domingo, 12 de abril de 2020

Velhos Livros, Novas Leituras - "As Colônias Espirituais e a Codificação"


Parafraseando um esquecido gênio brasileiro, a verdade é impopular - segue-se que os defensores da erraticidade espírita, aquela mesma revelada pelos Espíritos da Codificação a Allan Kardec são, diuturnamente, mais e mais relegados ao ostracismo que a verdade lhes impõe. Colônias Espirituais, Umbral e cousas do mesmo gênero não existem; assim o sabia o Codificador, assim sabiam aqueles que leram e estudaram as Obras Básicas e lhe foram coetâneos. E assim sabem aqueles poucos que, insulados, deram-se a debruçar sincera diligência a desvelar uma Doutrina que clama por seu lugar ao Sol, constrangida a um canto escuro da História por seu abominável parasita teratológico, que atende pelo nome de movimento espírita brasileiro. Paulo Neto é um, dentre milhares de diminutos organismos que constituem o microbioma de tal monstruosidade, deambulando sobre sua derme na feliz marcha dos ignorantes. Obviamente, a qualquer abalo que atrapalhe o caminho, muitos hão de se insurgir contrários, forçando-se ao embate, e a defesa da criatura da qual vivem. Assim, ante um alarido qualquer que cogitou pela inexistência das Colônias Espirituais, fez surgir a presente obra, de ponta a ponta um completo equívoco.

Para defender a realidade das Colônias Espirituais, qualquer autor precisará de bases sólidas e, num livro que tem a Codificação em seu título, era esperado que Allan Kardec fosse a grande estrela a ser conclamada a demonstrar, inescapavelmente, que tais locais de circunscrição de Espíritos são uma realidade axiomática. No entanto, como isto não ocorre, por que nas Obras Básicas nada há que possa embasar uma mentira de tal monta, o autor precisa apanhar do prestígio e obra de outros autores que, a exemplo dele, propugnam dessa ignomínia. O baluarte a quem apela não é senão outra que Yvonne A. Pereira, figura incensada por sua mediunidade - Devassando o Invisível é a obra escolhida; desde já se saiba que em seu conteúdo é citado cinco vezes o Espírito André Luiz, adjetivado por termos meritórios quais 'eminente' e 'ilustre', um proceder que, para efeito de fonte isenta e segura, o autor talvez devesse ter se esmerado mais em buscar outra. Além disso, a autora carioca falecida em 1984 teceu curiosa consideração acerca da mediunidade:

Ora, sendo a mediunidade, em geral, ao que se observa, uma sensação ou uma percepção, participante de determinadas funções da consciência; e sendo estas entendidas como potências da alma, que traduzem a sua individualidade, acreditamos que todas as criaturas sejam dotadas dessa faculdade, em grau maior ou menor, dependendo de um estado mais ou menos acentuado de desenvolvimento, ou experimentação. Todavia, parece-nos que, no estado de desencarnação ou de desprendimento espiritual, esse atributo da nossa individualidade anímica emerge espontaneamente, visto que, no que a nós própria respeita, certos acontecimentos, desenrolados durante aquele segundo estado, parecem confirmar nossa impressão.

Mediunidade é comunicabilidade, um atributo do homem como a fala, e justamente como esta pois porque se destina a comunicar inteligivelmente uma ideia, uma mensagem, enfim, algo útil, bom e, mais que isto, verdadeiro - não é uma sensação, como um comichão ou prurido, menos ainda uma percepção, dado que o vocábulo tem um sem número de significações, de tal conta que, podendo tudo significar, nada expressa. O uso de tal vocábulo aqui, em particular, ecoa outras tantas palavras que são usadas correntemente pelos espíritas e que, analogamente, são desprovidas da capacidade de representar corretamente aquilo a que indicam - um bom exemplo é a palavra energia, amiúde usada para referir-se ao fluido, mas não sabendo senão superficialmente, ou nada sabendo acerca do fluido, o espírita tem de expressar-se, ainda que erroneamente, de algum modo. Fluido é matéria, e energia um atributo desta - mas há energia no fluido? O Espiritismo não o indica, e quem em nome dele assim o afirmar positivamente precisará prová-lo. Outro exemplo de emprego de terminologia errada, presente na obra, diz respeito a constante referência a mediunidade de incorporação, ou apenas incorporação, o que não existe e aponta, em realidade, para a psicofonia; além, é claro do infame desdobramento, ou mediunidade de desdobramento, que não define cousa alguma, embora se refira a mediunidade sonambúlica.

A leitura deste enxerto de Devassando o Invisível parece indicar que, para a autora, a mediunidade é também atributo do Espírito, configurando novo erro. Aliás, afirma, outrossim, que a mediunidade é desconhecida dos estudiosos do Espiritismo, ao que apenas se constata por tais trechos que ela não deixara nada a desejar a estes, e embora enaltecida e vangloriada, Yvonne A. Pereira não vai muito além do que se vê de parte dos médiuns que são mote de culto da choldra espírita. Ainda que pela extensão venhamos a pecar, outra passagem interessa para um exame mais atento - acaso firme-se em real dificuldade à autora definir a mediunidade, ou crê-la presente no Espirito, vejamos como se sai ao lidar com outro fundamento do Espiritismo, o livre-arbítrio. Para tanto, e afim de vir encerrar tal obra, ela deseja abordar assunto que seja objeto das preocupações de companheiros de ideal espírita; destarte, resulta após aguardar que lhe venha algo por inspiração, em considerar o seguinte tema:

Das teses aventadas, uma nos parecera a mais sedutora: procurar saber, de nossos mentores espirituais, a razão pela qual certos Espíritos desencarnados se supõem ainda vivos, 'qual o mecanismo que os leva a se considerarem homens carnais' quando, em verdade, muitas vezes, há séculos que estão separados da condição humana.

