domingo, 24 de maio de 2020

A Dança das Esferas

Para onde se vai após a morte? Esta é uma pergunta frequente que explicita a recorrência da temática, por sua aparente complexidade, mas também e principalmente por toda a confusão gerada pelas narrativas de escrevinhadores de além-túmulo, que supõe deveriam resguardar-se no esforço por progredir ao silêncio dos Espíritos verdadeiramente elevados. No exercício de ler e estudar tão somente as obras de Allan Kardec, o estudioso se familiariza não apenas com o estilo didático e conciso do mestre, mas com aspectos pouco presentes, ou totalmente ausentes da literatura dos médiuns, o que lhes revela e denuncia a pouca profundidade dos conhecimentos espíritas.

O ir e vir dos Espíritos, de um mundo a outro é algo que surpreende os despreparados, que antes se perdem em devaneios oníricos por cidades fluídicas flanando no céu, fazendo a alegria dos Espíritos enganadores e pseudo-sábios que se riem da ignorância vigente. A questão é evocada por meio dos tais Espíritos que teriam sido exilados de um mundo supostamente existente na constelação de Auriga, sob o nome Capela - os leitores acríticos são levados a imaginar levas de Espíritos sendo constrangidos a reencarnarem-se em mundos inferiores, o que assim posto, sem a necessária adição de explicações, resultam inferir pela retrogradação do Espírito, o que não pode ser. Seus avanços se deram puramente no intelecto, que forçosamente os impeliu a uma maior sensibilidade e pendor para as ciências, artes e cultura, e não se traduziu em moralidade excelsa. E exclusivamente se trata das raças adâmicas que registra Allan Kardec em A Gênese - este povo, ou povos se achavam àquele tempo identificados, em grande parte, aos hebreus. Afirmar que teriam vindo de Capela é já um arrojo especulativo desmedido e irresponsável; principalmente levando-se em conta a fonte pouco confiável que dá nota a esta história, Emmanuel e Edgard Armond.

Em tal mesma obra, o Codificador trata deste fenômeno das migrações e emigrações de Espíritos, ao que destaca-se em seu texto os seguintes e pertinentes trechos:

Pelas mortes e pelos nascimentos, as duas populações, terrestre e espiritual, desaguam incessantemente uma na outra. Há, pois, diariamente, emigrações do mundo corpóreo para o mundo espiritual e imigrações deste para aquele: é o estado normal. (...) Essa transfusão, que se efetua entre a população encarnada e desencarnada de um planeta, igualmente se efetua entre os mundos, quer individualmente, nas condições normais, quer por massas, em circunstâncias especiais.

Está claro que assim como diariamente morre-se e nasce-se na Terra, indivíduos de outros mundos aqui se reencarnam, enquanto outros partindo daqui vão se reencarnar nestes. É um fluxo incessante e diário - mas entre uma encarnação e outra, ensina o Espiritismo, há o período da erraticidade, que pode resultar mais ou menos longo em consonância ao progresso íntimo de cada Espírito; para onde se vai aí? Onde se pousa? As Obras Básicas possuem em si a resposta, mas a medida de sua riqueza é proporcional a carência de ânimo reinante para as compulsar continuamente, com regra e propósito, constituindo um estudo perene e sério da Doutrina dos Espíritos. Não seja por O Céu e o Inferno, o estudioso engajado pode colher nos doze volumes constitutivos da Revista Espírita um sem número de comunicações de Espíritos vindo atestar-lhes o destino, as atividades, os fenômenos que se lhes decorreram por ocasião da morte e após. Tratando desta, em específico, a edição de fevereiro de 1858 traz um curto seguimento que resume a questão:

Quando às suas qualidades íntimas, os Espíritos pertencem a diferentes ordens, que percorrem sucessivamente à medida que se depuram. Como estado, podem estar encarnados, isto é, unidos a um corpo num mundo qualquer; ou errantes, ou seja, despojados do corpo material e aguardando nova encarnação para se melhorarem. Os Espíritos errantes não formam uma categoria especial; é um dos estados em que podem encontrar-se. O estado errante ou de erraticidade não constitui inferioridade para os Espíritos, pois que nele os podemos encontrar em todos os graus. Todo Espírito que não está encarnado é, por isso mesmo, errante, à exceção dos Espíritos Puros que, não tendo mais encarnação a sofrer, estão no seu estado definitivo. Não sendo a encarnação senão um estado transitório, a erraticidade é, em verdade, o estado normal dos Espíritos e esse estado não lhes é, forçosamente, uma expiação. São felizes ou desventurados conforme seu grau de elevação e segundo o bem ou o mal que hajam praticado.

As particularidades da erraticidade encontram-se disponíveis para os interessados em O Livro dos Espíritos, num sistema simples de perguntas e respostas - e de modo mais adensado em O Céu e o Inferno. Outros artigos tratando do tema de modo pormenorizado se encontram presentes na Revista Espírita, e aí está a substância que move os esforços presentemente, no tocante a esta dança pelas esferas planetárias que os Espíritos empreendem, questão em relação direta com a erraticidade. Pode espantar aos de caráter vulnerável tal fato, muitos dentre estes para quem a pluralidade dos mundos habitados é um assunto por demais longínquo para por olhos e deitar esforços. No entanto, é bom que se registre, a erraticidade é um estado do Espírito entre uma existência física e outra, o seu decurso e os caminhos percorridos por este enquanto aguarda o ensejo de uma vindoura estadia na materialidade da vida encarnada não guarda os limites traçados pelas imaginativas narrações de além-túmulo. Mui diversamente, para o Espiritismo, o Universo é uma casa desprovida de portas, cujo único impedimento ao livre trânsito do Espírito é sua condição íntima de progresso.

Mentalidades algo sensíveis, entregues a manipulação fantasiosa das especulações ufológicas, ou ao entretenimento comum à ficção-científica, vislumbram o espaço cósmico infinito com o temor dos ancestrais da humanidade, para quem a natureza fora tão cruel quanto bela e, ao mesmo tempo, misteriosa. Xenomorfos do espaço profundo e relatos supostamente verídicos de abduções por OVNIs emprestam ao Cosmo a feição de um inferno exterior, negro, frio, silencioso e mortal. Para o Espiritismo, no entanto, e para Allan Kardec por conseguinte, a endemia da vida nos mundos constitutivos do Universo é uma realidade inconteste - não tanto para os físicos e astrofísicos que oficialmente acautelam-se diante da possibilidade. Poucos, todavia, cravam a infeliz sentença que a vida na Terra é uma expressão singular do acaso. Seria preciso que cada fragmento de rocha, de cada mundo existente fosse examinado para se inferir pela absoluta negativa, tendo em vista mesmo as expressões que a vida toma, do micro ao macro, no planeta.

Ao que falte em fé no futuro e prática da fé raciocinada, em que inexista ânimo pela leitura crítica e pelo estudo assíduo, em que careça vocação íntima para voos intelectuais mais altos, não será por este pequeno e despretensioso ensaio que a formação do espírita será distintiva, ainda menos completa ou definitiva. Não - escusando-nos a expor trechos inteiros das Obras Básicas, o presente tem por fim empreender uma viajem pelo periódico criado e editado por Allan Kardec; um mero convite ao leitor simpático a Doutrina, para apreciar as vozes de além-túmulo que vem dar de si um contributo ao conhecimento espírita, revelando suas jornadas por outros mundos, patenteando o que está em A Gênese acerca das migrações dos Espíritos, buscando ofertar a perspectiva, senão nova para todos, mas para grande parcela, do que aguarda o progresso particular do ser, para muito além das narrativas ficcionais de autores espirituais que fizeram e fazem da mesa mediúnica o palco de um grotesco espetáculo de egos e inverdades.

Um dos seguimentos da Revista Espírita destinados a transcrição das comunicações dos Espíritos, via de regra, recebidos em sede da Sociedade Parisiense de Estudos Espírita, denominado Conversas Familiares de Além-túmulo, é a que vem agraciar o estudioso com relatos os mais interessantes acerca da erraticidade em seus diversos aspectos - inclusive a migração para outros mundos. Na edição de fevereiro de 1858, com o subtítulo Senhorita Clary D..., Allan Kardec trava contato com o Espírito que fora em sua derradeira encarnação uma jovem, a que lhe sucedera a morte aos 13 anos de idade, vindo posteriormente ser evocada e legou diversas comunicações do mais alto interesse. A certa altura do registro em exame, o mestre lionês pergunta a ela acerca de sua futura reencarnação:

4. Será na Terra ou em outro mundo? Resp. - Num outro.
5. Em relação à Terra, o mundo para onde ireis terá condições melhores, ou inferiores? Resp. - Muito melhores que as da Terra; lá se é feliz.

Na mesma seção, em edição de março, Allan Kardec evoca Lemaire, um assassino que teve por pena capital a decapitação, ocorrida no último dia do ano de 1857; parte de sua comunicação se encontra em O Céu e o Inferno. Aqui também temos menção natural a outros mundos pelo qual o mestre questiona, acerca da reparação dos males provocados em vida pelo Espírito:

32. Como pretendeis repará-los? Resp. - Por novas provações, conquanto me pareça que existe uma eternidade entre elas e mim.
33. Essas provas se cumprirão na Terra ou num outro mundo? Resp. - Não sei.

O conceito da transição de mundos, ou antes da migração dos Espíritos pelos diversos globos do Cosmo, é de tal conta intrínseco ao ensinamento dos pilares do Espiritismo que, mesmo alguém que principia seus estudos aí já o conhece e reconhece. Allan Kardec dá espaço na edição de maio a correspondência de um assinante que lamenta a morte da esposa, e que por tal fato se aproximou da doutrina espírita, tendo obtido da falecida algumas comunicações acerca das metades eternas - conceito a que Allan Kardec em seguida trata de derrubar. A falecida revela que sua metade eterna se encontra na Ásia e que com ele se reunirá apenas no futuro, ao que o marido questiona: 'Reunir-vos-eis na Terra ou num outro mundo?' - ou seja, mesmo para este pobre viúvo que se inicia nos caminhos do Espiritismo, a ideia segundo a qual o Espírito move-se de um mundo a outro é indubitável. Em seguida a este artigo, a Revista Espírita traz uma comunicação de Mozart, que não fora obtida diretamente pela Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, mas a ela enviada, onde uma questão se destaca pois, o perquiridor deseja saber do estado do Espírito após a morte:

18. Nada leva consigo daqui da Terra? Resp. - Somente a lembrança de suas boas ações, o pesar de suas faltas e o desejo de ir para um mundo melhor.

Na edição de julho, Allan Kardec trava contato com Espírito que se identificara pelo nome Célima, tocador de tambor falecido aos 45 anos em Paris - a ele questiona se permanece apenas na Terra ou vai a outros mundos, reiterando o sabido acerca do trânsito espiritual entre os planetas do universo. Ainda nesta edição, sob o título de Espíritos Impostores o Falso Padre Ambrósio, debruça-se ele acerca de comunicações publicadas em periódico de Nova Orleans, EUA, de um sacerdote de nome Padre Ambrósio que vivera naquela região no século XVIII, homem bom, inteligente e venerável, que são claramente falsas. Evocando o verdadeiro padre, em certo momento lhe questiona:

24. E vós, Padre Ambrósio, em que situação vos encontrais? Resp. - Encarnado num mundo feliz e desconhecido de vós.

Embora Júpiter seja o mundo mais adiantado a compor o sistema solar a que a Terra pertence, e a série de artigos abordando a existência de vida física aí haja causado comoção à época, e haja sido com zelo abordada no presente espaço em artigo datado de 18 de agosto do ano passado, claro, não constitui único destino dos eleitos. Por ocasião da edição de novembro, o Espírito do Dr. Muhr, médico homeopata falecido no ano anterior, fora evocado sob a expectativa de ir habitar tal mundo, graças a sua elevada reputação. A ele questiona Allan Kardec:

12. Acreditais que ireis para Júpiter quando reencarnardes? Resp. - Irei a um mundo que se não iguala ainda a Júpiter.

Mas não será na Terra que permanecerá. Na edição do mês seguinte, evoca-se Louise Labé, uma escritora lionesa da Renascença francesa, em cuja comunicação algumas questões se destacam:

“10. Parece que fostes feliz na Terra; sois mais ainda agora? Resp. - Que pergunta! Por mais feliz que se seja na Terra, a felicidade do Céu é bem diferente! Quantos tesouros, e quantas riquezas, que um dia conhecereis, e dos quais não suspeitais ou ignorais completamente!
11. Que entendeis por Céu? Resp. - Entendo por Céu os outros mundos.
12. No momento, que mundo habitais? Resp. - Habito um mundo que não conheceis; mas a ele estou pouco vinculada: a matéria prende-nos pouco.
13. É Júpiter? Resp. - Júpiter é um mundo feliz; mas pensais que, dentre todos somente ele seja favorecido por Deus? São tão numerosos quanto os grãos de areia do oceano.

