“Todo homem experimenta a necessidade de viver, de gozar, de amar e ser feliz. Dizei ao moribundo que ele viverá ainda; que a sua hora é retardada; dizei-lhe sobretudo que será mais feliz do que porventura o tenha sido, e o seu coração rejubilará.” - O Céu e o Inferno, cap. I da Primeira Parte
1.
O materialismo venceu! Desde a
Academia e seu aglomerado de sábios até os simplórios campônios sob as
condições mais recônditas e insulares da nação, a doutrina materialista fez
escola, espargiu-se por entre as gentes com tal habilidade e sucesso que coube
ao Espiritismo o ostracismo, urrando a realidade da vida espiritual numa
multidão de surdos. Não há que enganar-se imaginar que os caracteres de tal
vertente cruza o movimento espírita brasileiro com dificuldade, ou que
sequer o faça, sendo seus aderentes imunes a estes - muito ao contrário.
Sorrateiramente, desde o princípio, o materialismo se avizinhava do
Espiritismo, o assediou até maculá-lo, senão em sua teoria, na prática dos que
alegam seguir-lhes os fundamentos.
Jean Baptiste Roustaing,
desprovido de critérios, e messianicamente, por meio da médium Émilie
Collignon, deu-se a coordenar uma série de comunicações mediúnicas que
compuseram a obra Os Quatro Evangelhos, cognominado Espiritismo
Cristão ou A Revelação da Revelação. Mais que trazer alegações
estapafúrdias quanto a natureza do corpo de Jesus, numa retomada do Docetismo
herético do medievo, ou da defesa da ideia anti-espírita segundo a qual os
Espíritos podem involuir, o dano mais agudo legado por Roustaing é sua
metodologia, ou falta dela. Numa crença cega diante das mensagens dos mortos,
tudo foi crido como verdadeiro, como expressão da realidade. Não se levantaram
questionamentos, não se objetaram os conteúdos das mensagens, não se discutiram
sua razão de ser, a que fim se pretendiam e pretendem. Como outrora procedeu o
magistrado, o espírita brasileiro age sem método, sem processo, sem um sistema
orientador, recebendo desmazeladamente toda e qualquer mensagem espiritual como
a expressão cabal da verdade. Não há análise, não há dúvida; há apenas a
antevisão de trazer a lume um novo volume, que alcançará o leitor por um preço
maior que seu valor venal, fomentando ideias equivocadas, insuflando terror,
deturpando ao Espiritismo e explorando a fé alheia; uma fé religiosa, e não uma
fé raciocinada, que se registre.
Entretanto, a responsabilidade de
Roustaing acerca do que deu posteridade é partilhada por este movimento
espírita brasileiro, e por cada espírita que nele se reconhece,
principalmente por que Allan Kardec não dispôs a Doutrina dos Espíritos sem
recursos no sentido de averiguar-se tudo quanto ditam os Espíritos - muito ao
contrário, posto que desde o princípio preocupou-se com esta porta escancarada
a dar passagem para qualquer um. Lavrou a questão, contudo, de modo mais
assertivo na Introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo, com
o Controle Universal dos Ensinamentos dos Espíritos. Quem se aventurou
em seguir-lhe as instruções, em averiguar segundo tais regras as palavras de
além-túmulo? Tendo em vista a imensurável bibliografia que sob a signa de literatura
espírita se produziu e se produz, certamente poucos o fizeram e fazem. Para
aqueles que argumentarão contra é preciso recordar: Roustaing lançou sua obra em
1866, enquanto que O Evangelho Segundo o Espiritismo já estava à
disposição em 1864 - o advogado bordelês, porém, não o leu, ou ao menos não
alegou tê-lo feito nos documentos por nós compulsados. Para efeito de registro
ele alegou haver posto olhos apenas em O Livro dos Espíritos e O
Livro dos Médiuns. Para aqueles que empreenderam em semelhante prática,
havendo recebido mensagens e ou narrativas de origem espiritual, e que se
alegam espíritas, é imperdoável que não hajam seguido estritamente as instruções
dadas pelo professor.