Não será demasiado vir lembrar o que responderam a Allan Kardec os Espíritos em O Livro dos Médiuns acerca de seu papel como guias dos homens em suas descobertas - “Que mérito teria ele (o homem), se não lhe fosse preciso mais do que interrogar os Espíritos para tudo saber? A esse preço, qualquer imbecil poderia tornar-se sábio.” - ou ainda, ao risco a que se expôs por assumir tal atitude, como que ignorando que há sempre uma multidão de Espíritos prontos a tomar a palavra, sob qualquer pretexto; tais prevenções, todavia, não a impediram de, destemidamente partir junto de um suposto enviado do Espírito do médico Adolpho Bezerra de Menezes, bastião moral febiano. Ladeada por este suposto emissário, adentra pocilga onde seus ocupantes, maltrapilhos Espíritos divertem-se com álcool, tabaco, conversas infrutíferas e muita cantoria. Informa seu cicerone que tais sujeitos intervinham negativamente na vida dos encarnados. Questiona Yvonne se não haveria meios 'que os impeçam de (cometer) tais monstruosidades', ao que o Espírito responde:

(...) será oportuno considerar que, da mesma forma, monstruosidade será a sociedade deixar um órfão, ou um filho de pais miseráveis ou delinquentes, criar-se ao abandono, pelas ruas... E a sociedade o faz agora, e o fez com estes mesmos que está vendo aqui... Monstruosidade será também omitir providência humanitária para que o jovem abandonado, ou o pobre, se instrua, eduque e habilite de modo a furtar-se à humilhação da ignorância, prendendo-se na escola do dever e da honestidade... No entanto, estes que aqui vemos foram banidos pela sociedade, que lhe não facilitou escola, nem educação, nem exemplos bons, senão a dureza de coração com que os tratou... Não se instruíram porque não tiveram meios de remunerar professores, e as escolas públicas nem sempre são acessíveis aos deserdados, como estes foram... Não puderam educar-se porque o lar é que modela os caracteres, e eles, desde a infância, viveram perambulando pelas ruas... Tal como os vemos, são ainda frutos da sociedade... Sua impiedade foi libada na impiedade que receberam... Tornaram-se criminosos inveterados, na Terra e no Além, porque foram vítimas do crime de egoísmo da sociedade... Portanto, pertencem à sociedade terrena, esta é afim com eles e eles vivem nos ambientes que lhes convêm...

Seguintemente, o Espírito afirma caber ao encarnado, por vontade e alvitre, contrapor as influências de Espíritos de tal natureza - mas esta inferência após um discurso tão afinado aos preceitos da sociologia materialista, que propõe impor a culpa do criminoso às suas vítimas, é de indagar se não caberia a mesma lógica para com estes Espíritos, tornados obsessores, quando de seu contato com os encarnados. Ou seja, que culpa há por parte da sociedade, uma vez que ela não anula o livre-arbítrio do ser? Não há tanta miséria que sufoque absolutamente todas as alternativas do sujeito encarnado por manter-se, senão ativo nas lides benfazejas da bonomia, ao menos afastado do delito e do vício. O proceder adotado por este Espírito a acompanhar Yvonne A. Pereira é um denunciador infalível do alcance de seus saberes, de seu progresso - deve-se considerar sua fala? Não parece haver a intenção de instar culpa ao leitor? Não seria um procedimento mais correto tratar da questão por outros meios?

No mais, o que importa para Paulo Neto está apartado do mourejo com que Yvonne A. Pereira lida com o livre-arbítrio, pois que a médium, igual defensora da existência das Colônias Espirituais, faz referência a obra de outros tantos autores a fim de, a seu turno, também dar base a esta descabida doutrina - assim, além de Ernesto Bozzano e George Vale Owen, Léon Denis é arrolado para esta reunião de insanos. Ainda não foi a vez de Allan Kardec integrar as festividades. Um Paulo Neto entusiasmado vem concluir:

Portanto, com esses três autores citados, a médium Yvonne A. Pereira conseguiu nos convencer da realidade das colônias espirituais, ou construções diversas no mundo espiritual. Sim, ela com as provas apresentadas, venceu o nosso 'achismo'.

Notoriamente, a figura de Léon Denis é a que salta aos olhos do autor, que sentencia:

O que achamos fantástico é a menção que Yvonne faz de personalidades renomadas terem comungado com essa ideia; entre elas, e de um modo especial, cita nada menos que Léon Denis (1846-1927), que sabemos ter sido o continuador de Kardec, após o seu desencarne.

Mais adiante, prossegue:

Apresentar Léon Denis como defensor da causa foi algo como que um tiro certeiro no alvo, porquanto não há o que se falar de serem antidoutrinárias as colocações dele e, muito menos, que tenha dito absurdos, produto de sua imaginação.

Lamentavelmente para Paulo Neto, o druida de Lorena embora respeitável, não avança intacto ao escrutínio de um análise mais atenta. Em Depois da Morte, os leitores hão de encontrar o trecho seguinte:

É perispírito que garante a manutenção da estrutura humana e dos traços fisionômicos, e isto em todas as épocas da vida, desde o nascimento até a morte. Exerce, assim, a ação de uma forma, de um molde contrátil e expansível sobre o qual as moléculas vão incorporar-se. Esse corpo fluídico não é, entretanto, imutável; depura-se e enobrece-se com a alma; segue-a através das suas inumeráveis encarnações; com ela sobe os degraus da escada hierárquica, torna-se cada vez mais diáfano e brilhante para, em algum dia, resplandecer com essa luz radiante de que falam as Bíblias (antigas) e os testemunhos da História a respeito de certas aparições. É no cérebro desse corpo espiritual que os conhecimentos se armazenam e se imprimem em linhas fosforescentes, e é sobre essas linhas que, na reencarnação, se modela e forma o cérebro da criança.

Léon Denis parece omitir um fato conhecido e reconhecido de todo estudioso do Espiritismo acerca da natureza do perispírito - ele afirma ser este envoltório fluídico um apenas, acompanhando o Espírito em suas múltiplas vidas; verdade, mas apenas em parte. Transladado a outro mundo, este corpo fluídico é abandonado como a uma veste, e tão rápido quanto se pode supor a velocidade do pensamento, visto que é constituído da matéria comum aos elementos do orbe onde se encontra o Espírito. Faltou aqui um cadinho mais de capricho na elaboração da questão por parte de Denis - a ideia que evoca acerca dos contornos diáfanos e radiantes que o perispírito assume no decurso do progresso do Espirito, assim apresentada, pede explicações acessórias que aí não se encontram. Aspecto de fato indefensável é sua afirmação de haver um cérebro no perispírito - um pioneirismo que se refletiria décadas após, e de modo mais ostensivo na literatura do Espírito André Luiz. Um infeliz erro, lamentavelmente.

Em O Problema do Ser, do Destino e da Dor, Léon Denis vai contra O Livro dos Espíritos em sua questão de número 298, ao defender a existência das almas gêmeas, ou como denomina Allan Kardec, metades eternas:

Muitas almas, criadas aos pares, são destinadas a evoluírem juntas, unidas para sempre na alegria como na dor. Deram-lhes o nome de almas-irmãs; o seu número é mais considerável do que geralmente se crê; realizam a forma completa, mais perfeita de vida e do sentimento e dão às outras almas o exemplo de um amor fiel, inalterável, profundo.