Em janeiro de 1859, a Revista Espírita apresenta a transcrição da evocação de Diógenes de Sinope, cognominado o Cínico, aquele mesmo que perambulava por Atenas portando uma lanterna, em busca de um só homem honesto; obtém Allan Kardec interessantes respostas, as quais destaca-se:


17. Depois de vossa existência em Atenas reencarnastes na Terra? Resp. - Não, mas em outros mundos. Atualmente pertenço a um orbe em que não somos escravos, ou seja: se vos evocassem em estado de vigília não poderíeis atender ao chamado, como o faço esta noite.

Em fevereiro, um dos médiuns da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas traz a Allan Kardec uma mensagem por si recebida, sem assinatura, intitulada apenas A Infância, onde se lê:

Que há de mais belo, de mais grandioso que essa solidariedade que existe entre todos os mundos? Que de mais apropriado para nos dar uma ideia da bondade e da majestade de Deus? A Humanidade cresce por tais pensamentos, ao passo que se avilta se a reduzimos às mesquinhas proporções de nossa vida efêmera e de nosso imperceptível mundo entre os demais mundos

A edição de março registra a evocação de um chefe taitiano chamado Hitoti, a quem o Codificador vem questionar:

10. Quais as regiões que frequentais com mais boa vontade? Resp. - Regiões? Persuadi-vos de que não viajo mais à vossa Terra. Vou mais alto, mais baixo, acima e abaixo, moral e fisicamente. Vi e examinei com maior cuidado mundos ao nascente e ao poente e que ainda se acham em estado de terrível barbárie e outros que se encontram imensamente acima de vós.

Benvenuto Cellini foi uma das destacadas figuras do Renascimento italiano, tendo sido escultor, ourives e escritor - a edição de abril da Revista Espírita registra sua evocação:

3. Atualmente, qual a vossa situação como Espírito? Resp. - Vivi em vários outros mundo e estou muito satisfeito com a posição que hoje ocupo; não é um trono, mas estou a caminho.
11. Que mundo habitais? Resp. - Não o conheceis e não o vedes.
“12. Poderíeis dar-nos a sua descrição, do ponto de vista físico e moral? Resp. - Sim, facilmente. Do ponto de vista físico, meus caros amigos, alegrei-me com a sua beleza plástica: ali nada choca os olhos; todas as linhas se harmonizam perfeitamente; a mímica é a forma de expressão constante; os perfumes nos envolvem e não temos nada a desejar para o nosso bem-estar físico, uma vez satisfeitas as necessidades pouco numerosas a que estamos submetidos. Do ponto de vista moral, a perfeição é menor, pois ali ainda se pode ver consciências perturbadas e Espíritos inclinados ao mal. Não será a perfeição - longe disso - mas, como já falei, é o seu caminho e todos esperamos um dia alcançá-la.

Mozart retorna em registro a evocação, na edição de maio, ladeado por Chopin, em cuja conversa um trecho em especial chama a atenção do estudioso:


18. Como considerais as vossas produções musicais? Resp. - Eu as prezo muito, mas em nosso meio faze-mo-las melhores, sobretudo as executamos melhor. Dispomos de mais recursos.
19. Quem são, pois, os vossos executantes? Resp. - Sob nossas ordens temos legiões de executantes que tocam nossas composições com mil vezes mais arte do que qualquer um dos vossos. São músicos completos. O instrumento de que se servem é, por assim dizer, a própria garganta; são auxiliados por alguns instrumentos, espécies de órgãos de uma precisão e de uma melodia que, parece, ainda não podeis compreender.
20. Sois errante? Resp. - Sim; isto é, não pertenço, com exclusividade, a nenhum planeta.
21. Os vossos executantes também são errantes? Resp. - Errantes como eu.
22. [A Mozart] Poderíeis explicar-nos o que acaba de dizer Chopin? Não compreendemos essa execução por Espíritos errantes. Resp. - Compreendo vossa surpresa; entretanto, já vos dissemos que há mundos particularmente destinados aos seres errantes, mundos que lhes podem servir de habitação temporária, espécies de bivaques, de campos onde descansem de uma demasiada longa erraticidade, estado este sempre um tanto penoso.

Alexander von Humboldt fora geógrafo, naturalista e explorador prussiano; uma das figuras de maior destaque para as ciências naturais, suas contribuições para o aumento do saber do homem são ainda impossíveis de mensurar - seus diários foram disponibilizados a apreciação de todos somente apenas mais de 150 anos após sua morte, ou seja, recentemente; possíveis descobertas poderão surgir destes a qualquer momento. Faleceu com 89 anos no dia 6 de maio de 1859; oito dias após Allan Kardec evoca-o a sede da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. O registro de sua comunicação encontra-se na edição do mês seguinte da Revista Espírita, cujos trechos abaixo são pertinentes para o presente estudo:

9. Estais satisfeito com o emprego que fizestes de vossa existência terrena? Resp. - Sim. Cumpri mais ou menos o objetivo a que me propus. Servi à Humanidade, razão por que hoje sou feliz.
10. Quando vos propusestes este objetivo? Resp. - Ao vir para Terra.
12. Lembrais da existência que precedeu a que acabais de deixar? Resp. - Sim; ela se passou longe de vós, num mundo muito diferente da Terra.
13. Esse mundo é igual, inferior ou superior à Terra? Resp. - Desculpai; é superior.
15. Poderíeis dar-nos uma descrição dos seres animados do mundo em que habitáveis? Resp. - Ao vos falar há pouco, tinha esse desejo; mas compreendi, em tempo, que teria dificuldade de vo-lo explicar perfeitamente. Ali os seres são bons, muito bons; já compreendeis esse ponto, que é a base de todo o resto do sistema moral naqueles mundos: nada ali entrava o desenvolvimento dos bons pensamentos; nada lembra os maus; tudo é felicidade, porquanto cada um está contente consigo mesmo e com todos os que o cercam. Em relação à matéria e aos sentidos, qualquer descrição seria inútil. Que simplificação na engrenagem de uma sociedade! Hoje, que me acho em condição de comparar as duas, surpreendo-me com a distância. Não penseis que assim falo para vos desanimar, não, muito ao contrário. É necessário que o vosso Espírito fique bem convencido da existência de tais mundos; então sentireis um ardente desejo de os alcançar e o trabalho vos abrirá o caminho.

No mesmo número se registra a comunicação de Johann Wolfgang von Goethe, um gigante da literatura universal, autor de Os Sofrimentos do Jovem Werther e Fausto, além de naturalista, o que o fez tornar-se amigo de Humboldt. Nesta interessa o seguinte enxerto:

5. Qual a vossa opinião atual sobre o Fausto? Resp. - É uma obra que tinha como objetivo mostrar a vaidade e o vazio da ciência humana e, por outro lado, naquilo que havia de belo e de puro, exaltar o sentimento do amor, castigando-o no que continha de desregrado e de mau.
6. Foi por uma certa intuição do Espiritismo que descrevestes a influência dos Espíritos maus sobre o homem? Como foste levado a fazer essa descrição? Resp. - Eu tinha a lembrança quase exata de um mundo onde via atuar a influência dos Espíritos sobre os seres materiais.
7. Lembráveis, então, de uma precedente existência? Resp. - Sim, certamente.
8. Poderíeis dizer-nos se tal existência ocorreu na Terra? Resp. - Não, porque aqui não se vê os Espíritos agindo; foi realmente num outro mundo.
9. Mas, então, devia tratar-se de um mundo superior à Terra, desde que aí podíeis ver os Espíritos em ação. Como pudestes vir de semelhante mundo para reencarnar num orbe inferior como o nosso? Retrogradastes? Dignai-vos explicar o que se passou. Rep. - Era um mundo superior até certo ponto, mas não como o entendeis. Nem todos os mundos têm a mesma organização, sem que, por isso, tenham uma grande superioridade. Ademais, sabeis perfeitamente que entre vós eu cumpria uma missão que não podeis dissimular, porque ainda representais as minhas obras. Não houve retrogradação, considerando-se que servi e ainda sirvo para a vossa moralização. Eu aplicava aquilo que podia haver de superior no mundo precedente para corrigir as paixões de meus heróis.

Registra a edição de setembro, a comunicação espontânea do General Louis Lazare Hoche, militar do Exército Revolucionário Francês, morto aos 29 anos em setembro de 1797; seguem-se trechos surpreendentes de sua mensagem:

13. Será na Terra que deveis ter uma nova existência? Resp. - Não.
14. O mundo para o qual deveis ir é-nos conhecido? Resp. - Sim; Mercúrio.
15. Do ponto de vista moral, esse mundo é superior ou inferior à Terra? Resp. - Inferior. Eu o elevarei. Contribuirei para fazê-lo entre numa nova posição.
17. Do ponto de vista físico, os habitantes desse mundo são tão materiais quanto os da Terra? Resp. - Sim, completamente; mais ainda.
18. Fostes vós que escolhestes esse mundo para vossa nova existência? Resp. - Não, não. Eu teria preferido uma terra calma e feliz. Lá encontrarei torrentes de mal a combater e furores de crime a punir.

Ao que Allan Kardec vem complementar:

Observação - Quando nossos missionários cristãos vão aos povos bárbaros para tentar fazer que neles penetrem os germes da civilização, não cumprem uma função análoga? Por que, então, nos admirarmos de que um Espírito elevado vá a um mundo atrasado com vistas a fazê-lo avançar?

Por quantas mortes um jovem general pode ser responsabilizado? Na ordem social da Terra, é ainda a guerra um subterfúgio, drástico, para a resolução de questões conflituosas, a que a diplomacia de mais alto gabarito não alcança. E mesmo diante da violência imposta pelos combates e das vidas perdidas, o provimento das Leis Naturais encontra um fim útil para tudo.

As edições de 1860 contam com diversas menções pouco desenvolvidas acerca dos aspectos dos outros planetas do universo, exceção feita a Júpiter, cujos artigos publicados nos anos anteriores são relacionados as comunicações do pintor Nicolas-Toussaint Charlet acerca dos animais. Exceto este, as migrações dos Espíritos pelos diversos globos do universo são notadas en passant, como por exemplo em mensagem de São Luís presente a edição de agosto sob o título O Futuro, onde uma sua exortação final aos espíritas se destaca:

Ide, espíritas! Perseverai; fazei o bem pelo bem; desprezai suavemente os gracejadores; lembrai-vos de que tudo é harmonia em a Natureza, que a harmonia está nos mundos superiores e que, malgrado certos Espíritos fortes, tereis também a vossa harmonia relativa.

Na edição de março de 1861, Allan Kardec transcreve o diálogo travado com o Espírito identificado como Sra. Bertrand, a quem pergunta:

Embora vossa morte seja recente, já deixastes a Terra? Percorrestes os espaços e visitastes outros mundos? Resp. - O termo visitar não corresponde ao movimento tão rápido como o é a palavra, a qual nos faz, tão rápido quanto o pensamento, descobrir sítios novos. A distância não passa de uma palavra, como o tempo não é para nós senão uma mesma hora.

