quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

A Importância dos Romances Mediúnicos



Deve-se publicar tudo quanto dizem os Espíritos? perguntaram a Allan Kardec certa feita, ao que ele respondeu em artigo da Revista Espírita em seu número de novembro de 1859 com uma bem argumentada negativa. O panorama da literatura mediúnica dos últimos cem anos é o testemunho límpido da absoluta ignorância ou desobediência as instruções do Codificador – fosse diferente, não haveriam tantos Espíritos pseudo-sábios sendo adorados como luminares do oculto e da sabedoria universal de todos os tempos. Claramente não se pode imputar ao desconhecimento de tal passagem este montante de obras existentes, mas ao arbítrio puro e simples de instituições interessadas em fazer da literatura mediúnica um negócio, um meio de vida e acumulo de fortunas; não fosse tão rentável não haveriam tantas editoras alimentando o seguimento. Não se pode, outrossim, deixar de afirmar que a oferta atende a demanda, ou seja, leitores ignorantes ou descompromissados com a própria instrução, são os consumidores de tal literatura, absorvendo tais narrativas como expressão cabal da verdade espírita.

Vimos pessoalmente alguns esboços de histórias narradas por Espíritos que, por vontade dos médiuns envolvidos, não foram desenvolvidas, não tiveram seguimento, e, até onde pudemos saber, não foram continuadas por outros. Todavia, uma amostra que, ao que tudo indica está completa, nos foi ofertada por um conhecido de nome Joaquim, um desses indivíduos de grande potencial que, infelizmente, insiste em não dar a devida atenção as obras kardecianas. Segundo ele, o manuscrito fora obtido por um senhor à beira de um rio, onde este habitualmente pescava – não se sabe se por meio da psicografia ou fruto de inspiração; menos ainda se fora trabalho de um só folego ou haurida ao longo de um dado tempo. Fato é que o sujeito imputa a autoria a inteligência oculta de um Espírito. A obra intitulada Pergaminhos do Arcanjo se compõem de sete seguimentos ou capítulos distintos em que o escritor, tomando para si a identidade de Lúcifer, o anjo caído da tradição judaico-cristã, verseja em rimas acerca da sua influência sobre a existência humana. O texto deixa claro se tratar de uma produção sincrética, que cala mais profundamente a mentalidade do que é chamado pejorativamente de catopírita, ou aqueles que se consideram espíritas, sem que hajam aberto mão da doutrina católica, ainda que de modo inconsciente.

A suposição da existência de um Espírito superior que, por qualquer razão, haja involuido é contrário aos postulados da Doutrina dos Espíritos – mas a mítica figura de Lúcifer é poderosa, e sob quaisquer argumentos ela será explicada, justificada, tomada como real, ainda que para tanto seja preciso adequar-se este ao Espiritismo. Assim também é feito com a virgindade de Maria, mãe de Jesus, entre outras passagens. Busca-se sempre adaptar as passagens mais obscuras, hipotéticas ou fantásticas a fim de encontrar-lhes argumentos justificáveis – por meio de brincadeiras sexuais que não envolviam a penetração propriamente dita, argumentaram certos palestrantes supostamente espíritas que Maria teria tido contato com o sêmen de José, gerando assim a concepção miraculosa. Qualquer exegeta sabe que a imaculada concepção parte da interpolação de histórias e tradições de avatares e luminares muito comuns e populares no oriente àquele tempo – para citar um exemplo, Krishna fora parido de uma virgem. Faz-se necessário preservar o hímen sagrado de Maria a qualquer custo, e o Docetismo herético do medievo ressurgido no advento de Roustaing é apenas uma tentativa mais neste sentido. A teima em tal tema se deve a mitificação da virgindade, como sinônimo de pureza de alma – o espírita deve saber que o Espírito é tudo e o corpo é nada, certo?

A figura de Lúcifer traz a memória a obra O Abismo de Rafael Ranieri, amicíssimo de Francisco Cândido Xavier, livro este inspirado, e sob orientação do Espírito André Luiz é verdadeiro desafio a qualquer dos sectários deste, dado o nível dantesco de suas ‘revelações’. No capítulo 14 da referida, sob o conveniente e sugestivo título A Legião, o próprio arcanjo caído dá as caras, e é descrito da seguinte maneira:

Sob pesadas correntes, um ser como jamais foi dado ver a criaturas da superfície da Terra ali se encontrava prisioneiro. Conquanto a fisionomia lembrasse a fisionomia de um homem ou de um espírito de forma humana, estava tão distanciado de nossa espécie quanto um dinossauro de um homem. Descomunal, pernas que lembravam colunas de um edifício, pés que mediam muitos metros de altura, braços cabeludos, embora de pele amarelada e ao mesmo tempo esfogueada, rosto enorme e mais de quinze metros onde dois olhos maus avançavam chamas.