Sobram lirismo e poesia, falta conhecimento ao venerável e suposto continuador de Allan Kardec. Quanto a suposição que versa Denis como herdeiro e continuador da missão do Codificador, aliás reiterá-se, defendida na obra de Paulo Neto, vale uma judiciosa observação. Para tanto, algumas passagens de Obras Póstumas, em que Allan Kardec solicitando instruções acerca de um possível sucessor, obtém uma longa resposta, da qual se destacam os seguintes trechos:

A ti te incumbe o encargo da concepção, a ele o da execução, pelo que terá de ser homem de energia e de ação. Admira aqui a sabedoria de Deus na escolha de seus mandatários: tu possuis as qualidade que eram necessárias ao trabalho que tens de realizar, porém não possuis as que serão necessárias ao teu sucessor. Tu precisas da calma, da tranquilidade do escritor que amadurece as ideias no silêncio da meditação; ele precisará da força do capitão que comanda um navio segundo as regras da Ciência. Exonerado do trabalho de criação da obra sob cujo peso teu corpo sucumbirá, ele terá mais liberdade para aplicar todas as suas faculdades ao desenvolvimento e à consolidação do edifício.

Fora Léon Denis este homem? A cada um caiba examinar a biografia de tal venerável pioneiro das lides espíritas, ir ao seu encontro por suas obras, seus artigos, tudo quanto legou e acerca dele foi composto para se responder, de fato, tal indagação - de nossa parte, cremos ter sido um dos mais contundentes laboradores do Espiritismo nos anos subsequentes ao decesso de Allan Kardec. Estes seus equívocos, e alguns de seus posicionamentos pessoais, contudo, depõem contra a asserção, mui mitificada, de que fora o continuador mor da obra principiada pelo mestre lionês. Esta mitificação, aliás, é própria de um meio afeito as práticas e condutas mais reprováveis oriundas da religião - a Paulo Neto parece faltar preencher profundas lacunas instrucionais. Contudo, ainda que pareça sincero devoto do espírito de pesquisa na busca da verdade e do conhecimento, ele se mostra a nu quando, por fim se recorda de trazer o Codificador para a celebração de suas teses, infelizmente indo de encontro a outros tantos supostos investigadores da questão, concluindo erroneamente que:

Entendemos que as colônias estão em completa semelhança com as características dos mundos transitórios, referidos nas questões 234 a 236 de O Livro dos Espíritos, que são apenas acampamentos temporários.

Embora conheça as questões referidas, não parece capaz de as compreender - na edição de maio de 1859 da Revista Espírita, em artigo intitulado Mundos Intermediários ou Transitórios, Allan Kardec indaga o Espírito de Santo Agostinho acerca destes orbes, ao que este afirma o já sabido em O Livro dos Espíritos - tais mundos são planetas, e não cidades fluídicas que pairam nas altas camadas atmosféricas destes; são estéreis de vida física; e assim o são porque os Espíritos que os habitam de cousa alguma precisam; não há nenhum atualmente dentre os mundos que constituem o sistema solar ao qual a Terra pertence; mas, a Terra já foi um mundo transitório em seu passado, no período de sua formação; tais mundos subsistem na condição de estações de pouso, e não como locais em que será preciso laborar para se obter uma moradia, como descrito em Nosso Lar, por exemplo. Seria preciso um grande dano cognitivo para se enxergar aí, nas letras do Codificador, as descrições narradas pelo Espírito André Luiz em suas obras, e nas de outros autores surgidos nas décadas subsequentes, encomendadas com o fito de enriquecer seus editores. Contudo, a razão pela qual se aponta os mundos transitórios como sendo as Colônias Espirituais é para as conformar ao princípio doutrinário da pluralidade dos mundos habitados, e não a da erraticidade - é esta uma manobra de prestidigitação literária com o fim claro de manter a tese intacta, mesmo que comprometa a fonte original, qual seja o Espírito André Luiz e suas obras, pois que não se trata de mundos transitórios o que o leitor encontra em Nosso Lar, nem em Cidade no Além de Heigorina Cunha, ou em Violetas na Janela de Vera Lúcia M. De Carvalho. Quando arrolada a erraticidade aí, a tese das Colônias Espirituais esboroa facilmente, e é isto que o autor precisa evitar a todo custo. Uma vez que haja se convencido, por meio da obra de Yvonne A. Pereira acerca da realidade das narrações do Espírito André Luiz e congeneres, Allan Kardec se lhe surge como incomodo penetra, a quem ora lhe tem utilidade, ora é desprezado por suas asserções. Assim Paulo Neto aborda a questão 87 de O Livro dos Espíritos, comprovando que a erraticidade e a tese que defende são inconciliáveis:

A afirmação de não haver região determinada e circunscrita no espaço nada tem a ver com a existência ou não da colônias espirituais, que, atualmente, tantos companheiros atacam; porém, ao que tudo indica, eles estão levando em consideração o conceito, então vigente à época de 'céu' e 'inferno' localizados, ou seja, como locais circunscritos, como sendo um espaço físico delimitado.

Ora, há aqui uma torção argumentativa bastante hábil que, apenas os aderentes da ideia, ou aqueles tão absolutamente inábeis na leitura crítica adotam sem precauções - solicitamos a explicação de por que não tem nada que ver a afirmação da inexistência de regiões circunscritas no espaço, com o fito de conter Espíritos errantes, com a existência de Colônias Espirituais. Uma Colônia Espiritual não é uma cidade, e uma cidade localizada nas altas camadas atmosféricas do planeta, aí inserida num deserto lodoso destinado a Espíritos sofredores, conhecido pelo termo Umbral? Ainda que este, por todas as fontes conhecidas e compulsadas se constitua num deserto que perfaz toda a extensão do globo terrestre, ele encontra seu limite nas Colônias Espirituais, e estas neste, o que claramente os circunscreve, geográfica e espacialmente - as ilustrações esquemáticas encontradas em Cidade no Além, obra coadjuvada por Chico Xavier, houvera apresentado erro nesta divisão do espaço circundante ao planeta em esferas espirituais, porque não as corrigiu o médium mineiro? Porque não foram reprovadas por André Luiz ou Emmanuel? Acaso o tenham feito, não se lhes conhece o réprobo - na máxima segundo a qual o silêncio aprova, questiona-se afinal, em que resume-se o conceito das Colônias Espirituais para Paulo Neto?

