sem nenhum conhecimento da Doutrina dos Espíritos, em nome desta atestaram a existência de tais criaturas como expressões reais dos mesmos, e não pelo que de fato são, ou seja, Espíritos humanos que tomaram tais aparências sob os mais íntimos e singulares pretextos.

Contudo, a questão que se apresenta pode, para certas sensibilidades, ser igualmente perturbadora. Um dos raros fenômenos decorridos do perispírito é a transfiguração. Como operada no Evangelho de Marcos, pareceu um dos muitos milagres catalogados em tais textos sem um fim útil - claro que, por se tratar de Jesus e, considerando-se como havendo de fato ocorrido, sua transfiguração teve senão o patente objetivo de, uma vez mais, comprovar a doutrina da existência e sobrevivência do Espirito aos seus discípulos. Não tendo tal fenômeno ocorrido apenas com Jesus, mas observado ao longo de toda a história humana, o Espiritismo dele tratou como manifestação mediúnica incomum, porém absolutamente natural. Seu registro mais significativo se encontra em O Livro dos Médiuns, no capítulo VII da Segundo Parte, sob o título Da Bicorporeidade e da Transfiguração, onde Allan Kardec o define como a mudança do aspecto de um corpo vivo. A partir de então narra o ocorrido a uma mocinha natural de Saint-Étienne, cidade situada há 60km. de Lyon e capital do distrito do Loire - esta jovem de cerca de 15 anos possuía uma invulgar capacidade para operar o fenômeno da transfiguração, e com tal habilidade que reproduzia magistralmente a aparência quanto os trejeitos e expressões dos Espíritos, além de seu peso corporal. O Codificador explica:

Está, em princípio, admitido que o Espírito pode dar ao seu perispírito todas as aparências; que, mediante uma modificação na disposição molecular, pode dar-lhe a visibilidade, a tangibilidade e, conseguintemente, a opacidade; que o perispírito de uma pessoa viva, isolado do corpo, é passível das mesmas transformações; que essa mudança de estado se opera pela combinação dos fluidos. Figuremos agora o perispírito de uma pessoa viva, não isolado, mas irradiando-se em volta do corpo, de maneira a envolvê-lo numa espécie de vapor. Nesse estado, passível se torna das mesmas modificações de que o seria, se do corpo estivesse separado. Perdendo ele a sua transparência, o corpo pode desaparecer, tornar-se invisível, ficar velado, como se mergulhado numa bruma. Poderá então o perispírito mudar de aspecto, fazer-se brilhante, se tal for a vontade do Espírito e se este dispuser de poder para tanto. Um outro Espírito, combinando seus fluidos com os do primeiro, poderá, a essa combinação de fluidos, imprimir a aparência que lhe é própria, de tal sorte, que o corpo real desapareça sob o envoltório fluídico exterior, cuja aparência pode variar à vontade do Espírito. Esta parece ser a verdadeira causa do estranho fenômeno e raro, cumpra se diga, da transfiguração.

Em edição de março de 1859 da Revista Espírita, Allan Kardec volta a questão, obtendo uma série de respostas de São Luís, as quais se destacam os dados seguimentos:

3.Como se produz esse efeito?
Resp. - A transfiguração, como o entendeis, nada mais é que uma modificação da aparência, uma mudança ou uma alteração das feições que pode ser produzida pela ação do próprio Espírito sobre o seu envoltório ou por uma influência exterior. O corpo não muda jamais; todavia, em consequência de uma contração nervosa, adquire aparências diversas.

7. Parece resultar do que acabais de dizer que no fenômeno da transfiguração podem ocorrer dois efeitos: 1º_Alteração dos traços do corpo real em consequência de uma contração nervosa; 2º_Aparência variável do perispírito, tornado visível. É assim que devemos entender?
Resp. - Certamente.

Com efeito, desde que o perispírito pode isolar-se do corpo e tornar-se visível; que, por sua extrema sutileza, pode adquirir diversas aparências, conforme a vontade do Espírito, concebe-se sem dificuldade que assim ocorra com uma pessoa transfigurada: o corpo continua o mesmo; somente o perispírito mudou de aspecto. Mas, perguntarão, em que se transforma o corpo? Por que razão o observador não vê uma imagem dupla, a saber, de um lado o corpo real e do outro o perispírito transfigurado?

Eximindo-se de estender o assunto aqui, apesar de tais questionamentos, na edição de maio de 1861 da Revista Espírita, retoma ele a abordagem, de tal feita referindo-se ao seguimento acima anotado de O Livro dos Médiuns; observemos:

4. Se, no aumento de volume e peso da mocinha das cercanias de Saint-Étienne, o fenômeno se produzia pelo adensamento de seu perispírito, combinado com o de seu irmão, como é que os olhos dela, que deviam ter ficado no mesmo lugar, podiam ver através da espessa camada de um novo corpo que se formava diante deles?
Resp. - Como veem os sonâmbulos com as pálpebras fechadas: pelos olhos da alma.