No cadinho de bom senso restante nos aderentes de André Luiz, alguns critérios se interpõem para recusar tais passagens, e as obras de onde foram extraídas. Não obstante, se Lúcifer parece carcomido ante o caminhar natural do progresso das ideias, mesmo nos círculos mais crédulos da suposta prática do Espiritismo, Maria e sua hipotética figura excelsa mantém salutares raízes nas mais vulneráveis mentalidades. No capítulo XIV de O Evangelho Segundo o Espiritismo, Allan Kardec apenas constata o que está expresso nos Evangelhos canônicos ao tratar da família de Jesus, e a inescapável persona de sua mãe.

Pelo que concerne a seus irmãos, sabe-se que não o estimavam. Espíritos pouco adiantados, não lhe compreendiam a missão: tinham por excêntrico o seu proceder e seus ensinamentos não os tocavam, tanto que nenhum deles o seguiu como discípulo. Dir-se-ia mesmo que partilhavam, até certo ponto, das prevenções de seus inimigos. O que é fato, em suma, é que o acolhiam mais como um estranho do que como um irmão, quando aparecia à família. João diz positivamente (7:5), ‘que eles não lhe davam crédito.’ Quanto a sua mãe, ninguém ousaria contestar a ternura que lhe dedicava. Deve-se, entretanto, convir igualmente em que também ela não fazia ideia muito exata da missão do filho, pois não se vê que lhe tenha seguido os ensinos, nem dado testemunho dele, como fez João Batista. O que nela predominava era a solicitude maternal.

Uma solicitude maternal reconhecida como traço do povo hebreu de todos os tempos.

Desditosamente a figura de Maria é adotada, reverenciada e evocada como Espírito superior, suposta madrinha ou espécie de comandante de legiões de Espíritos benfazejos que partem ao socorro dos necessitados, ou cousa que o valha. Francisco Cândido Xavier, numa demonstração clara de culto e do caráter católico pelo qual se pautou a vida toda, em certa ocasião, como fizemos notar em postagem do presente blog datada de 6 de setembro do ano passado, apelou a Emmanuel, supondo-lhe igualmente superior, a que pedisse orientação a mãe de Jesus acerca das denúncias que lhe fazia o sobrinho Amauri Pena Xavier. Claro, o obsessor daria uma resposta qualquer para manter dócil o médium mineiro, seu proceder comum.

O culto mariano tem suas raízes na pré-história, na adoração a entidades femininas, deusas da fertilidade que garantiriam a boa colheita do ano vindouro. Mas, sua antecessora direta, a que o cristianismo nascente adotou por oportuna interpolação é Ísis, que legou-lhe alguns epítetos honoríficos tais como rainha do céu, mãe de deus ou nossa senhora. A influência pagã nas práticas cristãs é, por si só, uma questão que daria mote a muitos artigos – diversos autores no passado, estudiosos do primitivo cristianismo dedicaram obras inteiras a questão, cabendo ao leitor buscar tais tomos, que são de interesse candente ao estudioso espírita, por certo.

Tal manuscrito cuja cópia temos em posse, os Pergaminhos do Arcanjo, são o exemplo flagrante do que se pode obter ao sustentar a crendice e a fé cega, um ilustrativo paradigma que, trabalhado pela maquinaria mercadológica pode resultar em somas consideráveis, sem nenhum acréscimo que não seja exclusivamente material. Não se deve nem se pode publicar tudo quanto digam ou escrevam os Espíritos; não apenas para se evitar explorar a ignorância alheia, mas para se pautar, para variar um cadinho, nas instruções do Codificador. Quantos médiuns e quantos editores preferem o confortável desconhecimento das bases doutrinárias, golpeando de morte a fé raciocinada? A verdade espreita os incautos e os levianos na mesma medida, e ela cobrará seu preço em suas consciências.