O Codificador principia a edição de junho reproduzindo um discurso de William Ellery Channing, chamado o apóstolo do Unitarismo, seita protestante que prega um Deus uno, negando a santíssima trindade cristã. Proferido em 1834 por ocasião da morte de um amigo, o pastor exara em sua pregação uma série de preceitos em completa harmonia com o Espiritismo, logicamente escapando a questões como a mediunidade e a reencarnação, mas se achegando destas muito proximamente. Um dos trechos de sua fala alcança justamente a questão aqui abordada:

E quanto é pouco racional imaginar que não haja outros mundos além deste, outro modo de existência mais elevado que o nosso! Quem é aquele que, percorrendo os olhos sobre esta Criação imensa, pode duvidar que não haja seres superiores a nós, ou ver algo despropositado em conceber o Espírito num estado menos circunscrito, menos entravado do que na Terra, em outras palavras, que haja um mundo espiritual?

Em Dissertações e Ensinos Espíritas, em edição de setembro, Allan Kardec dá espaço a mensagem recebida pelo Sr. R..., de Melhouse, cidade na fronteira com a Suíça, cujo trecho a seguir interessa:

Sim, meus amigos; já vivemos corporalmente e viveremos ainda. A felicidade que desfrutamos é apenas relativa; há estados muito superiores àquele em que estamos e aos quais não se chega senão por encarnação sucessivas e progressivas em outros mundos. Não julgueis, portanto, que de todos os globos do Universo seja a Terra o único habitado. Pobre orgulho humano, que pensa ter Deus criado todos os astros apenas para deleitar a sua vista! Sabei, então, que todos os mundos são habitados e, entre eles, se soubésseis a posição que ocupa a Terra, não teríeis razão para vos glorificardes!

Já em janeiro do ano posterior, 1862, Allan Kardec principia com o Ensaio de Interpretação sobre a Doutrina dos Anjos Decaídos, um texto que mais tarde integraria o capítulo XI de A Gênese; neste um fragmento para a questão presente:

Não conhecemos, e provavelmente jamais conheceremos, o ponto de partida da alma humana. Tudo quanto sabemos é que os Espíritos são criados simples e ignorantes; que progridem intelectual e moralmente; que, em virtude do livre-arbítrio, uns tomaram o bom caminho, outros um caminho errado; que, uma vez posto o pé no atoleiro, nele se afundaram cada vez mais; que, depois de uma série ilimitada de existências corporais, realizadas na Terra e em outros mundos, depuram-se e alcançam a perfeição, que os aproxima de Deus. (...) Conforme o ensino dado pelos Espíritos superiores, essas emigrações e imigrações dos Espíritos encarnados na Terra ocorrem de vez em quando, individualmente; porém, em certa épocas, se realizam em massa, em consequência das grandes revoluções que os fazem desaparecer em quantidades consideráveis, sendo substituídos por outros Espíritos que, de alguma sorte, na Terra ou numa parte da Terra, constituem uma nova geração. (...) Em que se tornarão os Espíritos expulsos da Terra? Os próprios Espíritos nos dizem que aqueles irão habitar mundos novos, onde encontrarão seres ainda mais atrasados que os daqui, aos quais estão encarregados de fazer progredir, transmitindo-lhes o produto dos conhecimentos que já adquiriram. O contato do meio bárbaro em que se acham ser-lhes-á uma cruel expiação e uma fonte de incessantes sofrimentos, físicos e morais, dos quais terão  tanto mais consciência quanto mais desenvolvida for a sua inteligência; mas essa expiação será, ao mesmo tempo, uma missão que lhes oferecerá os meios de resgatar o passado, conforme a maneira pela qual a desempenharem. Aí sofrerão uma série de encarnações, durante um período de tempo mais ou menos longo, no fim do qual os que tiverem merecimento serão retirados para mundos melhores, talvez a Terra, que, então, será uma morada de felicidade e de paz, enquanto os da Terra, por sua vez, ascenderão gradualmente até o estado de anjos ou puros Espíritos. (...) Pois bem! Todos esses Espíritos, que tão mal empregaram as suas encarnações, uma vez expulsos da Terra e enviados a mundos inferiores, entre hordas ainda na infância da barbárie, o que serão, senão anjos decaídos, remetidos à expiação? A terra que deixaram não será para eles um paraíso perdido, um comparação ao meio ingrato onde ficarão relegados durante milhares de séculos, até o dia em que tiverem merecido a libertação?

A edição de maio traz a transcrição do discurso de Allan Kardec por ocasião do enterro do Sr. Sanson, um dos membros da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, onde destaca-se um trecho da prece que fez em seguida a este:

Ireis percorrer o espaço e visitar os mundos em completa liberdade, enquanto nos arrastamos penosamente na Terra, retirados pelo nosso corpo material, que se nos assemelha fardo por demais pesado.

Na seção Ensinos e Dissertações Espíritas da edição de julho, encontra-se o seguinte:

Entretanto, tal como é compreendido na Terra, o casamento não é conhecido nos mundos superiores. Nesses lugares de felicidade, de liberdade e de alegria, os laços são de flores e de amor; e não creias que, por isso, sejam menos duráveis. Só o coração fala e guia nessas uniões tão doces. Uniões livres e felizes, casamento de almas perante Deus, eis a lei do amor dos mundos superiores.

Ao que Allan Kardec observa:

(...) é preciso levar em conta que os Espíritos se desmaterializam à medida que se elevam e se depuram. Só nas fileiras inferiores a encarnação é material. Para os Espíritos superiores não há mais encarnação material e, consequentemente, não há procriação, pois está se dá pelo corpo e não pelo Espírito. Uma afeição pura é, pois, o único objetivo da união e, por isto, ao contrário do que ocorre na Terra, não necessita da sanção oficial.

Agosto vem brindar ao leitor com uma comunicação acerca do estado do planeta Vênus; como as demais comunicação sobre os mundos constituintes do sistema solar a que a Terra pertence, o Codificador as toma senão por hipótese - quanto a tais relatos, alguns dos quais foram já evocados por conveniência do mote de artigos anteriores, deixaremos aos estudiosos e interessados a leitura dos mesmos, a fim de não vir transcrever partes inteiras da Revista Espírita sem o que contribuiria para tomar espaço desnecessariamente. No mesmo espírito, não comporemos laudas a tratar das impressões que Allan Kardec teceu no ano seguinte quanto a obra Pluralidade dos Mundos Habitados, de autoria do astrônomo Camille Flammarion, menos o faremos quando abordou o que se poderia chamar de edição definitiva desta obra, que este veio publicar no ano seguinte, e a qual o Codificador trata, outrossim, na edição de setembro de 1864. Exorta-se o impulso do leitor a que vá por seus próprios esforços verificar ambos os opúsculos, e os pareceres kardecianos aí.

A edição de junho de 1863, em artigo intitulado Princípio da Não-Retrogradação dos Espíritos, um trecho em particular faz repisar o já conhecido:

Pode Deus, pois, ao cabo de um certo tempo de prova, retirar de um mundo onde não terão progredido moralmente aqueles que o tiverem desconhecido, que se houverem rebelado contra as suas leis, para mandar que expiem os seus erros e o seu endurecimento num mundo inferior, entre seres ainda menos adiantados. Aí serão o que antes eram, moral e intelectualmente, mas numa condição infinitamente mais penosa, pela própria natureza do globo e, sobretudo, pelo meio no qual se acharão. Numa palavra, estarão na posição de um homem civilizado, forçado a viver entre os selvagens, ou de um homem muito distinto, condenado à sociedade dos degredados.

Da Espanha, em edição de setembro de 1864 vem uma comunicação de interesse, onde um Espírito é instado a tratar dos mundos superiores a Terra; ao que destacamos os seguintes pontos:

Ali os seres são menos materiais que em vossa Terra, e não se acham sujeitos a todas as necessidades que vos pesam; formam a transição entre os corpóreos e os incorpóreos. Lá não há barreiras separando os povos, nem guerras; todos vivem em paz, praticando entre si a caridade e a verdadeira fraternidade; (...) Aquele que na Terra vos parece perfeito seria considerado como um revoltado e um criminoso no mundo de que vos falo. Vossos grandes sábios ali seriam os últimos ignorantes. (...) Não tendo que prover às necessidades do corpo acodem às do Espírito; compreendendo cada um por que foi criado, estão positivamente seguros de seu futuro e trabalham sem trégua o seu próprio melhoramento e a purificação de sua alma. Ali a morte é considerada um benefício. O dia em que a alma deixa o seu invólucro é um dia feliz. Sabe-se aonde se vai; passa-se primeiro, para ir mais longe esperar os pais, os amigos e os Espíritos simpáticos, deixando pra trás.

Na edição de março de 1865, Allan Kardec faz publicar as comunicações da Viúva Foulon, cujo caso consta também de O Céu e o Inferno - não retirando ao leitor o dever de instruir-se pelos próprios esforços, e vir apreciar a citada obra como sinal de responsabilidade para com o próprio conhecimento, uma só observação do mestre lionês merece registrar:

(...) este exemplo mostra a possibilidade de não mais se encarnar na Terra e passar daqui a um mundo superior, sem ser por isto separado dos seres afeiçoados que aqui deixamos. Aqueles, pois, que temem a reencarnação, por causa das misérias da vida podem destas se libertar, fazendo o que é preciso, isto é, trabalhando pelo seu melhoramento. Quem não quiser vegetar nas classes inferiores, deve instruir-se e trabalhar para subir de grau.

Em artigo da sessão Estudos Morais, da edição de julho, sob o título A Comuna de Koenigsfeld, Mundo Futuro em Miniatura, o Codificador trata de uma nota emitida pela imprensa acerca da diminuta cidade alemã de Königsfeld im Schwarzwald, que àquele tempo contava cerca de 400 habitantes (hoje mais de 6000) e que, desde sua fundação em 1807 não registrara qualquer espécie de delito ou crime, processos ou a presença de mendigos. Uma comunicação espontânea segue a este ao que ele vem observar após, em dado trecho:

Tudo está submetido à lei do progresso; os mundos também progridem, física e moralmente; mas se a transformação da Humanidade deve esperar o resultado da melhora individual, se nenhuma causa vier acelerar essa transformação, quantos séculos, quantos milhares de anos não serão ainda precisos? Tendo a Terra chegado a uma de suas fases progressivas basta não mais permitir aos Espíritos atrasados de aqui reencarnarem, de modo que, à medida que se forem extinguindo, Espíritos mais adiantados venham tomar o lugar dos que partem, para que em uma ou duas gerações o caráter geral da Humanidade seja mudado.

Em Notas Bibliográficas, no mês de agosto, Allan Kardec chama a atenção para curiosa obra que veio a luz originalmente em 1788, de autoria de Louis-Félix de Wimpfen, general francês morto em 1793 - com o título de O Manual de Xefólius, este livro tem seu conteúdo decalcado no Espiritismo. Um fragmento interessa para o momento:

Em cada mundo que percorre, a alma adquire novos sentidos morais, que lhe permitem conhecer coisas de que não fazia a mínima ideia.

Na edição de março do ano seguinte, 1866, em Introdução ao Estudos dos Fluidos Espirituais, no item IV, Allan Kardec registra:

(...) ensina-nos (o Espiritismo) que as almas passam alternadamente do estado de encarnação ao de erraticidade; que neste último estado elas constituem a população invisível do globo, ao qual ficam ligadas até que tenham adquirido o desenvolvimento intelectual e moral que comporta a natureza deste globo, depois do que o deixam, passando a um mundo mais adiantado.

Em junho, a Revista Espírita traz uma das comunicações do Espírito identificado por Gui..., que segundo o Codificador fora economista em vida, e ainda que homem de reconhecidos intelecto e moral, tinha no Espiritismo uma fonte de deboche. Constatado seu erro após o decesso, veio dar informes de sua condição a fim de convencer amigos e familiares de que a realidade constitui-se diversa da que tratara com zombarias em vida. Neófito acerca da erraticidade, tece considerações equivocadas, ao que o mestre lionês vem observar:

Sem dúvida, no grande movimento regenerador que se opera, uma parte dessa geração deixará a Terra por mundos mais adiantados; mas, como a Terra regenerada será, ela própria, mais adiantada do que é, muitos acharão uma recompensa aqui reencarnando. Quanto aos endurecidos, que aí são uma chaga, como estariam deslocados e constituiriam um entrave ao progresso, por perpetuarem o mal, terão de esperar em mundos mais atrasados que a luz se faça para eles. É o que resulta da generalidade das instruções dadas a respeito pelos Espíritos.