Graças a disposição íntima de
crer sem raciocinar, não é equivocado afirmar que este movimento espírita
brasileiro é, antes, um movimento roustaiguista, por adotar-lhe a falta de
sistema, de um critério para julgar as mensagens espirituais, ignorando
completamente a Allan Kardec. Eis pois, por que afirmamos diuturnamente que
este movimento espírita é ilegítimo. E, outrossim, por que sobrevivem
consensualmente a idolatria a médiuns e personalidades, por que se aceita
bovinamente a obra de Espíritos claramente pseudo-sábios e, por que vicejam as
ideias e ideologias destes. O que se tem é o pastiche, o simulacro. O conceito
de Colônias Espirituais é um distintivo exemplo do materialismo fincando
bandeira onde, teoricamente, jamais o poderia. Deturpado ou corrompido o
fundamento da erraticidade, o Espiritismo se desintegra e o que resta é crença
cega na doutrina de um só Espírito.
Considerando-se o fato de que
cada ser vivente na matéria se encaminha inexoravelmente para o fenômeno da morte,
seria de bom senso que o que está por vir, caso se creia que algo sobrevive ao
decesso, fosse questão candente. Dotado de capacidade cognitiva única, a
criatura humana pôde aventar teorias ao longo de sua trajetória, e por milênios
a dualidade espírito/matéria esteve no centro das disciplinas do conhecimento.
Porém, o materialismo foi se robustecendo a cada novo mestre da matéria, em
sistemas filosóficos intrincados e, frequentemente, herméticos - entretanto, o
homem comum não se mostra disposto a apreciar as teorias do materialismo em seu
apogeu; no seu imo calam profundamente os velhos questionamentos acerca da
existência, de sua natureza, de sua razão de ser e do que o espera o futuro.
Acaso a Academia e sua agremiação de sábios astênicos se perde na retórica bela
e vazia, a religião não dá sinais mais promissores no sentido de fomentar uma
cultura do Espírito. Os tele-evangelistas pregam a teologia da prosperidade,
insuflando a barganha com a divindade num paradigma deísta primitivo e
materialista; quando não incorrem aos mesmos procederes dos palestrantes que se
espalham pelos supostos centros espíritas da nação, vertidos em gurus da
auto-ajuda.
Mas o que tem a felicidade do ser
a ver com isto? A matéria pode ser o foco motriz do sofrimento dos Espíritos,
ou melhor dito, o apego a matéria, traduzido pelo vocábulo materialismo, pode
ser o âmago do sofrimento espiritual. Parece parte da necessidade do progresso
do Espírito compreender o limite entre a materialidade do mundo físico, e a
espiritualidade do mundo pós-físico, ou dito de modo espírita, do mundo
espiritual, ou mundo espírita. Não há melhor tradução para isto do que a
doutrina de Jesus de Nazaré, que pode ser sintetizada na frase estar no
mundo sem ser escravo dele. Falando e atuando segundo esta singela, ainda
que complexa sentença, Jesus veio dar o demonstrativo máximo de tudo quanto
pregou e fez ao morrer - sua aparição posterior, em meio a seus adeptos tinha
este único e assertivo objetivo, ou seja, demonstrar a existência e
sobrevivência do ser espiritual, mas também afirmá-lo como ser principal, sendo
sua expressão física senão uma frágil e fugidia manifestação. Assim de pode
compreender melhor, portanto, o papel do Espiritismo, que veio reiterar a
doutrina de Jesus, atando a ela novas revelações acerca da origem do Espírito,
de sua razão de ser, de seu destino, do que há para além do mundo físico, e das
razões pelas quais não se deve deixar este apegar-se aquele. O materialismo que
passou a preconizar o Jesus ressurreto, renascido em carne e sangue, pôs abaixo
sua doutrina, distorceu-a e criou a cristandade que, muito distante de
professar o espiritualismo, mais se aprofunda na valorização da matéria. A
questão 1018 de O Livro dos Espíritos resume bem a isto:
“1018. Em que sentido se devem
entender estas palavras do Cristo: Meu reino não é deste mundo?