Qualquer estudioso considerará, após pesquisar cuidadosamente, que a opinião una de André Luiz, que não deixa de adaptar ideias pregressas, mas que nem longinquamente correspondem as normas apresentadas por Allan Kardec em o Controle Universal dos Ensinamentos dos Espíritos, foi ao longo das décadas adaptada ao gosto do mercado que, qual hímen complacente aceitou novas ideias, novas concepções imagéticas mais fantásticas e mais espetaculares, sem se romper e sem deixar de prestar deferência a fonte original. Todavia, o que teima em não se adaptar acaba menosprezado ou deformado - eis o caso das Obras da Codificação, e a atitude do autor de As Colônias Espirituais e a Codificação condiz ipsis litteris a de todos aqueles que o antecederam, erroneamente afirmando que a Doutrina dos Espíritos encontra-se inacabada, procedimento que adota já no terceiro capítulo de sua obra. Este tema o abordamos em artigo aqui publicado em 10 de agosto de 2019, desmantelando ponto por ponto as interpretações personalíssimas, também encontradas no livro em análise das passagens escaladas das Obras Básicas, as quais usa o autor para fazer valer sua visão.

Há uma conveniente miopia na obra de Paulo Neto, que ainda padece de uma pesquisa desleixada - a questão de número 1017 (em algumas traduções é a 1016) de O Livro dos Espíritos sequer surge, possivelmente e, uma vez mais, porque não convém trazê-la ao conhecimento do leitor. Já por si esta implode a tese das Colônias Espirituais, como fizemos notar em artigos anteriores. Nada temos contrário a quem quer que escolha aderir as ideias que mais se conjuguem a seus pendores naturais e particulares, ainda menos a quem opte por escapar ao trabalho de voluntariamente aumentar o volume do próprio conhecimento, mas por nenhuma paga ou sob quaisquer escusas pode-se permitir que a figura de Allan Kardec, e a Codificação espírita sejam evocados a dar distinção a ideias e conceitos oriundos de Espíritos pseudo-sábios. Menos ainda se estes venham desfigurar qualquer dos fundamentos componentes da Doutrina dos Espíritos - a erraticidade é um deles, tão importante quanto cada um dos demais para a compreensão coerente do Espiritismo. Que se deseje conjurar Yvonne A. Pereira, Léon Denis, George Vale Owen, Enerto Bozzano, André Luiz, Emmanuel ou qualquer outra figura enaltecida pelas gentes que se creem espíritas, é esta da responsabilidade de cada um, autor de uma obra qual esta ou não, para defender que exista o que quer que seja para além dos limites da morte física. Chamar a isto de Espiritismo, contudo, é algo que nenhum espírita sério, estudioso, consciente e crítico há de permitir se faça - não há o que censurar na crença das Colônias Espirituais, desde que fique claro não se tratar de Espiritismo. Ostentando tal título, a obra de Paulo Neto é um crime de lesa-cultura. E todo aquele que um dia sequer considerou seriamente a tese das Colônias Espirituais e similares, para depois, aprofundando estudos nas Obras Básicas dar-se consciente do engodo a que fora exposto, compreende perfeitamente os sentimentos que resultam disto. Examinem tudo, absolutamente tudo, é o que conclamamos aos que de fato desejam conhecer o Espiritismo.

841. Para respeitar a liberdade de consciência, dever-se-á deixar que se propaguem doutrinas perniciosas, ou poder-se-á, sem atentar contra aquela liberdade, procurar trazer ao caminho da verdade os que se transviaram obedecendo a falsos princípios?
Certamente que podeis e até deveis; mas, ensinai, a exemplo de Jesus, servindo-vos da brandura e da persuasão e não da força, o que seria pior do que a crença daquele a quem desejaríeis convencer. Se alguma coisa se pode impor, é o bem e a fraternidade. Mas não cremos que o melhor meio de fazê-lo admitidos seja obrar com violência. A convicção não se impõe.

A caridade consiste em fazer todos os esforços para colocar a luz em evidencia pois aquele que crê que possui uma parte da verdade está obrigado pela lei de honra e divulgá-la. O medo das consequências que possam resultar da discussão nunca deve deter o pensador. Jesus, esse sublime modelo, não pensava duas vezes antes de tratar os fariseus como raças de víboras e sepulcros caiados. Isso deve-se a que ele compreendia que todo aquele que não combate o erro do qual tem conhecimento, torna-se responsável, e converte-se em cúmplice das desgraças que esse erro pode acarretar.” - Gabriel Dellane

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Qual a Verdadeira Felicidade?


Todo homem experimenta a necessidade de viver, de gozar, de amar e ser feliz. Dizei ao moribundo que ele viverá ainda; que a sua hora é retardada; dizei-lhe sobretudo que será mais feliz do que porventura o tenha sido, e o seu coração rejubilará.” - O Céu e o Inferno, cap. I da Primeira Parte

1.
O materialismo venceu! Desde a Academia e seu aglomerado de sábios até os simplórios campônios sob as condições mais recônditas e insulares da nação, a doutrina materialista fez escola, espargiu-se por entre as gentes com tal habilidade e sucesso que coube ao Espiritismo o ostracismo, urrando a realidade da vida espiritual numa multidão de surdos. Não há que enganar-se imaginar que os caracteres de tal vertente cruza o movimento espírita brasileiro com dificuldade, ou que sequer o faça, sendo seus aderentes imunes a estes - muito ao contrário. Sorrateiramente, desde o princípio, o materialismo se avizinhava do Espiritismo, o assediou até maculá-lo, senão em sua teoria, na prática dos que alegam seguir-lhes os fundamentos.

Jean Baptiste Roustaing, desprovido de critérios, e messianicamente, por meio da médium Émilie Collignon, deu-se a coordenar uma série de comunicações mediúnicas que compuseram a obra Os Quatro Evangelhos, cognominado Espiritismo Cristão ou A Revelação da Revelação. Mais que trazer alegações estapafúrdias quanto a natureza do corpo de Jesus, numa retomada do Docetismo herético do medievo, ou da defesa da ideia anti-espírita segundo a qual os Espíritos podem involuir, o dano mais agudo legado por Roustaing é sua metodologia, ou falta dela. Numa crença cega diante das mensagens dos mortos, tudo foi crido como verdadeiro, como expressão da realidade. Não se levantaram questionamentos, não se objetaram os conteúdos das mensagens, não se discutiram sua razão de ser, a que fim se pretendiam e pretendem. Como outrora procedeu o magistrado, o espírita brasileiro age sem método, sem processo, sem um sistema orientador, recebendo desmazeladamente toda e qualquer mensagem espiritual como a expressão cabal da verdade. Não há análise, não há dúvida; há apenas a antevisão de trazer a lume um novo volume, que alcançará o leitor por um preço maior que seu valor venal, fomentando ideias equivocadas, insuflando terror, deturpando ao Espiritismo e explorando a fé alheia; uma fé religiosa, e não uma fé raciocinada, que se registre.