Faz publicar em outubro de 1866 um texto intitulado Os Tempos São Chegados, opúsculo que viria a constar posteriormente de A Gênese, e cujo trecho abaixo Allan Kardec registra:

Que de mais justo e mais consolador que a ideia dos mesmos seres progredindo sem cessar, primeiro através das gerações de um mesmo mundo e, depois, de mundo em mundo, até a perfeição, sem solução de continuidade! Assim, todas as ações tê um objetivo, porquanto, trabalhando para todos, trabalha-se para si, e reciprocamente, de tal sorte que o progresso individual e o progresso geral jamais são estéreis.

Em Dissertações Espíritas da edição de maio de 1867, Allan Kardec transcreve pergunta e resposta de um Espírito acerca do gênio, ou antes da atribuição dada aos homens de luminoso intelecto por este vocábulo laudatório:

A outra espécie de gênio é o Espírito que vem dos mundos felizes e adiantados, onde a aquisição é universal sobre todos os pontos; onde todas as faculdades da alma chegaram a um grau iminente, desconhecido na Terra. Estas espécies de gênios se distinguem dos primeiros por uma aptidão excepcional para todos os talentos, para todos os estudos. Concebem todas as coisas por uma intuição segura, e que confunde a ciência ensinada pelos mais sábios. Distinguem-se em bondade, em grandeza de alma, em verdadeira nobreza, em obras excelentes. São faróis, iniciadores, exemplos. São homens de outras terras, vindos para fazer resplandecer a luz do alto num mundo obscuro, assim como se enviam entre os bárbaros, para os instruir, alguns sábios de uma capital civilizada. Tais foram entre vós os homens que, em diversas épocas, fizeram avançar a Humanidade, os sábios que alargaram os limites dos conhecimentos e dissiparam as trevas da ignorância. Vieram e pressentiram o destino terrestre, por mais longe que estivessem da realização deste destino. Todos lançaram os fundamentos de alguma ciência, ou foram o seu ponto culminante.

Das crônicas biográficas da vida de São Francisco Xavier, Allan Kardec extrai, para a edição de agosto de 1868 uma curiosa passagem em que o santo se vê diante de um bonzo japonês, que afirma com ele haver tido contato em vidas anteriores. O Codificador a esse respeito conclui:

(...) com efeito, os Espíritos nos dizem que nos mundos superiores à Terra, onde o corpo é menos material e a alma encontra-se num estado normal de desprendimento, a lembrança do passado é uma faculdade comum a todos; aí a gente se lembra das existências anteriores, como nos lembramos dos primeiros anos de nossa infância.

Por ocasião de um crime envolvendo um herbolário de nome Joye, que se afirmara consultante dos Espíritos, a que os altos do processo o registraram como espírita, Allan Kardec a certa altura de sua defesa doutrinária contra o senso comum em vista dos absurdos presentes aí, afirma na edição de janeiro de 1869:

(...) que os Espíritos são as almas dos homens que viveram na Terra ou em outros mundos, nossos pais, nossos amigos, nossos contemporâneos ou nossos antepassados;

Em abril, a Revista Espírita reproduz integralmente a declaração de princípios aprovada na assembleia de delegados espíritas dos Estados Unidos da América, ao que Allan Kardec nada acresce, aliás faz breves comentários a cada um dos itens aí enumerados frente aos fundamentos presentes em O Livro dos Espíritos, e cujo trecho seguinte nota:

À medida que os Espíritos avançam em perfeição, habitam mundos cada vez mais adiantados fisicamente e moralmente. Por certo é o que entendia Jesus por estas palavras: 'Na cada de meu Pai há muitas moradas.'” - ao que adiciona ainda abaixo, tratando do modo de ver as escolas americana e europeia do Espiritismo (espiritualismo) - “Ambos reconhecem o progresso indefinido da alma como a lei essencial do futuro; ambos admitem a pluralidade das existências sucessivas em mundos cada vez mais avançados. A única diferença consiste em que o Espiritismo europeu admite essa pluralidade de existências na Terra, até que o Espírito aqui tenha atingido o grau de adiantamento intelectual e moral que comporta este globo, após o que o deixa para outros mundos, onde adquire novas qualidades e novos conhecimentos.

Das edições da Revista Espírita editadas por Allan Kardec, que vai de sua fundação em 1858 até o falecimento deste em 1869, o leitor poderá colher na paciência da pesquisa, por certo, uma série mais de partes, trechos, fragmentos e frações de seu conteúdo referindo a migração dos Espíritos, e as condições dos planetas de onde vieram alguns, e para onde vão outros. Ainda que ensejasse este presente artigo vir aí dar voz a estes, ampliando a perspectiva nossa, e do leitor, acerca dos destinos possíveis do Espírito, em nenhum momento sua proposta fora criar um tratado de caráter definitivo acerca da questão. Em realidade é antes um diminuto apanhado, a dar a ideia do riquíssimo e vasto conjunto de textos componentes da Revista Espírita, vindo arrematar esta temática tão adulterada da erraticidade, fundamento do Espiritismo que o presente blog contém já portentoso material que o abordou e desenvolveu sem esgotá-lo. Deixamos aqui o convite a leitura destes, sem furtarmo-nos a exortar o estudo sério, contínuo e metódico das Obras Básicas.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Breve Palavra Acerca da Pandemia de Nossos Dias


Os artigos destinados ao presente blog têm, e sempre tiveram o feitio de tratar de questões pouco ou nada conhecidas acerca da Doutrina dos Espíritos, e de outras relativas a sua prática em território nacional; subtraindo-se, porém, aos temas atuais, da ordem do dia. Mas se exceções necessitem vir ocorrer para atestar a norma, não há assunto mais candente que não a pandemia que atualmente vem assolar o mundo. A humanidade, uma vez mais dobra-se perante a doença, e a historiografia coube o registro de tais períodos negros - ao Espiritismo, este é chamado a manifestar-se. Infelizmente, toda sorte de profetas, visionários e videntes, que sob a égide da Doutrina dos Espíritos justificam suas ações, explanam aos ventos bobagens sem cabimento, apontando desde a famigerada data limite imposta por Chico Xavier, passando por interpretações várias das supostas profecias do médico francês Nostradamus. Allan Kardec foi menos presciente, mais prudente e historiograficamente bem embasado ao compor laudas acerca de eventos de tal natureza, que periodicamente se abatem sobre o homem - guerras, catástrofes, flagelos, cataclismos, pragas, etc. Em A Gênese, em seu capítulo XI Gênese Espiritual, o item Emigrações e Imigrações dos Espíritos, traz oportunos trechos que interessa por olhos:

Os flagelos destruidores e os cataclismos devem, portanto, considerar-se como ocasiões de chegadas e partidas coletivas, meios providenciais de renovação da população corporal do globo, de ela se retemperar pela introdução de novos elementos espirituais mais depurados. (...) As renovações rápidas, quase instantâneas, que se produzem no elemento espiritual da população, por efeitos dos flagelos destruidores, apressam o progresso social; sem as emigrações e imigrações que de tempos a tempos lhe vêm dar violento impulso, só com extrema lentidão esse progresso se realizaria. É de notar-se que todas as grandes calamidades que dizimam as populações são sempre seguidas de uma era de progresso de ordem física, intelectual, ou moral e, por conseguinte, no estado social das nações que as experimentam. É que elas têm por fim operar uma remodelação na população espiritual, que é a população normal e ativo do globo.

Não poucos hão de ler em tais linhas a revolução dos tempos, a renovação definitiva, a extrusão do mal do seio da humanidade, o princípio da edificação do idílio terreal - a lógica irrompe as mais perversas utopias dos otimistas ao prescrever que, não havendo baixio mais profundo que o próprio limite imposto pela superfície da Terra, sendo permitido apenas ascender após tal negra temporada dos tempos atuais, a mudança longe está de corresponder ao rompimento de paradigmas que muitas imaginações sensíveis almejam. E a história humana o comprova. Um exemplo bastante ilustrativo é a Peste Negra, ocorrida no século XIV que serviu de estopim para a Crise da Baixa Idade Média, um conjunto de acontecimentos que decretaria o fim do medievo e o início da Renascença, entre estes as revoltas camponesas e a Guerra dos Cem Anos. Ou seja, a pandemia ceifou a vida de dois terços da população europeia da época, algo entre 75 e 200 milhões de indivíduos, e após foi deflagrada uma guerra. É preciso apaziguar os ânimos mais fantasiosos, lembrando-lhes da espécie de Espíritos que se encarnam na Terra - e não é o que se vê cotidianamente, diante de tal cenário de mortes que devasta a todos, de conjuntura econômica instável, de perspectivas, planos e projetos paralisados, em ponto de espera? Que aspectos do homem ressaltam ante o pior? Que fazem os donos do poder temporal ante este quadro? Como se manifestam eles, pondo-se aos extremos do embate partidário mais torpe, ora decretando a falência da vida, ora relativizando a letalidade da doença? E não é tudo uma grande cortina de fumaça que os possibilita, envoltos em sombras, concentrarem mais poderes e riquezas em si mesmos?

Este presente apontamento, muito antes que um artigo ou ensaio, destina-se em grande parte a trazer não apenas o alento comum aos ensinamentos do Espiritismo, mas principalmente exortar a reflexão em dias tão incertos. Os dados, as informações e o conhecimento são hoje amplamente disponíveis; os saberes acerca das pragas que se abateram sobre o homem, suas consequências mais imediatas e aquelas observadas no decurso dos séculos estão igualmente à vista dos interessados, para traçar as conexões que levem dos efeitos até suas causas, de conta que listar fatos históricos resultaria em tomar um espaço acerca de uma questão que, a bem da verdade, já enfastiou a generalidade. Num verdadeiro bombardeio midiático, o homem comum absorve informes que evocam a atmosfera onírica de um pesadelo apocalíptico, agravado em parte pelo isolamento imposto. A arte e cultura nunca se mostraram tão necessárias, e as relações conjugais e familiares, certamente, passam por momentos de reavaliação e apuração - esta geração verá as consequências da pandemia? Algumas se sentem desde já na própria pele, outras serão sentidas nas eras vindouras, onde os mesmos que hoje estão encarnados poderão também estar, se não partirem para outros mundos, talvez melhores ou piores que a Terra, isto dependerá do progresso íntimo de cada um. Mas o Espiritismo vem dar, por si e neste instante pela praga, a oportunidade de rememorar a imortalidade do Espírito e a transitoriedade da vida física, tão fugaz, frágil e mortal. Evoquemos os dizeres de Allan Kardec em complemento a questão 487 de O Livro dos Espíritos para encerrar, ante a possibilidade de renovar as esperanças no futuro, a fé no futuro, e abandonar o medo. Preciso é confiar na vida.

Sabendo ser transitória a vida corporal e que as tribulações que lhe são inerentes constituem meios de alcançarmos melhor estado, os Espíritos mais se afligem pelos nossos males devidos a causas de ordem moral, do que pelos nossos sofrimentos físicos, todos passageiros. Pouco se incomodam com as desgraças que apenas atingem as nossas ideias mundanas, tal qual fazemos com as mágoas pueris de crianças. Vendo nas amarguras da vida um meio de nos adiantarmos, os Espíritos as consideram como a crise ocasional de que resultará a salvação do doente.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Edgard Armond à Luz dos Fatos


1. Ocultismo, esoterismo e teosofia
Passar ao escrutínio da razão autores que falaram, conferenciaram, escreveram e divulgaram suas próprias ideias como se espíritas fossem não é tarefa fácil, tampouco recompensadora, ao menos do ponto de vista espiritual - os ataques fluídicos são exponencialmente maiores, quão mais divulgados forem os resultados deste processo. Ainda que os benfeitores espirituais colaborem, neste mundo materialista os seus esforços parecem insípidos, ainda que não sejam; mas, se os efeitos deletérios do pensamento daqueles que tiveram sua fé sacudida em decorrência de um estudo aprofundado, cotejando seus autores de culto as evidências da realidade, ainda mais violentos lhes são as agonias intestinas ocasionadas pela acareação com as Obras Básicas - pois, todo aquele que se considera espírita, crê ter um dilatado conhecimento dos escritos de Allan Kardec. Quando não o tem, dizem-no ultrapassado, obsoleto, carente de revisão. Basicamente, o argumento esclerosado e loroteiro de sempre (ver artigo aqui publicado em 10 de agosto de 2019).