Respondendo assim, o Cristo
falava em sentido figurado. Queria dizer que o seu reinado se exerce unicamente
sobre os corações puros e desinteressados. Ele está onde quer que domine o amor
do bem. Ávidos, porém, das coisas deste mundo e apegados aos bens da Terra, os
homens com ele não estão.”
2.
“O coração humano é um cálice
cheio de lágrimas”, já o expressara o Espírito Georges na edição de junho
de 1860 da Revista Espírita, em texto intitulado Miséria Humana -
este conceito ancestral refere-se em sua acepção mais ampla, a condição do
Espírito humano encarnado na Terra. Não se constitui grande dificuldade a
ninguém enumerar as razões pelas quais a expressão da vida humana no planeta
não é idílica; qualquer indivíduo conhece as aflições que atingem o homem.
Levando-se em conta as múltiplas existências do Espírito, não há que excluir um
só que não tenha sofrido, que não haja sentido na própria tessitura do ser a
dor, as angústias morais, a antevisão da debilidade, os tormentos da perda da
saúde, a profundidade das tristezas, os agônicos padecimentos, os estados
depressivos, a indigência da exclusão e da escassez absoluta das necessidades
básicas.
A leitura das Obras Básicas
esclarece em tantos seguimentos as razões da miséria humana que vir neste ponto
transcrevê-las seria praticamente copiá-las quase na íntegra - mas se há uma só
razão, ou antes uma palavra que resuma in totum o âmago das dores
humanas é esta a paixão. Não paixão no sentido que a escola romântica lhe dá,
mas num aspecto mais amplo, no apego aos excessos, na expressão das exaltações
dos sentidos e dos sentimentos, da emotividade extremada e do apetite ardente
por pessoas, coisas ou experiências - algo que a Psicanálise resumiria na
palavra desejo, ou que o Budismo chama de Trishna (a sede insaciável dos
desejos humanos, e causa do sofrimento). E aqui tem-se uma vez mais a
argumentação materialista que, contrariando as instruções espirituais, versa
que o homem, desde suas primeiras idades pré-históricas existindo numa vida
violenta e mortal, foi induzido a satisfazer de imediato as necessidades do
corpo, tornando-se um oportunista em relação a saciar-se, tendo em vista que o
amanhã não poderia dar-lhe garantia de cousa alguma. Isto é compreensível do
ponto de vista físico, mas o homem não é apenas isto - parte de si criou, ao ir
contra este impulso, com organização e disciplina, a previdência para os dias
vindouros. Sai ele então do nomadismo, passa a domesticar formas de vida vegetais
e animais, criando a agricultura e a agropecuária; vive em assentamentos com
muitos indivíduos, precisa então de leis para regrar a vida em comunidade...
Enfim, a saga humana na Terra é por reprimir em si estes condicionamentos
primevos, para abandonar seu feitio animal em busca de assumir-se por sua
natureza primeira, a espiritual, num processo que deve, antes, ser natural e
espontâneo. Foram certos aspectos deste carácter humano que, reprimidos em
demasia pela sociedade do século XIX vieram por suas mais sofridas
consequências fundamentar em parte o nascimento da Psicanálise.
N'O Livro dos Espíritos,
em o Ensaio Teórico da Sensação nos Espíritos, Allan Kardec refere-se as
paixões pelos seguintes dizeres:
“Os sofrimentos deste mundo
independem, algumas vezes, de nós; muito mais vezes, contudo, são devidos à
nossa vontade. Remonte cada um à origem deles e verá que a maior parte de tais
sofrimentos são efeitos de causas que teria sido possível evitar. Quantos
males, quantas enfermidades não deve o homem aos seus excessos, à sua ambição,
numa palavra: às suas paixões? Aquele que sempre vivesse com sobriedade, que de
nada abusasse, que fosse sempre simples nos gostos e modesto nos desejos, a
muitas tribulações se forraria. O mesmo se dá com o Espírito. Os sofrimentos
por que passa são sempre a consequência da maneira por que viveu na Terra.”
Os Espíritos da Codificação,
entretanto, são austeros e incisivos, parecendo optar pela renúncia e ascetismo
ao equilíbrio do Codificador aqui expresso; da seguinte forma eles lhe
respondem:
“968. Citais, entre as
condições da felicidade dos bons Espíritos, a ausência das necessidades
materiais. Mas, a satisfação dessas necessidades não representa para o homem
uma fonte de gozos?