Entretanto, a responsabilidade de Roustaing acerca do que deu posteridade é partilhada por este movimento espírita brasileiro, e por cada espírita que nele se reconhece, principalmente por que Allan Kardec não dispôs a Doutrina dos Espíritos sem recursos no sentido de averiguar-se tudo quanto ditam os Espíritos - muito ao contrário, posto que desde o princípio preocupou-se com esta porta escancarada a dar passagem para qualquer um. Lavrou a questão, contudo, de modo mais assertivo na Introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo, com o Controle Universal dos Ensinamentos dos Espíritos. Quem se aventurou em seguir-lhe as instruções, em averiguar segundo tais regras as palavras de além-túmulo? Tendo em vista a imensurável bibliografia que sob a signa de literatura espírita se produziu e se produz, certamente poucos o fizeram e fazem. Para aqueles que argumentarão contra é preciso recordar: Roustaing lançou sua obra em 1866, enquanto que O Evangelho Segundo o Espiritismo já estava à disposição em 1864 - o advogado bordelês, porém, não o leu, ou ao menos não alegou tê-lo feito nos documentos por nós compulsados. Para efeito de registro ele alegou haver posto olhos apenas em O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns. Para aqueles que empreenderam em semelhante prática, havendo recebido mensagens e ou narrativas de origem espiritual, e que se alegam espíritas, é imperdoável que não hajam seguido estritamente as instruções dadas pelo professor.

Graças a disposição íntima de crer sem raciocinar, não é equivocado afirmar que este movimento espírita brasileiro é, antes, um movimento roustaiguista, por adotar-lhe a falta de sistema, de um critério para julgar as mensagens espirituais, ignorando completamente a Allan Kardec. Eis pois, por que afirmamos diuturnamente que este movimento espírita é ilegítimo. E, outrossim, por que sobrevivem consensualmente a idolatria a médiuns e personalidades, por que se aceita bovinamente a obra de Espíritos claramente pseudo-sábios e, por que vicejam as ideias e ideologias destes. O que se tem é o pastiche, o simulacro. O conceito de Colônias Espirituais é um distintivo exemplo do materialismo fincando bandeira onde, teoricamente, jamais o poderia. Deturpado ou corrompido o fundamento da erraticidade, o Espiritismo se desintegra e o que resta é crença cega na doutrina de um só Espírito.

Considerando-se o fato de que cada ser vivente na matéria se encaminha inexoravelmente para o fenômeno da morte, seria de bom senso que o que está por vir, caso se creia que algo sobrevive ao decesso, fosse questão candente. Dotado de capacidade cognitiva única, a criatura humana pôde aventar teorias ao longo de sua trajetória, e por milênios a dualidade espírito/matéria esteve no centro das disciplinas do conhecimento. Porém, o materialismo foi se robustecendo a cada novo mestre da matéria, em sistemas filosóficos intrincados e, frequentemente, herméticos - entretanto, o homem comum não se mostra disposto a apreciar as teorias do materialismo em seu apogeu; no seu imo calam profundamente os velhos questionamentos acerca da existência, de sua natureza, de sua razão de ser e do que o espera o futuro. Acaso a Academia e sua agremiação de sábios astênicos se perde na retórica bela e vazia, a religião não dá sinais mais promissores no sentido de fomentar uma cultura do Espírito. Os tele-evangelistas pregam a teologia da prosperidade, insuflando a barganha com a divindade num paradigma deísta primitivo e materialista; quando não incorrem aos mesmos procederes dos palestrantes que se espalham pelos supostos centros espíritas da nação, vertidos em gurus da auto-ajuda.

Mas o que tem a felicidade do ser a ver com isto? A matéria pode ser o foco motriz do sofrimento dos Espíritos, ou melhor dito, o apego a matéria, traduzido pelo vocábulo materialismo, pode ser o âmago do sofrimento espiritual. Parece parte da necessidade do progresso do Espírito compreender o limite entre a materialidade do mundo físico, e a espiritualidade do mundo pós-físico, ou dito de modo espírita, do mundo espiritual, ou mundo espírita. Não há melhor tradução para isto do que a doutrina de Jesus de Nazaré, que pode ser sintetizada na frase estar no mundo sem ser escravo dele. Falando e atuando segundo esta singela, ainda que complexa sentença, Jesus veio dar o demonstrativo máximo de tudo quanto pregou e fez ao morrer - sua aparição posterior, em meio a seus adeptos tinha este único e assertivo objetivo, ou seja, demonstrar a existência e sobrevivência do ser espiritual, mas também afirmá-lo como ser principal, sendo sua expressão física senão uma frágil e fugidia manifestação. Assim de pode compreender melhor, portanto, o papel do Espiritismo, que veio reiterar a doutrina de Jesus, atando a ela novas revelações acerca da origem do Espírito, de sua razão de ser, de seu destino, do que há para além do mundo físico, e das razões pelas quais não se deve deixar este apegar-se aquele. O materialismo que passou a preconizar o Jesus ressurreto, renascido em carne e sangue, pôs abaixo sua doutrina, distorceu-a e criou a cristandade que, muito distante de professar o espiritualismo, mais se aprofunda na valorização da matéria. A questão 1018 de O Livro dos Espíritos resume bem a isto:

1018. Em que sentido se devem entender estas palavras do Cristo: Meu reino não é deste mundo?
Respondendo assim, o Cristo falava em sentido figurado. Queria dizer que o seu reinado se exerce unicamente sobre os corações puros e desinteressados. Ele está onde quer que domine o amor do bem. Ávidos, porém, das coisas deste mundo e apegados aos bens da Terra, os homens com ele não estão.

2.
O coração humano é um cálice cheio de lágrimas”, já o expressara o Espírito Georges na edição de junho de 1860 da Revista Espírita, em texto intitulado Miséria Humana - este conceito ancestral refere-se em sua acepção mais ampla, a condição do Espírito humano encarnado na Terra. Não se constitui grande dificuldade a ninguém enumerar as razões pelas quais a expressão da vida humana no planeta não é idílica; qualquer indivíduo conhece as aflições que atingem o homem. Levando-se em conta as múltiplas existências do Espírito, não há que excluir um só que não tenha sofrido, que não haja sentido na própria tessitura do ser a dor, as angústias morais, a antevisão da debilidade, os tormentos da perda da saúde, a profundidade das tristezas, os agônicos padecimentos, os estados depressivos, a indigência da exclusão e da escassez absoluta das necessidades básicas.