Todavia, ao levar a efeito tais exames e investigações, nenhum estudioso está em busca de qualquer espécie de recompensa, ou assim se cogita. Que todos se entendessem acerca do Espiritismo numa simples conversa já lhe seria um avanço positivamente promissor. Menos se pode crer que desejem vir denegrir a dignidade humana de tais autores, muitos dos quais apenas desorientados e instruídos de modo equivocado acerca do Espiritismo. Mas daqueles que fizeram do Espiritismo sua profissão, é ao menos de bom alvitre desconfiar de suas intenções, de suas palavras, de seus artigos e de seus livros. Julgam-se os Espíritos, como os homens, pela sua linguagem. Tem-se o presente blog exposto esforços em artigos referentes a erraticidade, princípio do Espiritismo, e cujo qual fartam teses, conceitos, doutrinas e ideias anômalas, que qualquer estudioso da Doutrina não deve deixar sem análises e conclusões. Mas não só. Concepções outras, trazidas de culturas, religiões e doutrinas estranhas aos postulados espíritas vicejam entre as gentes, a guisa de Espiritismo. De modo insidioso, por meio de diversos divulgadores e pretensos estudiosos, ideias bizarras ganham corpo e posteridade, estando presentes no ilegítimo movimento espírita brasileiro há décadas.

Um dos sistemas de ideias que há mais tempo se insinuam junto ao Espiritismo é o ocultismo; este é tido como uma disciplina das cousas misteriosas, sobrenaturais e ocultas, que não são explicáveis por meio de teses que contemplem leis naturais - não será preciso notar o quão antagônico é frente a Doutrina dos Espíritos. O ocultismo divide a natureza, ou antes, os saberes acerca da natureza em exotéricos e esotéricos; o primeiro refere-se a conhecimentos de caráter público, disponível a todos irrestritamente, enquanto a segunda trata de conhecimentos ocultos, próprios a círculos estritos de iniciados. Três segmentos, ou categorias subdividem o campo de estudo e atuação do ocultismo - o ocultismo filosófico, que aborda a moral, a metafísica e a teologia; o ocultismo prático, que trata do magnetismo, hipnotismo, alquimia, astrologia, cartomancia, quiromancia, grafologia, frenologia, bibliomancia, hialoscopia, autoscopia e magia; e, por fim, o ocultismo esotérico, que estuda os sistemas de pensamento dos filósofos antigos, em especial aqueles cujas ideias tem feições secretas. Determinadas doutrinas, culturas ou religiões preconizam interpretações de seus postulados ao espectro ocultista, como por exemplo o hinduísmo e demais religiões e seitas indianas, o budismo zen, o islamismo, o catolicismo, a maçonaria, a rosacruz, a kabala hebraica, a eubiose e a teosofia. A adesão ao pensamento ocultista traduz-se no acolhimento de tradições, ritos e rituais, símbolos, gestos, grandes e pequenos mistérios, misticismos, magias, orações e rezas. No entanto, se este amontoado de conceitos e práticas divinatórias que nada tem que ver com o Espiritismo, a este infiltrou-se por conta de certos autores, - dentre os quais Edgard Armond, que lhe dedicou especial expressão, ao qual abordaremos seguintemente - alguma influência exerceram os escritos de Allan Kardec sobre os autores ocultistas?

Stanislas de Guaita, obscura figura do século XIX, hoje um completo desconhecido a exceção para os iniciados do ocultismo, fora um dos expoentes máximos de tal corrente de pensamento, e em sua obra maior, No Umbral do Mistério, registra-se o seguinte:

O Espiritismo é algo que, por si só, constitui uma aberração e uma loucura. (...) Há no homem, segundo a Magia, três elementos radicais: a Alma (elemento espiritual), o Corpo (elemento material) e o Perispírito ou Mediador (elemento fluídico). (…) A alma espiritual seria , aliás, inábil para se fazer obedecer pelo corpo material sem a interferência de um Mediador Plástico procedente de ambos (…) Ora, uma vez que este Mediador Plástico, exercido convencionalmente, segundo sua própria vontade, pode coagular ou dissolver, projetar ao longe ou atrair uma porção do Fluido Universal, ele possibilita ao adepto influenciar toda a massa de Luz Astral, nela criando correntes e produzindo, enfim, ainda que à distância, fenômenos surpreendentes que a ignorância comum qualifica como milagres ou perversas artimanhas do diabo, quando não acha ainda mais simples negá-los obstinadamente.

Tal interessante passagem, que expõe de modo relativamente preciso o perispírito, propriedades e interação deste com o fluido cósmico ambiente, revela um ponto de contato insuspeito com a Doutrina dos Espíritos, embora o autor impute tais formulações a magia, seja lá em que alfarrábios ancestrais tenha compulsado ele para os adquirir. Stanislas de Guaita, no entanto, é apenas um dos indivíduos sem fim que desde o medievo ao século XVIII, passando pelas escolas gnósticas do Renascimento, fomentaram o ocultismo e demais doutrinas esotéricas - ao seu tempo, coetâneos de Allan Kardec, certos nomes e personagens fizeram a história desta vertente de pensamento, instando fabulações, lendas e mitos na mentalidade popular; nomes como Gérard Encausse, Martinez de Pasqually, Louis-Claude de Saint-Martin, Jean Baptiste Willermoz, Eliphas Levi, Conde de Cagliostro, Conde de Saint Germain, entre muitos outros evocavam respeito e reservas em igual medida. Acaso se possa apontar um ponto culminante na efervescência causada pela presença e inserção do pensamento ocultista e esotérico no século XIX, este seria a fundação da Sociedade Teosófica Internacional, fato que se deu em Nova York, por iniciativa de Helena Blavatsky e Henry S. Olcott, em 1875.

Helena Petrovna Blavatsky nasceu na Ucrânia em 1831 e, embora haja tido uma infância enfermiça, fora uma criança manifestamente rebelde, obstinada e imaginativa. Com 17 anos se casa, mas foge do marido em plena lua-de-mel, sem haver consumado o matrimônio; seu pai a ampara e facilita sua fuga, permitindo-a seguir a moda dos filhos das elites europeias de antanho, peregrinando por países considerados exóticos, colhendo experiências as mais fantásticas e, por certo exageradas, dado o seu pendor pessoal para a mitificação. Mulher independente, culta e de caráter firme, Helena se dizia sensitiva, iniciando-se no esoterismo por intermédio de um mestre muçulmano que conhecera no Egito. A Sociedade Teosófica Internacional fundada por ela, teve sua sede transferida para a Índia, primeiramente em Mumbai, e depois para Adyar, ao sul de Madras, onde se fixaria em definitivo. Suas obras interligam o conhecimento religioso mistico asiático ao gnosticismo e outras correntes ocultistas ocidentais; entre seus escritos destacam-se A Doutrina Secreta, Ísis sem Véu e A Voz do Silêncio. Entre personagens de destaque que foram membros da Sociedade Teosófica encontra-se Charles Leadbeater, Alfred Sinnett, George Mead, Annie Besant, Jiddu Krishnamurti e Curuppumullage Jinarajadasa.

2. Comandante
A biografia de Edgard Armond registra seu nascimento à 14 de junho de 1894 na cidade paulista de Guaratinguetá, localizada no Vale do Paraíba. Aos 21 anos, ingressou nas forças públicas do Estado de São Paulo, onde viria a receber o título de Comandante, patente pela qual ficaria conhecido junto ao movimento espírita nacional; em 1938 deixa a vida militar em decorrência de haver fraturado os dois joelhos em um acidente automobilístico. A este tempo passa a considerar-se espírita e dedica-se, então a tenaz atuação, tendo participado da fundação da FEESP (Federação Espírita do Estado de São Paulo), e de seu órgão de imprensa, o periódico O Semeador, além de fundar a USE (União das Sociedades Espíritas). Na década de 1970, disside da FEESP, ao lado dos dirigentes de vários centros espíritas, fundando a Aliança Espírita Evangélica (AEE), retomando a Escola de Aprendizes do Evangelho e a Fraternidade dos Discípulos de Jesus, nos moldes em que existiram na FEESP na década de 1950, implementando aí a Reforma Íntima como meio de aperfeiçoamento moral para a vivência do cristianismo. É autor de mais de cinquenta livros, mas reconhecido principalmente por Os Exilados de Capela, O Redentor, e Passes e Radiações. Faleceu em 1982, aos 88 anos. Interessa, porém, apontar que além de haver sido maçom, ao longo da década de 1920, Armond travou contato com líderes esotéricos e ocultistas, como registrado nestas duas passagens facilmente encontráveis em sites a respeito do autor - “(...) fez contatos pessoais com líderes esotéricos, ocultistas e espiritualistas, entre outros Krishanmurti, Krumm-Heller, Jinarajadasa (...)” - “(...) manteve contato com líderes esotéricos, ocultistas e espiritualistas, entre os quais Krishanmurti, Krumm-Heller, Jinarajadasa (...)

Quem foram tais três figuras? Henrich Arnold Krumm-Heller nasceu na Alemanha em 1879, tendo migrado ainda jovem para o México, onde tornou-se militar, empreendendo missões no Chile, Peru e Amazônia. Praticou curandeirismo, adotando o pseudônimo de Mestre Huiracocha. Em 1895 estuda metodicamente o ocultismo e o gnosticismo, tomando contato com as obras de Madame Blavatsky, Louis Claude de Saint-Martin, Eliphas Levi e Gérard Encausse, em cujos cursos vem se inscrever em 1906, em Paris; aí passa a integrar a maçonaria e a estudar medicina. Por toda a América Latina funda lojas Rosacrucianas, inclusive no Brasil. Jiddu Krishnamurti, nascido na Índia em 1895, fora adotado na infância por Annie Besant, então presidente da Sociedade Teosófica. Ainda aí fora declarado Mestre do Mundo, cumprindo uma profecia existente no seio dos teósofos; com o fito de preparar o planeta para sua chegada, fundou-se a Ordem da Estrela do Oriente, e o pequeno indiano fora empossado seu líder. Décadas após, ele dissolve tal agremiação renunciando o papel que lhe fora imputado, restituindo os bens, as propriedades e o dinheiro que lhe haviam sido doados para desempenhar tal tarefa. Entretanto, pelos quase sessenta anos posteriores, peregrinou pelo mundo divulgando suas ideias acerca do autoconhecimento para uma mudança radical da humanidade, de certo modo desempenhando uma tarefa próxima a qual lhe houveram sujeitado. Curuppumullage Jinarajadasa, nasceu em 1875 no Sri-Lanka; foi aluno de Charles Leadbeater, que o tutelou quando retornou a Inglaterra, o que permitiu ao pequeno cingalês uma formação privilegiada; sua biografia registra um poliglota que além de dominar seu idioma de nascença, era proficiente em inglês, italiano, francês, havendo lecionado em espanhol e português quando esteve na América do Sul, ocasião em que teria fundado filiais da Sociedade Teosófica. Deixara mais de cinquenta livros e cerca de mil e seiscentos artigos; fora maçom e comaçom, além de haver sido o quarto presidente da Sociedade Teosófica.