Sim, gozo do animal. Quando
não podes satisfazer a essas necessidades, passas por uma tortura.”
E pode-se supor que prefiram a
abstinência, justamente por conhecerem desde há muito aos piores efeitos do gozo
animal satisfeito:
“972. Como procedem os maus
Espíritos para tentar os outros Espíritos, não podendo jogar com as paixões?
As paixões não existem
materialmente, mas existem no pensamento dos Espíritos atrasados. Os maus dão
pasto a esses pensamentos, conduzindo suas vítimas aos lugares onde se lhes
ofereça o espetáculo daquelas paixões e de tudo o que as possa excitar.”
“972A. Mas, de que servem
essas paixões, se já não têm objeto real?
Nisso precisamente é que lhes
está o suplício: o avarento vê ouro que lhe não é dado possuir; o devasso,
orgias em que não pode tomar parte; o orgulhoso, honras que lhe causam inveja e
de que não pode gozar.”
O contentamento humano é a
satisfação das necessidades físicas - porém, não raramente o que até então
poderia ser pautado pelo comedimento e frugalidade torna-se, em decorrência da
compulsão das personalidades em vício, sob as mais trôpegas e escusas
justificativas. O homem se rejubila ao poder satisfazer a sede, mas também se
entorpece de alcaloides; anseia pelas oportunidades do sexo, mas ora abusa da
prática; implora pelo tempo de descanso, mas com muita frequência se deixa
dominar pela preguiça; aspira ao alimento reparador das forças, mas cai cativo
dos sabores até o extremo da obesidade; desesperadamente a felicidade persegue,
mas apela ao acesso fácil a substâncias que induzem a alegria, até se ver precisar
de elementos que produzam o efeito contrário. Da necessidade se vai ao abuso,
do abuso ao vício, e deste para a paixão, obsessivamente nutrida na antevisão
de sua própria satisfação. Advindo o decesso, o ser padece da abstinência
forçada que lhe impõe sua natureza errante - em seguimento a questão 957 de O
Livro dos Espíritos, esclarecem o seguinte a Allan Kardec os Espíritos:
“Para o Espírito errante, já
não há véus. Ele se acha como tendo saído de um nevoeiro e vê o que o distancia
da felicidade. Mais sofre então, porque compreende quanto foi culpado. Não tem
mais ilusões: vê as coisas na sua realidade.”
Quais quadros se pode imaginar
para os Espíritos que erram numa infrutífera busca pela satisfação das paixões?
Sofrimentos agravados por essa visão da realidade a lhes revelar o quão
distantes se encontram da felicidade. Para uma parcela imagina-se constituir
alento não mais precisar demandar tempo e esforços a mitigar a fome, a sede, o
sono, a imperiosa necessidade de urinar ou defecar, ver-se livre das regras
menstruais, enquanto que em mesma medida muitos sentirão falta do sexo, do
álcool, do empanzinamento próprio dos glutões, da inércia dos preguiçosos, etc.
Arriscamo-nos afirmar que este impulso animal, com base no estudo da Doutrina
dos Espíritos, consiste na forma mais primordial de atavismo do Espírito humano
sobre a Terra. Não são de per si ruins, visto que elas surgem no andamento
natural do progresso do Espírito, até serem expurgadas deste em sua jornada
ascendente - mas, tendo em vista a sociedade atual, em que domina o
materialismo, a dor, o sofrimento e a infelicidade resultante da satisfação
extrema e abusiva das necessidades básicas, e das paixões que seu abuso dimana,
vem convidar a um esforço notável suplantá-las o quanto antes. Um esforço
notável e bastante meritório, dada a coação por que padece o indivíduo,
constrangido por um modus pensandi coletivo que valoriza ao desejo em
detrimento a necessidade. Como nunca antes será preciso a consciência de se
estar no mundo sem lhe ser um escravo.
Destarte, observemos um último
adendo a este tópico para aclarar ainda mais a questão:
“970. Em que consistem os
sofrimentos dos Espíritos inferiores?