A leitura das Obras Básicas esclarece em tantos seguimentos as razões da miséria humana que vir neste ponto transcrevê-las seria praticamente copiá-las quase na íntegra - mas se há uma só razão, ou antes uma palavra que resuma in totum o âmago das dores humanas é esta a paixão. Não paixão no sentido que a escola romântica lhe dá, mas num aspecto mais amplo, no apego aos excessos, na expressão das exaltações dos sentidos e dos sentimentos, da emotividade extremada e do apetite ardente por pessoas, coisas ou experiências - algo que a Psicanálise resumiria na palavra desejo, ou que o Budismo chama de Trishna (a sede insaciável dos desejos humanos, e causa do sofrimento). E aqui tem-se uma vez mais a argumentação materialista que, contrariando as instruções espirituais, versa que o homem, desde suas primeiras idades pré-históricas existindo numa vida violenta e mortal, foi induzido a satisfazer de imediato as necessidades do corpo, tornando-se um oportunista em relação a saciar-se, tendo em vista que o amanhã não poderia dar-lhe garantia de cousa alguma. Isto é compreensível do ponto de vista físico, mas o homem não é apenas isto - parte de si criou, ao ir contra este impulso, com organização e disciplina, a previdência para os dias vindouros. Sai ele então do nomadismo, passa a domesticar formas de vida vegetais e animais, criando a agricultura e a agropecuária; vive em assentamentos com muitos indivíduos, precisa então de leis para regrar a vida em comunidade... Enfim, a saga humana na Terra é por reprimir em si estes condicionamentos primevos, para abandonar seu feitio animal em busca de assumir-se por sua natureza primeira, a espiritual, num processo que deve, antes, ser natural e espontâneo. Foram certos aspectos deste carácter humano que, reprimidos em demasia pela sociedade do século XIX vieram por suas mais sofridas consequências fundamentar em parte o nascimento da Psicanálise.

N'O Livro dos Espíritos, em o Ensaio Teórico da Sensação nos Espíritos, Allan Kardec refere-se as paixões pelos seguintes dizeres:

Os sofrimentos deste mundo independem, algumas vezes, de nós; muito mais vezes, contudo, são devidos à nossa vontade. Remonte cada um à origem deles e verá que a maior parte de tais sofrimentos são efeitos de causas que teria sido possível evitar. Quantos males, quantas enfermidades não deve o homem aos seus excessos, à sua ambição, numa palavra: às suas paixões? Aquele que sempre vivesse com sobriedade, que de nada abusasse, que fosse sempre simples nos gostos e modesto nos desejos, a muitas tribulações se forraria. O mesmo se dá com o Espírito. Os sofrimentos por que passa são sempre a consequência da maneira por que viveu na Terra.

Os Espíritos da Codificação, entretanto, são austeros e incisivos, parecendo optar pela renúncia e ascetismo ao equilíbrio do Codificador aqui expresso; da seguinte forma eles lhe respondem:

968. Citais, entre as condições da felicidade dos bons Espíritos, a ausência das necessidades materiais. Mas, a satisfação dessas necessidades não representa para o homem uma fonte de gozos?
Sim, gozo do animal. Quando não podes satisfazer a essas necessidades, passas por uma tortura.

E pode-se supor que prefiram a abstinência, justamente por conhecerem desde há muito aos piores efeitos do gozo animal satisfeito:

972. Como procedem os maus Espíritos para tentar os outros Espíritos, não podendo jogar com as paixões?
As paixões não existem materialmente, mas existem no pensamento dos Espíritos atrasados. Os maus dão pasto a esses pensamentos, conduzindo suas vítimas aos lugares onde se lhes ofereça o espetáculo daquelas paixões e de tudo o que as possa excitar.

972A. Mas, de que servem essas paixões, se já não têm objeto real?
Nisso precisamente é que lhes está o suplício: o avarento vê ouro que lhe não é dado possuir; o devasso, orgias em que não pode tomar parte; o orgulhoso, honras que lhe causam inveja e de que não pode gozar.

O contentamento humano é a satisfação das necessidades físicas - porém, não raramente o que até então poderia ser pautado pelo comedimento e frugalidade torna-se, em decorrência da compulsão das personalidades em vício, sob as mais trôpegas e escusas justificativas. O homem se rejubila ao poder satisfazer a sede, mas também se entorpece de alcaloides; anseia pelas oportunidades do sexo, mas ora abusa da prática; implora pelo tempo de descanso, mas com muita frequência se deixa dominar pela preguiça; aspira ao alimento reparador das forças, mas cai cativo dos sabores até o extremo da obesidade; desesperadamente a felicidade persegue, mas apela ao acesso fácil a substâncias que induzem a alegria, até se ver precisar de elementos que produzam o efeito contrário. Da necessidade se vai ao abuso, do abuso ao vício, e deste para a paixão, obsessivamente nutrida na antevisão de sua própria satisfação. Advindo o decesso, o ser padece da abstinência forçada que lhe impõe sua natureza errante - em seguimento a questão 957 de O Livro dos Espíritos, esclarecem o seguinte a Allan Kardec os Espíritos:

Para o Espírito errante, já não há véus. Ele se acha como tendo saído de um nevoeiro e vê o que o distancia da felicidade. Mais sofre então, porque compreende quanto foi culpado. Não tem mais ilusões: vê as coisas na sua realidade.

Quais quadros se pode imaginar para os Espíritos que erram numa infrutífera busca pela satisfação das paixões? Sofrimentos agravados por essa visão da realidade a lhes revelar o quão distantes se encontram da felicidade. Para uma parcela imagina-se constituir alento não mais precisar demandar tempo e esforços a mitigar a fome, a sede, o sono, a imperiosa necessidade de urinar ou defecar, ver-se livre das regras menstruais, enquanto que em mesma medida muitos sentirão falta do sexo, do álcool, do empanzinamento próprio dos glutões, da inércia dos preguiçosos, etc. Arriscamo-nos afirmar que este impulso animal, com base no estudo da Doutrina dos Espíritos, consiste na forma mais primordial de atavismo do Espírito humano sobre a Terra. Não são de per si ruins, visto que elas surgem no andamento natural do progresso do Espírito, até serem expurgadas deste em sua jornada ascendente - mas, tendo em vista a sociedade atual, em que domina o materialismo, a dor, o sofrimento e a infelicidade resultante da satisfação extrema e abusiva das necessidades básicas, e das paixões que seu abuso dimana, vem convidar a um esforço notável suplantá-las o quanto antes. Um esforço notável e bastante meritório, dada a coação por que padece o indivíduo, constrangido por um modus pensandi coletivo que valoriza ao desejo em detrimento a necessidade. Como nunca antes será preciso a consciência de se estar no mundo sem lhe ser um escravo.