Assinalado que tal tríade de ocultistas haja, em dado momento de suas vidas, visitado a América do Sul, não se duvida que, de fato, possam ter travado relação com o Comandante Edgard Armond, incidindo estes, decisivamente sobre seu pensamento. Ainda que tais contatos não hajam ocorrido factualmente, senão por meio de suas obras, atesta-se o influxo com certa facilidade, dada a fartura de dados sobejantes nos livros que compôs. Isto posto, compulsaremos alguns dentre estes, os mais afamados e significativos a fim de verificar a tese aqui defendida. Mas o volume pelo qual o autor é frequentemente rememorado, Os Exilados de Capela, deixaremos para tecer laudas com o ensejo propício e a gana adequada ao montante de labor exigido, bem como reservaremos a futuro artigo tratar da Reforma Íntima, uma invenção armondiana que, infelizmente, disseminou-se ao ponto de tornar-se o nirvana almejado a todo espírita; ninguém parece ter notado que uma reforma faz-se em obra acabada, ou próxima a isto - o Espírito humano encarnado na Terra está bastante distante de encontrar o potencial máximo manifesto por sua natureza, com o agravante de se especular para a tênue possibilidade de, um dia, encontrar termo o progresso espiritual. Mas aqui, já é questão para o futuro - por hora basta examinar alguns pontos aberrantes de suas mais célebres obras, e quão foram incisivas as ideias esotéricas e teosóficas sobre seu pensamento.

3. Passes e Radiações
Lançado em meados do século passado, foi amplamente adotado, em grande parte pela escassez de obras que tratavam da fluidoterapia - infelizmente impingiu aqueles que seguiram-lhe as lições o ridículo dos passes padronizados, um misto de técnicas outrora utilizadas pelos magnetizadores e mesmerizadores que precederam ao Espiritismo, associada a teoria hindú dos chacras. O desassossego advindo da observância ao gestual, cores e tempo, aliado ao suposto conhecimento de anatomia e fisiologia necessários a prática de tal metodologia obstaram que se conhecesse a teoria espírita acerca dos fluidos, e sua aplicação por meio dos passes. Vejamos alguns trechos significativos para o artigo presente, acompanhados de oportunos e necessários comentários:

Cada homem, cada ser vivo é um centro atrativo dessa força (magnetismo animal), uma usina capaz de proceder à sua captação, armazenamento e distribuição aos doentes, bastando para isso o desejo sincero e humilde de exercer esse dignificante sacerdócio de caridade evangélica, segundo os ensinamentos d'Aquele que por todos se sacrificou, para salvá-los.” - Introdução a 1º edição da Passes e Radiações (1950) _ bastasse apenas o desejo e todo homem bem intencionado curaria qual Jesus em sua melhor forma, decretando a falência dos sistemas de saúde do mundo, e o fim das profissões médicas e terapêuticas; é preciso mais para curar de modo proficiente; claro, exclusos aqui os médiuns curadores, os quais são objeto de estudo em O Livro dos Médiuns. No mais, o que se destaca é a sentença segundo a qual Jesus sacrificou-se para salvar a humanidade, demonstrando que as correntes de pensamento ocultistas as quais se expôs Armond possuem bases bem estabelecidas no cristianismo místico do medievo, em nada aparentado ao Espiritismo. Porém, que se note, a Doutrina dos Espíritos não concebe que Jesus haja se sacrificado para salvar quem quer que seja, seja lá de que perigos, questão a que mais abaixo será tangida em profundidade.

“(o corpo físico) É formado de matéria densa (energia condensada a vários graus), apresentando uma forma tangível, modelada sobre um arcabouço resistente e flexível rodeado, no etéreo, de uma aura característica, variável para cada indivíduo, visível no plano hiperfísico, e comumente limitada a uns poucos centímetros a partir da superfície do corpo.” - Primeira Parte Teórica 1 O Santuário do Espírito Encarnado _  toda a influência teosófica se registra nestas poucas linhas. O que ele aponta no trecho refere-se a atmosfera fluídica individual, que Allan Kardec apontou como a irradiação do perispírito? O arcabouço sobre o qual o corpo físico é modelado é o perispírito, este mesmo que no etéreo é rodeado por uma aura? E o que é o etéreo e o plano hiperfísico? O linguajar empregado é grotesco, maculando a feliz simplicidade do Espiritismo, levando confusão ao leitor. Mas, o que mais fere aos olhos do estudioso é a afirmação de a matéria constitutiva do corpo físico ser composta a partir de energia condensada - isto assim, irresponsavelmente enunciado, é contrário ao Espiritismo, pois não atesta o Elemento Material como princípio doutrinário; e repisa o erro de sempre, demonstrando não saber, também Armond, a diferença entre energia e matéria, de um ponto de vista exclusivamente espírita. Acerca do que a Física trata, buscaremos em futuro artigo abordar dada a necessidade da temática e da enorme confusão existente.

“(o Sistema Respiratório) Absorve da atmosfera não somente o oxigênio necessário, como também o fluido vital, que fornece ao organismo a indispensável energia.” - Primeira Parte Teórica 1 O Santuário do Espírito Encarnado _  afirmar que a absorção de fluido vital se dá por intermédio de um dos sistemas do corpo humano seria considerar a este tão físico quanto os gases componentes da atmosfera, o que não pode ser. O fluido vital não sendo mais que uma transformação do perispírito, e este do fluido cósmico universal, com ele interage por toda a extensão do ser, não mais pelos pés que através da cabeça. Nota-se contudo, no seguimento deste trecho, que o Comandante possui uma visão particular da constituição do perispírito, o que justifica sua asserção.

As glândulas hipófise e pineal são pontos sensíveis das intervenções espirituais na vida anímica do homem encarnado, sobretudo no desenvolvimento de suas faculdades psíquicas. A glândula pineal possui uma aura, uma concreção dourada em torno, que apresenta os setes matizes das cores básicas. Esta aura não existe na criança antes dos sete anos (normalmente), nem nos idosos com arteriosclerose intensa e nos deficientes mentais, o que prova que essa glândula esta ligada à vida mental dos homens. É o órgão principal da espiritualidade e da consciência das coisas tanto externas quanto internas.” - Primeira Parte Teórica 1 O Santuário do Espírito Encarnado _ e se perpetua o mito, porfiando a mediunidade incompreendida como o processo fisiológico que é, e não como um dom radicado num órgão; ou não será exatamente isto que afirma Armond aqui? Tal tese tem suas origens nas culturas do Oriente, ao gosto do autor, em que o terceiro olho, ou a terceira visão, identificada como a visão espiritual é imageticamente representada por um sacerdote com um olho do centro da fronte. Para o hinduísmo, uma das fontes da Teosofia, o terceiro olho é um Ajna, ou chacra localizado a altura da testa, estando ligado a intuição e a percepções sutis da consciência. Helena Blavatsky em seu livro A Doutrina Secreta, por exemplo, registra acerca da glândula pineal o seguinte: “Também chamada de Terceiro Olho. (...) É um órgão misterioso que, em outros tempos, desempenhou papel importantíssimo na economia humana. Durante a terceira Raça e no início da quarta, existiu o Terceiro Olho, órgão principal da espiritualidade no cérebro humano, local de gênio, o 'Sésamo' mágico, que, pronunciado pela mente purificada do místico, abre todas as vias da verdade para aquele que sabe usá-lo. Um Kalpa1 depois, devido ao gradual desaparecimento da espiritualidade e do aumento da materialidade humanas, substituída a natureza espiritual pela física, o Terceiro Olho foi se 'petrificando', atrofiando-se gradualmente, começou a perder suas faculdades e a visão espiritual tornou-se obscurecida. O 'Olho Divino' já não existe; está morto, deixou de funcionar. Porém, deixou atrás de si um testemunho de sua existência e este testemunho é a glândula pineal que, com os novos progressos da evolução, voltará a entrar em plena atividade.” - parece familiar quanto a tudo que o estudioso do Espiritismo veio encontrar acerca deste organelo fincado no cérebro? Pois esta similaridade não é uma coincidência fortuita. Apenas cinco anos antes, o Espírito pseudo-sábio André Luiz viera trazer Missionários da Luz ao mundo, tratando neste da glândula pineal por tais mesmos paradigmas; e pouco mais de cinco anos após Passes e Radiações, Lobsang Rampa encanta o mundo ao lançar A Terceira Visão - ao que parece, esta temática estava na moda em meados do século passado. Mas, que não se engane o aprendiz, pois a procedência é a mesma para todos, a ancestral cultura oriental dos vedas do hinduísmo. Ou seja, nada tem que ver com o Espiritismo.

O corpo físico não gera o fluido vital ou a força promotora da atividade orgânica, entretanto recebe-o dos centros de força do perispírito e absorve-o do meio em que vive por intermédio da pele, dos alimentos e da respiração. Em todos os casos o sistema nervoso é o veículo de recebimento dessas forças e, além de armazená-las em órgãos apropriados (plexos e centros de força), finalmente as distribui oportunamente a todos os órgãos internos, (...)” - Primeira Parte Teórica 1 O Santuário do Espírito Encarnado _ surge então, pela primeira vez a menção a plexos e centros de força. Novamente e uma vez mais, é atribuir uma materialidade ao perispírito que este não possui, proceder que fora já apontado de outros autores, especificamente do Espírito André Luiz que, outrossim, impôs um paradigma materialista ao corpo fluídico, conferindo a este um aspecto orgânico do qual é destituído. Plexos são entrelaçamentos de nervos do sistema nervoso periférico e autônomo, e para os aderentes, correspondem ao centros de força presentes no perispírito - uma total bobagem; não para Armond que, no início do capítulo seguinte emenda:

No perispírito, o sistema nervoso liga-se através dos plexos e gânglios, a uma série de centros de força, denominados chacras na literatura oriental, sobre os quais devemos aqui dizer mais algumas palavras, tendo em vista sua importância para o trabalho dos passes, apesar de não terem sido citados por Kardec na Codificação, por conveniência de programação.” - Primeira Parte Teórica 2 Centros de Força _ é interessante e desanimador testemunhar que certas informações surgem a partir das conveniências as mais oportunas; então Allan Kardec nada registrou nas obras da Codificação acerca dos chacras e dos centros de força por conveniência de programação? Ora, pois que o sr. Armond encontra-se na obrigação de provar tal afirmação; e mais, o dever de por a vista de todos esta programação, sim, pois tal afirmação apenas leva a concluir que o ex-militar conhece os desígnios misteriosos atribuídos aí aos Espíritos da Codificação. Para olhos treinados, as entrelinhas deixam entrever a verdade - afirma-se aqui que o Espiritismo é uma doutrina inconclusa, e sob tal farsa toda sorte de invencionices e interpolações são aceitas, buscando embasar todos os mais díspares autores e suas teses, ideias e conceitos. O restante do capítulo é uma salada tão indigesta que separar seus diversos elementos para exame resultaria em triplicar-lhe a extensão original, labor dispensado, uma vez que o nível de obscurantismo arremete a níveis abismais. Convém, todavia resumir o que se segue ao fato de o autor enumerar os chacras, classificá-los e explicar-lhes a ação - tudo eivado por um vocabulário abominável que transtorna em asco e resulta em esgotamento; tudo muito distante da limpidez da linguagem de Allan Kardec.

Armond não se entende com o uso equivocado do termo energia, repercutindo a cada passagem esse erro crasso que magoa os sentidos tanto quanto a inteligência. Em semelhante medida demonstra um profundo desconhecimento do fluido e das suas inumeráveis transformações, reiterando uma série de expedientes eminentemente materiais com o fim de manipulá-los - é o mesmo que afirmar que velas acesas atraem Espíritos; não são exercícios de respiração, ou qualquer dos sistemas ou órgãos do corpo físico que capacitarão alguém a manipular fluidos em benefício próprio, pois é o pensamento, a qualidade deste, que determinará a absorção de fluidos salutares, tanto ou mais em relação a eficácia que se almeja por meio da fluidoterapia. O capítulo 8 da obra, intitulado Estudo dos Fluidos é uma afronta ao Espiritismo, e evidencia os limites cognitivos de Armond. O restante da obra é uma tortura que o leitor busca antever o fim urgentemente - uma série de conceitos os mais estapafúrdios que, por certo, catalogam ideias absolutamente equivocadas acerca do fluido, hauridos de toda sorte de fontes pregressas dos mais diversos experimentadores e pesquisadores ao longo da história, o que poderia resultar numa coleção coesa e historiograficamente bem urdida. O que se encontra, no entanto, é uma espécie de almanaque místico de algum mago ou alquimista medieval. Não é apenas afrontoso que indivíduos que se afirmaram e afirmam espíritas hajam adotado tal caderno de insanidades para vir aplicar a fluidoterapia, é ainda patético que alguém haja seguido os caprichos do autor, que na qualidade de espírita é um eminente orientalista e teósofo.