São tão variados como as
causas que os determinam e proporcionados ao grau de inferioridade, como os
gozos o são ao de superioridade. Podem resumir-se assim: invejarem o que lhes
falta para ser felizes e não obterem; veem a felicidade e não na poderem
alcançar; pesar, ciúme, raiva, desespero, motivados pelo que os impede de ser
ditosos; remorsos, ansiedade moral indefinível. Desejam todos os gozos e não os
podem satisfazer: eis o que os tortura.”
3.
“965. Tem alguma coisa de
material as penas e gozos da alma depois da morte?
Não podem ser materiais, di-lo
o bom senso, pois que a alma não é matéria. Nada têm de carnal essas penas e
esses gozos; entretanto, são mil vezes mais vivos do que os que experimentais
na Terra, porque o Espírito, uma vez liberto, é mais impressionável. Então, já
a matéria não lhe embota as sensações.”
Imagina-se que, para o espírita,
a questão da felicidade represente um tema fulcral - e à maneira que é abordado
pelo Doutrina, soma maior importância que para o restante da humanidade;
conhece-se e compreende-se as consequências das próprias ações para a vida em
erraticidade, tanto quanto para as vindouras reencarnações. Não é, portanto,
senão imperioso entender o tema em profundidade. Posto que a felicidade e a
infelicidade do Espírito nada tem da materialidade da vida física, em que se
constituiriam então? Allan Kardec fez já este questionamento aos Espíritos, mas
carece de mais:
“967. Em que consiste a
felicidade dos bons Espíritos?
Em conhecerem todas as coisas;
em não sentirem ódio, nem ciúme, nem inveja, nem ambição, nem qualquer das
paixões que ocasionam a desgraça dos homens. O amor que os une lhes é fonte de
suprema felicidade. Não experimentam as necessidades, nem os sofrimentos, nem
as angústias da vida material. São felizes pelo bem que fazem. Contudo, a
felicidade dos Espíritos é proporcional à elevação de cada um. Somente os puros
Espíritos gozam, é exato, da felicidade suprema, mas nem todos os outros são
infelizes. Entre os maus e os perfeitos há uma infinidade de graus em que os
gozos são relativos ao estado moral. Os que já estão bastante adiantados
compreendem a ventura dos que os precederam e aspiram a alcançá-la. Mas, esta
aspiração lhes constitui uma causa de emulação, não de ciúme. Sabem que deles
depende o consegui-la e para a conseguirem trabalham, porém com a calma da
consciência tranquila e ditosos se consideram por não terem que sofrer o que
sofrem os maus.”
E se pode suplementar esta
riquíssima resposta com o adendo do Codificador a questão 979 de O Livro dos
Espíritos:
“Goza da felicidade a alma que
chegou a um certo grau de pureza. Domina-a um sentimento de grata satisfação.
Sente-se feliz por tudo que vê, por tudo o que a cerca. Levanta-se-lhe o véu
que encobria os mistérios e as maravilhas da Criação e as perfeições divinas em
todo o esplendor lhe aparecem.”
Num mundo dominado pelo
materialismo, e diante do exposto, pode-se reiterar a questão que dá título ao
presente artigo - qual a verdadeira felicidade? Não é a do corpo, da vida
material, física; a felicidade verdadeira é a do Espírito, e difere de
simplesmente saciar a fome ou a sede. Pelo que foi dado em resposta a questão
acima transcrita, a ausência das paixões já é, por si uma grande fonte de plena
felicidade, livrando o Espírito de emoções e sentimentos negativos que
constituem, para a generalidade dos encarnados na Terra, a infeliz regra. Em
seguimento, a união daqueles que hajam atingido este ponto de progresso é,
outrossim, uma razão maior de felicidade, bem como a liberdade do que apontamos
como o mais primitivo atavismo do Espírito, a prisão das necessidades
materiais, e dos sofrimentos que podem ocasionar. Eis que aí notam que a
felicidade tem por motor o bem que se possa fazer a outrem, algo raro de se
encontrar nas expressões materiais terrenas, principalmente quando tais ações
se fazem anonimamente, desprovidas de interesses senão o de aliviar a dor e as
aflições alheias. Invulgarmente essa bonomia encontra desconfiança num mundo em
que parecer bom tornou-se mais importante que o sê-lo de fato - isto empresta
um caráter ainda mais alienígena as prescrições dos Espíritos, e não raro muitos
tomam tais palavras como utopias, vindo enfatizar a hegemonia suprema do
materialismo no seio da humanidade.