Destarte, observemos um último adendo a este tópico para aclarar ainda mais a questão:

970. Em que consistem os sofrimentos dos Espíritos inferiores?
São tão variados como as causas que os determinam e proporcionados ao grau de inferioridade, como os gozos o são ao de superioridade. Podem resumir-se assim: invejarem o que lhes falta para ser felizes e não obterem; veem a felicidade e não na poderem alcançar; pesar, ciúme, raiva, desespero, motivados pelo que os impede de ser ditosos; remorsos, ansiedade moral indefinível. Desejam todos os gozos e não os podem satisfazer: eis o que os tortura.

3.
965. Tem alguma coisa de material as penas e gozos da alma depois da morte?
Não podem ser materiais, di-lo o bom senso, pois que a alma não é matéria. Nada têm de carnal essas penas e esses gozos; entretanto, são mil vezes mais vivos do que os que experimentais na Terra, porque o Espírito, uma vez liberto, é mais impressionável. Então, já a matéria não lhe embota as sensações.

Imagina-se que, para o espírita, a questão da felicidade represente um tema fulcral - e à maneira que é abordado pelo Doutrina, soma maior importância que para o restante da humanidade; conhece-se e compreende-se as consequências das próprias ações para a vida em erraticidade, tanto quanto para as vindouras reencarnações. Não é, portanto, senão imperioso entender o tema em profundidade. Posto que a felicidade e a infelicidade do Espírito nada tem da materialidade da vida física, em que se constituiriam então? Allan Kardec fez já este questionamento aos Espíritos, mas carece de mais:

967. Em que consiste a felicidade dos bons Espíritos?
Em conhecerem todas as coisas; em não sentirem ódio, nem ciúme, nem inveja, nem ambição, nem qualquer das paixões que ocasionam a desgraça dos homens. O amor que os une lhes é fonte de suprema felicidade. Não experimentam as necessidades, nem os sofrimentos, nem as angústias da vida material. São felizes pelo bem que fazem. Contudo, a felicidade dos Espíritos é proporcional à elevação de cada um. Somente os puros Espíritos gozam, é exato, da felicidade suprema, mas nem todos os outros são infelizes. Entre os maus e os perfeitos há uma infinidade de graus em que os gozos são relativos ao estado moral. Os que já estão bastante adiantados compreendem a ventura dos que os precederam e aspiram a alcançá-la. Mas, esta aspiração lhes constitui uma causa de emulação, não de ciúme. Sabem que deles depende o consegui-la e para a conseguirem trabalham, porém com a calma da consciência tranquila e ditosos se consideram por não terem que sofrer o que sofrem os maus.

E se pode suplementar esta riquíssima resposta com o adendo do Codificador a questão 979 de O Livro dos Espíritos:

Goza da felicidade a alma que chegou a um certo grau de pureza. Domina-a um sentimento de grata satisfação. Sente-se feliz por tudo que vê, por tudo o que a cerca. Levanta-se-lhe o véu que encobria os mistérios e as maravilhas da Criação e as perfeições divinas em todo o esplendor lhe aparecem.

Num mundo dominado pelo materialismo, e diante do exposto, pode-se reiterar a questão que dá título ao presente artigo - qual a verdadeira felicidade? Não é a do corpo, da vida material, física; a felicidade verdadeira é a do Espírito, e difere de simplesmente saciar a fome ou a sede. Pelo que foi dado em resposta a questão acima transcrita, a ausência das paixões já é, por si uma grande fonte de plena felicidade, livrando o Espírito de emoções e sentimentos negativos que constituem, para a generalidade dos encarnados na Terra, a infeliz regra. Em seguimento, a união daqueles que hajam atingido este ponto de progresso é, outrossim, uma razão maior de felicidade, bem como a liberdade do que apontamos como o mais primitivo atavismo do Espírito, a prisão das necessidades materiais, e dos sofrimentos que podem ocasionar. Eis que aí notam que a felicidade tem por motor o bem que se possa fazer a outrem, algo raro de se encontrar nas expressões materiais terrenas, principalmente quando tais ações se fazem anonimamente, desprovidas de interesses senão o de aliviar a dor e as aflições alheias. Invulgarmente essa bonomia encontra desconfiança num mundo em que parecer bom tornou-se mais importante que o sê-lo de fato - isto empresta um caráter ainda mais alienígena as prescrições dos Espíritos, e não raro muitos tomam tais palavras como utopias, vindo enfatizar a hegemonia suprema do materialismo no seio da humanidade.

No entanto, sendo relativa a felicidade a infindável gradação dos Espíritos, desde o mais primitivo aos puros em maior nível, para o espírita interessado em saber o que lhe espera após o fenômeno da morte, que alternativas se-lhe apresentam? Muitos apelam para os infelizes quadros dos romances mediúnicos e seus cenários dantescos e terroristas; mas o estudioso sincero e devotado tem à mão O Céu e o Inferno. No capítulo II da Segunda Parte, intitulado Espíritos Felizes, tem o educando dezessete relatos de Espíritos que se viram em condições favoráveis quando libertos em estado de erraticidade - Sr. Sanson, antigo membro da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que tivera uma morte após longo transcurso de sofrimentos assevera que sua situação é bem-ditosa, achando-se regenerado, renovado, nada mais sentindo das antigas dores. Ao que completou em posteriores evocações: “Não vos atemorize a morte, meus amigos: ela é um estágio da vida, se bem souberdes viver, é uma felicidade, se bem a merecerdes e melhor cumprirdes as vossas provações. Repito: coragem e boa vontade! Não deis mais que medíocre valor aos bens terrenos, e sereis recompensados. Não se pode muito gozar, sem tirar de outrem o bem-estar e sem fazer moralmente um grande, um imenso mal. A terra me seja leve. (...) Sabei que a felicidade, como vós outros a compreendeis, não passa de uma ficção. Vivei sabiamente, santamente, pela caridade e pelo amor, e tereis feito jus a impressões e delícias que o maior dos poetas não saberia descrever.


Ao Sr. Jobard, presidente honorário da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, em espontânea manifestação, coube registrar as impressões vívidas de sua condição em erraticidade, comprazendo-se em afirmar - “Ah! Meus caros amigos, que prazer se experimenta sem o peso do corpo! Quanta alegria no abranger o Espaço!” - ou o bom e obscuro Samuel Philippe que afirmou: “indizível sensação de bem-estar penetrava todo o meu ser, a presença dos que amara alegrava-me sem surpreender, antes parecendo-me natural, como se os encontrasse depois de longa viagem.” Ainda há Van Durst, octogenário de partida para outra esfera, cuja alegria expressou nos seguintes termos: “Que vida nova, meu amigo, nova, brilhante e cheia de ventura! Salve, oh! Salve, eternidade que me conténs em teu seio! Adeus, Terra que por tanto tempo me retiveste afastado do elemento natural da minha alma! Não... eu nada mais de ti queria, porque és a terra do exílio, e a maior das felicidades que dispensas nada vale!” Tem-se a seguir o Espírito Sixdeniers reportado como homem de bem que afirma: “Nada existe aqui de material; tudo fere os sentidos ocultos sem auxílio da vista ou do tato: compreendeis? É uma admiração espiritual que ultrapassa o vosso entendimento, porque não há palavras que a expliquem. (...) Bem feliz foi o meu despertar. A vida é um desses sonhos que, apesar da ideia grosseira que se lhe atribui, só pode ser qualificada de medonho pesadelo.