5. No fenômeno citado o corpo aumentou. No fim do capítulo VII está dito ser provável que se a transfiguração tivesse ocorrido sob o aspecto de uma criancinha, o peso teria diminuído proporcionalmente. Não posso me dar conta, conforme a teoria da irradiação e da transfiguração do perispírito, de que este possa tornar-se menor que um corpo sólido. Parece-me que o último deveria ultrapassar os dois perispíritos combinados.
Resp. - Como o corpo pode tornar-se invisível pela vontade de um Espírito superior, o da mocinha também se torna invisível, pela força de um poder independente de sua vontade. Ao mesmo tempo, combinando-se com o do menino, seu perispírito pode formar e realmente forma a imagem dessa criança. A teoria da mudança do peso específico te é conhecida.

Infere-se, portanto que algumas questões mantiveram o pensamento de Allan Kardec ocupado no tocante a transfiguração, e no particular deste caso facultado pela jovem médium stéphanoise. Tais mesmas questões de apelo inegável para qualquer estudante do Espiritismo - afinal se concebe que a garota tinha seu perispírito combinado ao perispírito do Espirito comunicante, ao qual se tornava visível, podendo mesmo tornar-se tangível ao ponto de seu peso ser mensurado. Enxergaria a médium, envolta pela opacidade de tal 'casca' perispiritual? Claro, pelos olhos da alma, foi a resposta que o Codificador obteve. Manifestando um Espírito superior a sua estatura, nenhuma dificuldade em se compreender que a médium ficara contida em seu imo, mas e se o caso fosse oposto? Acaso um médium de boa altura, um adulto, viesse manifestar o Espírito de uma criança? - do mesmo modo compreende-se que parte do corpo do médium, a excedente na diferença de sua altura frente a do Espírito, tornar-se-ia invisível. Não é, portanto, absurdo concluir que o médium e o Espírito neste fenômeno vem ocupar um mesmo espaço, imprescindível para operar-se a transfiguração - diversamente das aparições tangíveis, onde o médium, frequentemente em repouso em uma cadeira, cede parte de seu fluido para combiná-lo ao do Espírito, que ganha os ambientes de modo independente e com certa autonomia.

Na mesma edição de maio de 1861 da Revista Espírita, em Conversas Familiares de Além Túmulo. Dr. Glass, acha-se transcrito diálogo de Allan Kardec com o Espírito deste médico desencarnado precocemente aos 35 anos, em fevereiro de 1861, registrado como fervoroso espírita. Algumas das questões aí notadas são bastante interessantes e vão aprofundar os estudos aqui apresentados:

Fazeis distinção entre o vosso Espírito e o vosso perispírito? Qual a diferença que estabeleceis entre as duas coisas?
Resp. - Penso, logo sinto e tenho uma alma, como disse um filósofo. Não sei mais que ele a respeito. Quanto ao perispírito, é uma forma, como sabeis fluídica e natural; mas buscar a alma é querer buscar o absoluto espiritual.

Credes que a faculdade de pensar resida no perispírito? Numa palavra, que a alma e o perispírito sejam uma só e a mesma coisa?
Resp. - É absolutamente como se perguntásseis se o pensamento reside no vosso corpo. Um se vê; o outro se sente e se conhece.

Assim, não sois um ser vago e indefinido, mas um ser limitado e circunscrito?
Resp. - Limitado, sim; mas rápido como o pensamento.

Quereis indicar o lugar que estais aqui?
Resp. - À vossa esquerda e à direita do médium.

Fostes obrigado a deixar o vosso lugar para mo ceder?
Resp. - Absolutamente: nós passamos através de tudo, como tudo passa através de nós; é o corpo espiritual.

Assim, estou mergulhado em vós?
Resp. - Sim.

Por que não vos sinto?
Resp. - Porque os fluidos que compõem o perispírito são muito etéreos, não suficientemente materiais para vós; mas pela prece, pela vontade, numa palavra, pela fé, os fluidos podem tornar-se mais ponderáveis, mais materiais, e mesmo afetar o tato, o que acontece nas manifestações físicas e é a conclusão deste mistério.

Resposta a que Allan Kardec observa: “Suponhamos um raio luminoso penetrando num local escuro; pode-se atravessá-lo, nele mergulhar, sem lhe alterar a forma nem a natureza. Embora esse raio seja uma espécie de matéria, é tão sutil que não oferece nenhum obstáculo à passagem da matéria mais compacta. Dá-se o mesmo com a coluna de fumaça ou de vapor que, igualmente, pode ser atravessada sem dificuldade. Somente o vapor, por ter mais densidade, produzirá no corpo uma impressão que não produz a luz.” - prossegue ele com as indagações ao falecido doutor.

Suponhamos que neste momento pudésseis tornar-vos visíveis aos olhos da assembleia. Que efeitos produziriam nossos dois corpos, um dentro do outro?
Resp. - O efeito que vós mesmo imaginais, naturalmente; todo o vosso lado esquerdo seria menos visível que o direito; estaria num nevoeiro, no vapor do perispírito; o mesmo ocorreria do lado direito do médium.