Ao Sr. Jobard, presidente honorário da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, em espontânea manifestação, coube registrar as impressões vívidas de sua condição em erraticidade, comprazendo-se em afirmar - “Ah! Meus caros amigos, que prazer se experimenta sem o peso do corpo! Quanta alegria no abranger o Espaço!” - ou o bom e obscuro Samuel Philippe que afirmou: “indizível sensação de bem-estar penetrava todo o meu ser, a presença dos que amara alegrava-me sem surpreender, antes parecendo-me natural, como se os encontrasse depois de longa viagem.” Ainda há Van Durst, octogenário de partida para outra esfera, cuja alegria expressou nos seguintes termos: “Que vida nova, meu amigo, nova, brilhante e cheia de ventura! Salve, oh! Salve, eternidade que me conténs em teu seio! Adeus, Terra que por tanto tempo me retiveste afastado do elemento natural da minha alma! Não... eu nada mais de ti queria, porque és a terra do exílio, e a maior das felicidades que dispensas nada vale!” Tem-se a seguir o Espírito Sixdeniers reportado como homem de bem que afirma: “Nada existe aqui de material; tudo fere os sentidos ocultos sem auxílio da vista ou do tato: compreendeis? É uma admiração espiritual que ultrapassa o vosso entendimento, porque não há palavras que a expliquem. (...) Bem feliz foi o meu despertar. A vida é um desses sonhos que, apesar da ideia grosseira que se lhe atribui, só pode ser qualificada de medonho pesadelo.”
Surge em seguida, o Dr. Demeure,
médico homeopata de grande abnegação e caridade para com os pacientes que a ele
acorriam, carentes de recursos e saúde; vivaz e engajado propagandeador da
Doutrina dos Espíritos, deu a seguinte mensagem após o decesso: “Ágil como o
pássaro que cruza célere os horizontes do vosso céu nebuloso, admiro,
contemplo, bendigo, amo e curvo-me, átomo que sou, ante a grandeza e sabedoria
do Criador, sintetizadas nas maravilhas que me cercam. Feliz! Feliz na glória!
Oh! Quem poderá jamais traduzir a esplêndida beleza da mansão dos eleitos; os
céus, os mundo, os sóis e seu concurso na harmonia do universo? (...) Sou feliz
e mais feliz do que esperava, gozando de uma lucidez rara entre os Espíritos,
relativamente ao tempo da minha desencarnação.” Após Allan Kardec dá espaço
aos depoimentos da Sra. Foulon que atesta, após o desencarne haver despertado
cercada de bons Espíritos: “Eles prodigalizavam-me cuidados e carícias, ao
mesmo tempo que me mostravam no Espaço um ponto algo semelhante a uma estrela,
dizendo: 'é para ali que vai conosco, pois já não pertence mais à Terra'.
Então, recordei-me; e, apoiada sobre eles, formando um grupo gracioso que se
lança para as esferas desconhecidas, mas na certeza de aí achar a felicidade,
subimos, à proporção que a estrela se engrandecia...” - outro dos Espíritos
que, em estado de felicidade, depara-se com a paga dos sofrimentos migrando
para novo mundo, correspondente a seu estado íntimo de progresso.
O Espírito de um médico russo, ao
lhe ser perguntado acerca de sua felicidade assim a expressa: “Essa ventura
que gozo é uma espécie de contentamento extremo de mim mesmo, não pelos meus
merecimentos - o que seria orgulho - e este é predicado de Espíritos atrasados
- mas contentamento como que saturado, imerso no amor de Deus, no
reconhecimento da sua infinita bondade. Em suma, é a alegria que nos infunde o
bem, podendo supor-te ter a seu arbítrio contribuído para o progresso de
outros, que se elevaram até o Criador. Ficamos como que identificados com esse
bem-estar, que é uma espécie de fusão do Espírito com a bondade divina.”