Surge em seguida, o Dr. Demeure, médico homeopata de grande abnegação e caridade para com os pacientes que a ele acorriam, carentes de recursos e saúde; vivaz e engajado propagandeador da Doutrina dos Espíritos, deu a seguinte mensagem após o decesso: “Ágil como o pássaro que cruza célere os horizontes do vosso céu nebuloso, admiro, contemplo, bendigo, amo e curvo-me, átomo que sou, ante a grandeza e sabedoria do Criador, sintetizadas nas maravilhas que me cercam. Feliz! Feliz na glória! Oh! Quem poderá jamais traduzir a esplêndida beleza da mansão dos eleitos; os céus, os mundo, os sóis e seu concurso na harmonia do universo? (...) Sou feliz e mais feliz do que esperava, gozando de uma lucidez rara entre os Espíritos, relativamente ao tempo da minha desencarnação.” Após Allan Kardec dá espaço aos depoimentos da Sra. Foulon que atesta, após o desencarne haver despertado cercada de bons Espíritos: “Eles prodigalizavam-me cuidados e carícias, ao mesmo tempo que me mostravam no Espaço um ponto algo semelhante a uma estrela, dizendo: 'é para ali que vai conosco, pois já não pertence mais à Terra'. Então, recordei-me; e, apoiada sobre eles, formando um grupo gracioso que se lança para as esferas desconhecidas, mas na certeza de aí achar a felicidade, subimos, à proporção que a estrela se engrandecia...” - outro dos Espíritos que, em estado de felicidade, depara-se com a paga dos sofrimentos migrando para novo mundo, correspondente a seu estado íntimo de progresso.

O Espírito de um médico russo, ao lhe ser perguntado acerca de sua felicidade assim a expressa: “Essa ventura que gozo é uma espécie de contentamento extremo de mim mesmo, não pelos meus merecimentos - o que seria orgulho - e este é predicado de Espíritos atrasados - mas contentamento como que saturado, imerso no amor de Deus, no reconhecimento da sua infinita bondade. Em suma, é a alegria que nos infunde o bem, podendo supor-te ter a seu arbítrio contribuído para o progresso de outros, que se elevaram até o Criador. Ficamos como que identificados com esse bem-estar, que é uma espécie de fusão do Espírito com a bondade divina.” Emma Livry, a última das bailarinas românticas, teve sua roupa de tule incendida em pleno palco, num tempo em que as casas de espetáculos, os salões e os teatros eram iluminados por candeeiros em chamas; suas queimaduras fizeram-na padecer longos oito meses até sua morte por septicemia em 26 de julho de 1863, com apenas 20 anos de idade. Espontaneamente manifestou-se em mensagens as quais algumas palavras se destacam: “Seja resignado se for ferido e diante de Deus que é o criador absoluto, inclinai-vos pela vossa bondade quando Ele vos der um fardo pesado para suportar. Se Ele vos chamar depois de grandes sofrimentos, se nenhum lamento ou murmúrio entrar em vosso coração, vereis como eram poucas essas dores e as penas da Terra, quando percebeis a recompensa que Deus vos reserva.

E a tal maneira seguem os depoimentos colhidos à mesa mediúnica, dispondo de firme propósito o estudioso para, no recolhimento exigido a própria instrução, encontrar um conteúdo riquíssimo na obra de cujos enxertos demos pálidos fragmentos. O que os Espíritos da Codificação vem a Allan Kardec responder encontra eco desde as mais antigas expressões religiosas e escolas filosóficas, até os mais bem intencionados gurus da auto-ajuda contemporâneos - a felicidade é um estado de alma, particular, ao que o Espiritismo complementa afirmando-a como consequência do progresso do ser, progresso esse que se constitui no avolumar do conhecimento, haurido de existência em existência, uma encarnação após outra, ao longo de um dado período mais ou menos longo. Nenhuma experiência sequer deixa de ser para o Espírito, uma causa que permita aspirar novos saberes, novos conhecimentos, que traga por efeito mais discernimento, compreensão e lucidez. Tais mensagens, muitas outras e seus autores, presentes ao longo das mais de oito mil páginas que Allan Kardec dedicou ao Espiritismo deveriam ser, a este movimento de pessoas que se alegam espíritas, tão familiares quanto o são as figuras bíblicas para os crentes da cristandade - nem de longe com a mesma nula e obtusa idolatria, mas com respeito e afeição semelhantes as devotadas as personagens que pela história particular dos indivíduos passa disseminando zelo e fraternal amor. Sim, pois tais mesmos, por seus depoimentos vêm lembrar o espírita diuturnamente que será preciso planificar a vida, e a vida para além da vida. Pois, por que se o homem comum a quem as cousas do Espírito ignora e a morte lhe é fonte de temor, para o espírita deve ser manancial inesgotável de estudos contínuos e, senão de preocupação, de anseios naturais, esperanças e perspectivas que anteveem possibilidades. O Espiritismo necessita ter um fim prático para a vida do Espírito encarnado, muito além do que apenas pode realizar a fluidoterapia, e do que tenha a ofertar a fala mansa de certos palestrantes ou as narrativas chocantes de vis escrevinhadores de além-túmulo - não, o Espiritismo dá o lenitivo fundamental, indicando ao homem sua origem, sua razão de ser, e seu futuro. Eis aí um manual de instruções que vai muito além do alcance do materialismo, destituindo aos pensadores da matéria a condição de meditabundos patéticos que fogem a antevisão da cova a lhes prescrever um grande e vazio nada. Enquanto a alguns homens parece impossível viver um só dia antecipando seu fim inexorável, ao espírita é impossível viver um só dia sem a necessidade de antevê-lo - pois que a morte pode ser a fonte de grandes sofrimentos, mas apenas ela pressagia a verdadeira felicidade.

Sendo a felicidade dos Espíritos inerente às suas qualidades, haurem-na eles em toda parte em que se encontram, seja à superfície da Terra, no meio dos encarnados, ou no Espaço. (...) O mundo espiritual tem esplendores por toda parte, harmonias e sensações que os Espíritos inferiores, submetidos à influência da matéria, não entreveem sequer, e que somente são acessíveis aos Espíritos purificados.