Não resta dúvida, todavia, que Edgard Armond era cônscio do carisma e penetração de sua obra, ao que ele expressou na Introdução a 2º edição desta, tratando de sua repercussão: “(...); como também de disciplinar e unificar as práticas doutrinarias da Casa, sobretudo os passes, que o arbítrio desordenado e as infiltrações de correntes estranhas levavam muitas vezes ao ridículo, ao descrédito, atentando negativamente contra a seriedade e a eficiência científica deste precioso elemento auxiliar de reequilíbrio material e psíquico.

4. O Redentor
A começar pelo título da obra, o termo redentor refere-se a Jesus, e embora os espíritas possam lhe atribuir significados próprios, a acepção original afirma este como o salvador da humanidade, o que veio sacrificar-se para a todos salvar. Aí o termo já não pode ser aceito diante da Doutrina dos Espíritos, afinal algo apenas pode ser salvo diante de uma potencial perda - ora, o Espiritismo não aceitando um modelo cósmico senão progressivo para o Espírito, não há como sustentar o conceito da perdição presente no cristianismo. Nenhum Espírito perdendo-se, nenhuma salvação se faz necessária, menos ainda que alguém venha purgar os pecados da humanidade como um cordeiro em holocausto. Esta parece ser uma escolha para título que reflete a visão pessoal de Armond acerca do papel de Jesus, como pudemos constatar anteriormente, na diminuta passagem da introdução de seu livro Passes e Radiações. A este ele vem afirmar, na introdução de O Redentor:

A tarefa messiânica era sanear a Terra de suas iniquidades, oferecer a humanidade diretrizes espirituais mais perfeitas, definitivas, redimir os homens e encaminhá-los para Seu reino divino de luzes e de amor e foi cumprida em todos os sentidos, (...)” _ para o Espiritismo, todavia, a missão de Jesus era mais prosaica, e se a sua mensagem ganhou o mundo deveu-se a uma série de fatores alheios a sua performance, ou mesmo a sua vontade; mas não seria de supor que ele desconhecesse o que resultaria sua passagem pelos encarnados àquele tempo, a tanto que afiançou o surgimento do Espiritismo (o consolador prometido). Tratando em O Evangelho Segundo o Espiritismo de situar o leitor quanto a alguns caracteres do tempo de Jesus, Allan Kardec trata dos Fariseus, e acerca destes frente a Jesus concluiu:

Jesus, que prezava, sobretudo, a simplicidade e as qualidades da alma, que, na lei, preferia o espírito que vivifica à letra que mata, se aplicou durante toda a sua missão, a lhes desmascarar a hipocrisia, pelo que tinha neles encaniçados inimigos. Essa a razão por que se ligaram aos príncipes dos sacerdotes para amotinar contra Ele o povo e eliminá-lo.” _ ao lado dos Saduceus, os Fariseus constituíam uma poderosa força materialista no seio do povo hebreu, e contra eles Jesus teve os mais marcantes embates registrados nas páginas dos Evangelhos. Em mensagem recebida espontaneamente em sede da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas a 2 de fevereiro de 1868, sem que Allan Kardec lhe tenha composto qualquer ressalva ou complemento, um Espírito resumiu a questão assim: “Moisés é o tempo passado; o Cristo, o tempo presente; o Messias a vir, que é o amanhã, ainda não apareceu... Moisés tinha que combater a idolatria; o Cristo, os fariseus; o Messias a vir terá também os seus adversários: a incredulidade, o cepticismo, o materialismo, o ateísmo e todos os vícios que acabrunham o gênero humano...” _ ora, como se constata, sua missão era o enfrentamento aberto às ideias contrárias ao espiritualismo que àquele tempo contaminavam o povo da Palestina. Não há cousa alguma, sequer meramente análogo a fazer de si uma metáfora viva do holocausto empreendido pelas gentes no Templo de Jerusalém; menos ainda que ele buscasse a cada palavra dita e ação empreendida tanger a totalidade dos homens de todos os tempos, embora, é preciso ressaltar, ele certamente tinha plena presciência do seu legado. Imaginar que apenas, e tão somente por meio de Jesus se alcançará um progresso de monta é desprezar que suas lições já não se encontrem presentes num sem número de culturas e correntes filosóficas e religiosas pelos povos da Terra. A defesa de tais ideias em O Redentor apenas revela os pendores íntimos do autor, mesmo que para tanto sustente algo contrário a Doutrina dos Espíritos. Acerca disto, a propósito, tem-se curiosa passagem ainda neste seguimento da obra, que vale um exame:

E se nos voltarmos para as obras de caráter mediúnico, da mesma forma encontraremos inúmeras divergências, de forma e de fundo, que não levam a maiores certezas. Têm-se, então, a impressão de que ainda não chegou a época de ser o assunto esclarecido pelos Instrutores Espirituais que, conquanto se mostrem muitas vezes até mesmo prolixos na exposição de assuntos doutrinários ou filosóficos, não trazem maiores esclarecimentos a respeito da parte histórica da vida do Divino Messias.” _ ao que, mais adiante, na lista de obras que afirma haver consultado para compor seu livro, registra sucintamente 'diversas obras mediúnicas'. Ora, inicialmente, não será por intermédio dos Espíritos que caberá preencher as lacunas quanto aos aspectos historiográficos da vida de Jesus de Nazaré, ou de qualquer figura ou acontecimento passado; os que assim almejam se expõem as narrativas disparatadas de Espíritos enganadores e pseudo-sábios. Em seguimento, é necessário se questionar se, diante das divergências das obras mediúnicas, que critérios Edgard Armond utilizou na escolha daquelas que consultou para a composição do texto. Convenientemente ele os sonega ao leitor, cabendo a este a confiança cega em sua metodologia, seja qual for. Não é uma atitude muito espírita insuflar tal juízo ao legente.

Edgard Armond dedica todo um capítulo a tratar da seita dos Essênios, e em apenas um único trecho comete dois equívocos frente a Codificação: “É sabido que João Batista era essênio, como essênio eram José de Arimatéia, Nicodemo, a família de Jesus e inúmeros outros que na vida do Mestre desempenharam papéis relevantes, como também o próprio Jesus que conviveu com essa seita, frequentando assiduamente seus mosteiros, enterrados nas montanhas palestinas, onde sempre encontrava ambiente espiritualizado e puro, apto a lhe fornecer as energias de que carecia nos primeiros tempos da preparação para o desempenho de sua transcendente missão.” - já Allan Kardec vem esclarecer em O Evangelho Segundo o Espiritismo acerca dos essênios: “Pelo gênero de vida que levavam, assemelhavam-se muito aos primeiros cristãos, e os princípios da moral que professavam induziram muitas pessoas a supor que Jesus, antes de dar começo à sua missão pública, lhes pertencera à comunidade. É certo que ele há de tê-la conhecido, mas nada prova que se lhe houvesse filiado, sendo, pois, hipotético tudo quanto a esse respeito se escreveu” _ e se escreveria. Afirmando que as pessoas em derredor de Jesus eram essênios, o Comandante cai em outra falha; o mestre lionês vem em socorro: “Pelo que concerne a seus irmãos, sabe-se que não o estimavam. Espíritos pouco adiantados, não lhe compreendiam a missão: tinham por excêntrico o seu proceder e seus ensinamentos não os tocavam, tanto que nenhum deles o seguiu como discípulo. Dir-se-ia mesmo que partilhavam, até certo ponto, das prevenções de seus inimigos. O que é fato, em suma, é que o acolhiam mais como um estranho do que como um irmão, quando aparecia à família. João diz, positivamente (7:5), 'que eles não lhe davam crédito'. Quanto à sua mãe, ninguém ousaria contestar a ternura que lhe dedicava. Deve-se, entretanto, convir igualmente em que também ela não fazia ideia muito exata da missão do filho, pois não se vê que lhe tenha seguido os ensinos, nem dado testemunho dele, como fez João Batista.

Dentre os livros que Edgard Armond indica como bibliografia utilizada para a composição de O Redentor, nenhum deles é espírita, nenhum deles compõe as Obras Básicas ou qualquer outro dentre os escritos de Allan Kardec - eis pois, porque resulta seu tomo num equívoco, dos quais qualquer leitor de ânimo há de extrair outras tantas passagens inexatas, hipotéticas e anômalas. Talvez, a que mais clame seja sua defesa da existência de um Cristo Planetário. No capitulo 17 da obra, que trata do batismo de Jesus por João Baptista, Armond explica: “Seja como for, percebe-se que Jesus, naquele instante - o Filho do Homem, isto é, o que evoluíra pelas encarnações humanas, o Governador Planetário, em perfeita sintonia com o Cristo Planetário - reintegrou-se em todo o poder do Espírito Crístico, da esfera dos Amadores, tornando-se integralmente apto para a realização de sua sacrificial tarefa na Terra.” _ preciso é esclarecer que a Teosofia e outras tantas correntes das práticas ocultistas possuem uma intrincada, para não dizer hermética, base teórica que considera uma hierarquia de comando cósmica extremamente complexa. Disto nasce a ideia de uma 'faixa crística' onde, supostamente se localizariam os Cristos, que respondem a Cristos Planetários, agentes inteligentes enviados diretamente de Deus, que responderiam pela criação de universos. O interessante é notar a ideia presente, por exemplo, em A Doutrina Secreta, de Blavatsky, onde ela expressa o seguinte em dada passagem: “Chame-o por qualquer nome, mas deixe apenas que os infelizes cristãos saibam que o verdadeiro Cristo de todo cristão é Vach, a 'Voz mística', enquanto o homem Jeshu foi apenas um mortal como qualquer um de nós, um adepto mais por sua pureza inerente e sua ignorância do verdadeiro Mal que pelo que ele tenha aprendido com seus Rabinos iniciados e os Hierofantes e sacerdotes egípcios, já (àquela época) em rápida degeneração.” _ nem queira entender o leitor, porque isto é Teosofia, e não Espiritismo. Esta ideia do Cristo Planetário, alias, está também presente na obra do Espírito pseudo-sábio Ramatis, que teve por primeiro médium Hercílio Maes, que até a publicação e repercussão positiva de seus livros se dizia teósofo.

No capítulo 4 intitulado Controvérsias Doutrinárias, o autor tece considerações a vários temas, dentre os quais a natureza do corpo de Jesus; para tanto, erige uma série de perguntas e respostas, das quais se destaca uma em particular: “P_Mas como, sendo de carne comum, poderia desmaterializar-se, como fez várias vezes e de forma tão natural e perfeita, como consta dos Evangelhos? R_Porque tinha um corpo de carne, sem dúvida, porém de consistência diferente, de densidade muito menor, de matéria mais pura, de vibração mais alta, adequada a conter um Espírito de Sua elevada hierarquia; corpo, a seu turno, gerado por um vaso físico devidamente preparado e selecionado anteriormente ao nascimento, de vibração e pureza que comportasse Sua permanência em nosso plano grosseiro e impuro.” _ não é afirmar o mesmo que Roustaing, por outras palavras? E incide em novo erro, proclamando a superioridade mariana, expressa na pureza da matéria que comporia seu corpo físico. Acima já transcreveu-se passagem de O Evangelho Segundo o Espiritismo acerca do proceder de Maria a denunciar-lhe o progresso espiritual, não tão excelso quanto pintam alguns espíritas que não abandonaram o ranço católico.