Emma Livry, a última das bailarinas românticas, teve sua roupa de tule
incendida em pleno palco, num tempo em que as casas de espetáculos, os salões e
os teatros eram iluminados por candeeiros em chamas; suas queimaduras
fizeram-na padecer longos oito meses até sua morte por septicemia em 26 de
julho de 1863, com apenas 20 anos de idade. Espontaneamente manifestou-se em
mensagens as quais algumas palavras se destacam: “Seja resignado se for
ferido e diante de Deus que é o criador absoluto, inclinai-vos pela vossa
bondade quando Ele vos der um fardo pesado para suportar. Se Ele vos chamar
depois de grandes sofrimentos, se nenhum lamento ou murmúrio entrar em vosso
coração, vereis como eram poucas essas dores e as penas da Terra, quando
percebeis a recompensa que Deus vos reserva.”
E a tal maneira seguem os
depoimentos colhidos à mesa mediúnica, dispondo de firme propósito o estudioso
para, no recolhimento exigido a própria instrução, encontrar um conteúdo
riquíssimo na obra de cujos enxertos demos pálidos fragmentos. O que os
Espíritos da Codificação vem a Allan Kardec responder encontra eco desde as
mais antigas expressões religiosas e escolas filosóficas, até os mais bem intencionados
gurus da auto-ajuda contemporâneos - a felicidade é um estado de alma,
particular, ao que o Espiritismo complementa afirmando-a como consequência do
progresso do ser, progresso esse que se constitui no avolumar do conhecimento,
haurido de existência em existência, uma encarnação após outra, ao longo de um
dado período mais ou menos longo. Nenhuma experiência sequer deixa de ser para
o Espírito, uma causa que permita aspirar novos saberes, novos conhecimentos,
que traga por efeito mais discernimento, compreensão e lucidez. Tais mensagens,
muitas outras e seus autores, presentes ao longo das mais de oito mil páginas
que Allan Kardec dedicou ao Espiritismo deveriam ser, a este movimento de
pessoas que se alegam espíritas, tão familiares quanto o são as figuras
bíblicas para os crentes da cristandade - nem de longe com a mesma nula e
obtusa idolatria, mas com respeito e afeição semelhantes as devotadas as
personagens que pela história particular dos indivíduos passa disseminando zelo
e fraternal amor. Sim, pois tais mesmos, por seus depoimentos vêm lembrar o
espírita diuturnamente que será preciso planificar a vida, e a vida para além
da vida. Pois, por que se o homem comum a quem as cousas do Espírito ignora e a
morte lhe é fonte de temor, para o espírita deve ser manancial inesgotável de
estudos contínuos e, senão de preocupação, de anseios naturais, esperanças e
perspectivas que anteveem possibilidades. O Espiritismo necessita ter um fim
prático para a vida do Espírito encarnado, muito além do que apenas pode
realizar a fluidoterapia, e do que tenha a ofertar a fala mansa de certos
palestrantes ou as narrativas chocantes de vis escrevinhadores de além-túmulo -
não, o Espiritismo dá o lenitivo fundamental, indicando ao homem sua origem,
sua razão de ser, e seu futuro. Eis aí um manual de instruções que vai
muito além do alcance do materialismo, destituindo aos pensadores da matéria a
condição de meditabundos patéticos que fogem a antevisão da cova a lhes
prescrever um grande e vazio nada. Enquanto a alguns homens parece impossível
viver um só dia antecipando seu fim inexorável, ao espírita é impossível viver
um só dia sem a necessidade de antevê-lo - pois que a morte pode ser a fonte de
grandes sofrimentos, mas apenas ela pressagia a verdadeira felicidade.
“Sendo a felicidade dos
Espíritos inerente às suas qualidades, haurem-na eles em toda parte em que se
encontram, seja à superfície da Terra, no meio dos encarnados, ou no Espaço.
(...) O mundo espiritual tem esplendores por toda parte, harmonias e sensações
que os Espíritos inferiores, submetidos à influência da matéria, não entreveem
sequer, e que somente são acessíveis aos Espíritos purificados.”
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