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Velhos livros, novas leituras - "Transição Planetária - Um Grito de Alerta"


Ariston Teles é hoje reconhecido como o 'incorporador' de Francisco Cândido Xavier - e o termo, usado equivocadamente, é este mesmo. Produto do meio, e não da Doutrina dos Espíritos, Ariston Teles fora amigo do médium mineiro, um dos inumeráveis que, após a morte deste em 2002, deu-se a tarefa de enfeixar em livro as reminiscências de tal relação. Chico Xavier é, e permanecerá sendo por muitos anos ainda, um ídolo cultuado, independentemente do que prescreve o Espiritismo acerca da questão. Aos que aderiram a esta crença carente de provas segundo a qual o médium residente em Brasília seria capaz de permitir manifestar-se ostensivamente a Chico Xavier, a que se reconhecer a emulação competente dos maneirismos e tom de voz do falecido - é real? Descrer do fenômeno em particular é recomendável, ainda que a psicofônia seja medianimidade factual; porém, provar que se trata do matuto de Pedro Leopoldo, eis aí o desafio, e o é para os aderentes de sempre, antigos e novos, em devoção.

Nos idos de 1996, Ariston Teles arriscou-se literariamente com esta obra em nossa posse, de título chamativo e apelativo. Nos anos que antecederam a mudança do calendário gregoriano adotado no ocidente, o milenarismo era o furor, conjurando toda sorte de conjecturas acerca do final dos tempos - filmes-catástrofe não deixavam as salas de cinema, enquanto séries de TV prescreviam invasões alienígenas e o colapso civilizatório antevisto pelo bug do milênio. O dito bug não veio, e os alienígenas também não, e a folhinha de 1999 foi trocada pela de 2000; lá se vão vinte anos em que novas formas de pensar e prever o fim do mundo pululam pelas mídias. A geopolítica global incute no homem comum o medo ante a mudança climática, prometendo extinção enquanto terraplanistas ressurgem num movimento pretensamente sério, maculando o conhecimento científico das eras. Naqueles idos o ensejo pedia uma obra milenarista, e terrorista, que insuflasse temor nos corações dos hipotéticos espíritas brasileiros - Ariston Teles não deixou passar, e ainda que reconheça no prefácio deste que o livro não pode ser reconhecido como tal por falta de conteúdo, ei-lo em sua existência como objeto que evoca o intelecto, embora este, singularmente não possa se afirmar que o faça.

Ramatis, um Espírito flagrantemente pseudo-sábio previra, a seu turno, agônicas convulsões de fin de sieclè que, como esperado, não ocorreram. Nesta obra, Ariston Teles alinha-se aos visionários do apocalipse, tendo nos caracteres próprios de uma sociedade em transição os sinais precedentes do Armagedom - ele assim os identifica. Todavia, antes que os fundamentar com argumentos de bom volume, nota-se, e ele o aponta, que cada página registra os tópicos de uma palestra - onde estaria o texto desta palestra? Não atinou ele para tomar nota disto, transcrevendo seus dizeres em seguida? A gramatura do papel que compõe as páginas, bastante denso, contribui para a sensação de um livro confeccionado com o fito oportunista de prover o milenarismo, somando às sensibilidades mais fragilizadas o terrorismo próprio que acompanha os fins de ciclo dos calendários. Fatores naturais pouco ou nenhuma influência sofrem pelo modo como o homem conta o tempo, como o divide e subdivide, como classifica e cria datas com significados próprios e especiais. O autor, o brasiliense que alega falar por Chico Xavier, aqui se deixa levar pelo zeitgeist, sonegando-se a uma abordagem mais crítica para a questão, ainda de interesse tão nevrálgico para certos indivíduos.

O fim do mundo não deveria preocupar, mas que tantas pessoas o temam é assunto oportuno para um estudo - não para o momento, contudo. Importa notar, para tal o presente, que a obra de Ariston Teles foi aqui escolhida para dar inicio a esta sessão justamente por sua condição sui generis: como livro não se sustenta; como obra alvitrada espírita, é um atentado a própria Doutrina. E o é por seu extremo oportunismo, na ambição de amealhar algumas somas em vista da iminência do novo século, e do novo milênio. Não é um livro amparado pelas bases da Doutrina dos Espíritos que Allan Kardec codificou; não aborda a questão a que se propõe de um ângulo seguramente crítico, historiográfico e espírita, o que garantiria, por certo, uma obra imensamente mais interessante, mesmo que seu autor insistisse na defesa de uma visão catastrofista da realidade. Aqui, contudo, não passa de um caça-níqueis em formato de livro; observa-se a capa e seus dizeres sensacionalistas, bem como o título falacioso, visto que a transição planetária prescrita pelo Espiritismo não é neste abordada; pior, fica-se com a certeza que o termo, para Ariston Teles é como que um sinônimo para o fim do mundo. Recomenda-se cuidado com obras de tal qualidade, pois são comuns; aninham-se sobre a corruptela de obra espírita, sem que sequer Allan Kardec haja sido evocado, numa prática ordinária que visa lesar o leitor pelo embuste barato, que pode sair caro.