A narrativa de Armond é hábil em buscar subterfúgios para não adentrar completamente nem as palavras, tampouco as ações de Jesus, tendo as primeiras sido tratadas em O Evangelho Segundo o Espiritismo, e as últimas em A Gênese. Mas, ocasionalmente se lhe escapa ao escrutínio da revisão um ou outro ponto que o expõe; por exemplo, no capítulo 27, sob o título Outros Lugares, o leitor encontra: “Diz o Evangelho que efetuou também muitos 'milagres' (...) e duas multiplicações de pães, que o Espiritismo também pode explicar como condensações fluídicas, multiplicadas em cadeia, o que, para o Divino Mestre, seria possibilidade natural.” _ Em A Gênese, Allan Kardec desfere o correto ensinamento acerca de tal passagem evangélica, erroneamente interpretada ao longo dos séculos: “O prodígio, no caso, está no ascendente da palavra de Jesus, poderosa bastante para cativar a atenção de uma multidão imensa, ao ponto de fazê-la esquecer-se de comer. Esse poder moral comprova a superioridade de Jesus, muito mais do que o fato puramente material da multiplicação dos pães, que tem de ser considerada como alegoria.” _ Edgard Armond não leu A Gênese? Recomenda-se a atitude correta para compreender-se os milagres de Jesus, ao que convidamos os leitores a não proceder como o ex-militar, e ir por olhos sobre as obras da Codificação; além, claro, de empreender pelos próprios esforços um mais atento exame da presente obra, com a certeza de que novos deslizes surgirão.

5. Mediunidade
A exemplo de Passes e Radiações, esta obra de mote instrucional descortina-se em real sevicia ao estudioso do Espiritismo. O tortuoso emprego de linguagem alheia aquela trazida pelos Espíritos da Codificação e adotada por Allan Kardec, torna a leitura um enigma a que nenhum dicionário dará solução. Além, obviamente, do emprego dos termos equivocados de sempre - carma, incorporação, energia, desdobramento, etc. Mas, o crème de la crème são sempre as divergências das teses, ideias e conceitos presentes na obra frente a Doutrina dos Espíritos. Exemplos são abundantes:

A mediunidade é pois um fenômeno natural e se realiza em todos os graus da hierarquia da criação, numa escala que vai do verme aos anjos, tudo e todos reciprocamente se manifestando e dando testemunho de si mesmos. Assim, Jesus Cristo foi, inegavelmente, o médium de Deus junto aos homens, manifestando, transmitindo e realizando suas vontades divinas.” _ a mediunidade se dá em todos os graus da hierarquia da Criação? Vermes têm mediunidade? É o que preceitua este trecho, ou seria conclusão apriorística? Porventura se tratasse de outro autor, poder-se-ia traduzi-lo como metáfora ou símbolo, mas é o Comandante quem compõe tais frases. Desprovido, no entanto, de qualquer possibilidade de interpretação é a afirmação acerca de Jesus; quanto a isto, encontra-se em A Gênese as seguintes passagens acerca do tema: “(...) o médium é um intermediário, um instrumento de que se servem os Espíritos desencarnados e o Cristo não precisava de assistência, pois que era ele quem assistia os outros. Agia por si mesmo, em virtude do seu poder pessoal (...) Que Espírito, ao demais, ousaria insuflar-lhe seus próprios pensamentos e encarregá-lo de os transmitir? Se algum influxo estranho recebia, esse só de Deus lhe poderia vir. Segundo definição dada por um Espírito, ele era médium de Deus” _ antes que imaginar Edgard Armond havendo de harmonizar-se a algo presente nas Obras Básicas, é preciso atentar para o fato de que Allan Kardec faz notar que apenas um Espírito assim definiu Jesus, cuja mediunidade é suposta e tratada como hipotética, bastando ao leitor constatar o tempo do verbo usado pelo mestre lionês; aqui sim se pode registrar positivamente por uma expressão alegórica, jamais literal.

A muitos, entretanto, ainda que atrasados em sua evolução e moralmente incapazes, são concedidas faculdades psíquicas como graça. Não as conquistaram, mas receberam-nas de empréstimo, por antecipação, numa posse precária que fica dependendo do modo como forem utilizadas, da forma pela qual o indivíduo cumprir a tarefa cujo compromisso assumiu, nos planos espirituais ao recebê-la. A isso denominamos mediunidade de prova.” _ há todo um capítulo dedicado a esta aberração, do qual não se afirma que uma só linha de seu conteúdo concorde aos postulados da Doutrina dos Espíritos; mas, fica ao arbítrio do leitor apreciar tal anômalo opúsculo. A mediunidade, como fizemos notar em artigo passado, é um atributo humano como a fala e, como tal, seu sinônimo mais perfeito é comunicabilidade; mas a exemplo de Emmanuel, que deturpando a mediunidade viu em tal característica um castigo, Edgard Armond lança doutrina própria a tratar deste ponto fundamental do Espiritismo, mesmo que para tanto venha adulterá-lo.

As quedas são mais comuns nos degraus inferiores da escada evolutiva e tanto mais dolorosas e profundas se tornam quanto maior for o cabedal próprio de conhecimentos espirituais adquiridos pelo Espírito. 'Estado de evolução' e 'estado de queda' são duas condições de caráter geral, em que se encontram os Espíritos nas fases inferiores da ascese. Essas são as condições que dominam no umbral que, como sabemos, é uma esfera de vida purgatorial, bem como nos planos que lhe são, até certo ponto, e de um certo modo, imediatamente acima. Quando porém as quedas se acentuam devido a reincidências de transgressões, elas levam os culposos às Trevas, esfera mais profunda, de provas mais acerbas, situada abaixo da Crosta.” _ Edgard Armod oferece sempre um espetáculo soberbo de falhas, equívocos e conceitos clara e frontalmente opostos aos princípios do Espiritismo. Aqui, neste trecho em particular, ele prega a involução, que chama espertamente de queda. E vai além, remetendo o leitor diretamente as obras mais controversas de André Luiz, aquelas mesmas que couberam a Rafael Ranieri registrar. Certamente o livro O Abismo causou pungente impressão em Armond, a tal ponto de fazê-lo compor esta pérola de ignorância espiritual.

(...) o espírito que fala transmite a palavra ou o som e as ondas sonoras não atravessam a cortina fluídica de proteção que separa o perispírito do corpo denso, permanecendo no campo das atividades do perispírito; tais impressões não são transmitidas aos órgãos dos sentidos físicos e, por isso, é que o médium tem a impressão de que ouve dentro do cérebro. (...)” _ cortina fluídica de proteção que separa o perispírito do corpo denso? Mas que obscenidade é esta? Pior é alegar que o Espírito ao falar move o ar como quando encarnado podia fazê-lo! É um completo desconhecimento da natureza perispiritual, do fluido e da mediunidade. Não leu o Comandante o Ensaio Teórico da Sensação nos Espíritos? O Livro dos Médiuns? É de tal natureza complexa a torção que ele compôs aqui que se torna difícil alcançar positivas conclusões acerca do que quis afirmar; pode-se concluir aí pela defesa da existência de um perispírito orgânico? Sim. Mas ora, se o som é impedido por esta suposta barreira de alcançar os órgãos do corpo, como pode ser percebido? Nada disso parece fazer nenhum sentido, sob quaisquer modos de entendimento aplicado a tal trecho.

Ballonnement. Adotamos esta expressão francesa para indicar a sensação de dilatação, estufamento, inchamento de mãos, pés e rosto do médium, que muitas vezes ocorre antes do transe. É ainda efeito da exteriorização, do deslocamento do perispírito do médium dentro do arcabouço físico para ceder lugar, parcial ou totalmente, ao Espírito comunicante.” _ Incorporação? Bem o sabe o estudioso que o Espírito não toma o corpo, como se este lhe pudesse conter em seu imo. Mas, nada sabendo acerca disto Edgard Armond, ele ainda foi capaz de compor um capítulo inteiro acerca da incorporação. Lamentavelmente.

Como os animais vivem ao mesmo tempo no astral e no plano material denso, a visão e a audição captam impressões desses dois planos: ouvem e veem com facilidade nos dois planos, os seres encarnados e desencarnados.” _ há todo um seguimento na obra acerca deste absurdo, do qual já deitamos esforços em elucidar em artigo aqui publicano em 14 de agosto do ano passado. Embora positivamente os sentidos dos animais, mais sensíveis que os humanos, percebam a presença de certos Espíritos que, conscientemente ou não, fazem uso do fluido de algum médium próximo para serem percebidos ostensivamente pelos primeiros, tais fenômenos não são mediúnicos. Menos ainda se pode conceber um médium ganindo ou rosnando. Reiteramos a leitura do artigo supracitado.

E há ainda um sem número de passagens em que Armond chama a mediunidade sonambúlica de desdobramento, não compreendendo cousa alguma dos processos sucedidos aí. É mais um soberbo festival em que o leitor se vê depauperado pelo esforço de atravessar tais linhas, página após outra em busca de algo que faça sentido, em busca de algo que minimamente o faça recordar das Obras Básicas em toda sua clareza e coerência, em vão.

6. Conclusão
E por tais absurdos vaga Edgard Armond, haurindo das leituras de quando jovem as impressões mais pungentes acerca da mediunidade, e de outros princípios eles também presentes na Doutrina dos Espíritos - mas, nem por um instante se engane o desavisado, o aprendiz ou o estudioso, pois que de tais princípios pouco compreendia, ou compreendia justamente segundo a literatura teosófica e oriental de seus tempos de moço. Leitura esta que soergueu as bases de seu pensamento, e dos quais, suspeita-se, não haja empreendido forças para os revisitar frente a um conhecimento de outra natureza, qual seja o Espiritismo. Mais perigoso que um Espírito pseudo-sábio que busca impor suas ideias e sistemas, tendo na figura do médium um intermediário que lhe pode escudar e a quem pode fascinar, mas ainda assim traduzir incorretamente seu pensamento, os autores encarnados mais livremente espargem suas doutrinas; e ainda que tanjam nas mesmas bases do Espiritismo, estas nenhum parentesco podem lhe guardar, e frequentemente é o que se observa.

Hinduísmo, budismo e outras culturas e religiões orientais assinalam, por exemplo, a existência da reencarnação, mas tem seus sistemas próprios para a explicá-la, compreende-la, o que, pela simples comparação se infere que sonegam informes que a Doutrina dos Espíritos possui; quando não, aliam a estas crendices, superstições e toda sorte de especulações que a razão e a lógica recusam, indo por caminho contrário ao Espiritismo. Judiciosamente pois é que o Espiritismo tem sua singularidade, que pede e merece respeito tanto quanto qualquer outra corrente de pensamento ou doutrina que trate das mesmas questões por si abordadas.

O ocultismo, a teosofia e o esoterismo tem lugar nas mentalidades que lhes são afins, e não há o que condenar os que por tais vertentes de pensamento escolheram aventurar-se - não se pode, contudo, avançar os limites que lhes são próprios. A objeção se faz a alguns indivíduos, dotados de carisma, voz de comando e ascendência psicológica sobre os demais que, na consideração de tudo conhecer, urdem na efervescência do ego sistemas doutrinários personalíssimos, espargindo-os sob o balsão do labor fervoroso em nome de uma religião, de uma doutrina econômica, científica, política ou filosófica. Não impõe ressalvas inutilmente quem toma com apreensão tais personagens, e a eles impõe todos os entraves a confiança. Vigiai e orai, prescreve Mateus; vigiemos portanto.
--
1_Kalpa é o equivalente a 14 Manvantaras, o que é um ano de Manu, ser surgido de Brahma, o Criador, e responsável pela criação da humanidade, isto segundo o hinduísmo. Para a Teosofia, o Kalpa é a somatória de tempo universal para os mundos possuidores de vida, o que equivale, na contagem de tempo terrena, a 4.320.000.000 de anos. Na lógica da obra de Blavatsky, portanto, a espécie humana teria surgido muito antes deste tempo, o que não corresponde a realidade geológica e biológica do planeta; mas este detalhe científico é o tipo de conhecimento tomado como incorreto ou passível de relativização por ocultistas, esotéricos e teósofos, procedimento muito comum, ainda, dentre os autores que compõem obras sob o epíteto de Espiritismo. Acautelemo-nos diante destes.