Suponhamos agora que vos pudésseis tornar não apenas visível, mas tangível, como já aconteceu algumas vezes. Isto poderia acontecer, conservando a situação em que estamos?
Resp. - Forçosamente eu me mudaria pouco a pouco de lugar; eu me construiria ao vosso lado.

Há pouco, quando falei somente da visibilidade, disseste que estaríeis entre mim e o médium, o que indica que teríeis mudado de lugar. Agora, para a tangibilidade, parece que vos afastais ainda mais. Não seria possível tomardes as duas aparências conservando nossa posição inicial, eu ficando mergulhado em vós?
Resp. - Não, absolutamente, já que respondo a pergunta. Eu me reconstruiria ao lado. Não me posso solidificar naquela posição; só posso aí ficar se permanecer fluídico.

O perispírito é maleável aos caprichos do Espírito; pode expandir ou retrair, ou penetrar matéria sólida, permitindo ainda que dois seres ocupem um mesmo espaço - se no primeiro caso o Espírito se manifesta visível e tangivelmente a ponto de encobrir a médium, é porque a junção do fluido de ambos faculta tal possibilidade; diversamente do aventado por Allan Kardec ao Espírito do Dr. Glass, em que a tangibilidade nada tem que ver com a transfiguração, e certamente os fluidos aí usados o seriam de modos diversos. Mas, preciso é atentar para o fato de que o Codificador não fora médium ostensivo, a tal que nenhuma impressão lhe causou estar mergulhado no Espírito do Dr. Glass. Contrariando o consagrado pela cultura popular, em que a penetrabilidade dos fluidos sempre permitiu a fantasmas a habilidade de atravessar matéria sólida, aqui se verifica que podem muito bem permanecer imersos nela, como que integrando momentaneamente um obstáculo ao qual lhes é insensível e que, imagina-se, para muitos chega a ser invisível. O diálogo com o Dr. Glass é um seguimento transcrito de bom tamanho, levando o leitor a concluir que haja se tratado de uma interação algo longa, o que não causou nenhuma perturbação ao Codificador. Não nos surpreende, portanto, as visões de médiuns que hajam reportado Espíritos ocupando o mesmo assento que um encarnado durante palestras e cursos - parece impactante? não menos é imaginar uma multidão invisível de Espíritos desempenhando os afazeres dos encarnados, mesclando-se a estes, operando máquinas, conduzindo veículos, ministrando aulas, usando sanitários, participando de atividades desportivas, orando em templos e igrejas, permitindo-se o hedonismo de festas e espetáculos, enfim, tudo quanto constitui ocupação humana.

Pode-se pensar equivocadamente, principalmente os defensores da ideia segundo a qual existem locais circunscritos destinados a conter Espíritos, que estes 'desgarrados' são necessariamente maus ou como preferem reputá-los, trevosos - que as trevas residem nos corações e mentes dos homens, filha esta da ignorância das Leis Naturais, é o saber esperado de todo espírita. Como propugna a Doutrina dos Espíritos, os Espíritos compõem toda uma população invisível, a mover-se em torno de nós; estão por toda parte no espaço e ao nosso lado, vendo-nos e acotovelando-nos de contínuo.
Há toda sorte de indivíduos aí, mas por certo nenhum que escape ao esperado para o gênero humano encarnado na Terra.

Algumas pessoas a quem foi exposto o conteúdo do presente artigo questionaram se não haveria, pela contínua atividade dos Espíritos em meio e através dos encarnados a chamada incorporação - faltou-lhes, claro, apresentar a questão 141 de O Livro dos Espíritos. O termo é, infelizmente, ainda de uso corrente nos círculos que se acreditam espíritas, e acaba por traduzir erroneamente as mais variadas medianimidades, como a psicofonia e a psicografia. O Espírito não fica encerrado no corpo físico, visto que sua natureza, como explanado no artigo a que reportamos no início deste, difere do que se compreende por matéria - aliás, está penetrabilidade, sua particularidade reproduzida pelo perispírito, leva o estudioso a especulações sem fim acerca da íntima natureza do ser espiritual, sem um termo satisfatório, contudo. Outras indagações mais facultadas por este tema tão interessante guardam na mediunidade suas dúvidas mais nevrálgicas - informes contaminantes da literatura mediúnica vem exortar a confusão. Para aclarar a questão em definitivo, ou antes para compreender corretamente o mecanismo da mediunidade, um pequeno trecho de Estudos sobre os Possessos de Morzine, ensaio publicado na Revista Espírita em seu número de dezembro de 1862, encerra este presente opúsculo com as sapienciais palavras de Allan Kardec:

Quando um Espírito quer agir sobre uma pessoa, dela se aproxima e a envolve, por assim dizer, com o seu perispírito, como num manto; os fluidos se interpenetram, os dois pensamentos e as duas vontades se confundem e, então, o Espírito pode servir-se daquele corpo como se fora o seu próprio, fazê-lo agir à sua vontade, falar, escrever, desenhar, etc. Tais são os médiuns.