1. Ocultismo, esoterismo e
teosofia
Passar ao escrutínio da razão
autores que falaram, conferenciaram, escreveram e divulgaram suas próprias
ideias como se espíritas fossem não é tarefa fácil, tampouco recompensadora, ao
menos do ponto de vista espiritual - os ataques fluídicos são exponencialmente
maiores, quão mais divulgados forem os resultados deste processo. Ainda que os
benfeitores espirituais colaborem, neste mundo materialista os seus esforços
parecem insípidos, ainda que não sejam; mas, se os efeitos deletérios do
pensamento daqueles que tiveram sua fé sacudida em decorrência de um estudo
aprofundado, cotejando seus autores de culto as evidências da realidade, ainda
mais violentos lhes são as agonias intestinas ocasionadas pela acareação com as
Obras Básicas - pois, todo aquele que se considera espírita, crê ter um
dilatado conhecimento dos escritos de Allan Kardec. Quando não o tem, dizem-no
ultrapassado, obsoleto, carente de revisão. Basicamente, o argumento esclerosado
e loroteiro de sempre (ver artigo aqui publicado em 10 de agosto de 2019).
Todavia, ao levar a efeito tais
exames e investigações, nenhum estudioso está em busca de qualquer espécie de
recompensa, ou assim se cogita. Que todos se entendessem acerca do Espiritismo
numa simples conversa já lhe seria um avanço positivamente promissor. Menos se
pode crer que desejem vir denegrir a dignidade humana de tais autores, muitos
dos quais apenas desorientados e instruídos de modo equivocado acerca do
Espiritismo. Mas daqueles que fizeram do Espiritismo sua profissão, é ao menos
de bom alvitre desconfiar de suas intenções, de suas palavras, de seus artigos
e de seus livros. Julgam-se os Espíritos, como os homens, pela sua linguagem.
Tem-se o presente blog exposto esforços em artigos referentes a erraticidade,
princípio do Espiritismo, e cujo qual fartam teses, conceitos, doutrinas e
ideias anômalas, que qualquer estudioso da Doutrina não deve deixar sem
análises e conclusões. Mas não só. Concepções outras, trazidas de culturas,
religiões e doutrinas estranhas aos postulados espíritas vicejam entre as
gentes, a guisa de Espiritismo. De modo insidioso, por meio de diversos
divulgadores e pretensos estudiosos, ideias bizarras ganham corpo e
posteridade, estando presentes no ilegítimo movimento espírita brasileiro há
décadas.
Um dos sistemas de ideias que há
mais tempo se insinuam junto ao Espiritismo é o ocultismo; este é tido como uma
disciplina das cousas misteriosas, sobrenaturais e ocultas, que não são
explicáveis por meio de teses que contemplem leis naturais - não será preciso
notar o quão antagônico é frente a Doutrina dos Espíritos. O ocultismo divide a
natureza, ou antes, os saberes acerca da natureza em exotéricos e esotéricos; o
primeiro refere-se a conhecimentos de caráter público, disponível a todos
irrestritamente, enquanto a segunda trata de conhecimentos ocultos, próprios a
círculos estritos de iniciados. Três segmentos, ou categorias subdividem o
campo de estudo e atuação do ocultismo - o ocultismo filosófico, que aborda a
moral, a metafísica e a teologia; o ocultismo prático, que trata do magnetismo,
hipnotismo, alquimia, astrologia, cartomancia, quiromancia, grafologia,
frenologia, bibliomancia, hialoscopia, autoscopia e magia; e, por fim, o
ocultismo esotérico, que estuda os sistemas de pensamento dos filósofos
antigos, em especial aqueles cujas ideias tem feições secretas. Determinadas
doutrinas, culturas ou religiões preconizam interpretações de seus postulados
ao espectro ocultista, como por exemplo o hinduísmo e demais religiões e seitas
indianas, o budismo zen, o islamismo, o catolicismo, a maçonaria, a rosacruz, a
kabala hebraica, a eubiose e a teosofia. A adesão ao pensamento ocultista
traduz-se no acolhimento de tradições, ritos e rituais, símbolos, gestos,
grandes e pequenos mistérios, misticismos, magias, orações e rezas. No entanto,
se este amontoado de conceitos e práticas divinatórias que nada tem que ver com
o Espiritismo, a este infiltrou-se por conta de certos autores, - dentre os
quais Edgard Armond, que lhe dedicou especial expressão, ao qual abordaremos
seguintemente - alguma influência exerceram os escritos de Allan Kardec sobre
os autores ocultistas?
Stanislas de Guaita, obscura
figura do século XIX, hoje um completo desconhecido a exceção para os iniciados
do ocultismo, fora um dos expoentes máximos de tal corrente de pensamento, e em
sua obra maior, No Umbral do Mistério, registra-se o seguinte:
“O Espiritismo é algo que, por
si só, constitui uma aberração e uma loucura. (...) Há no homem, segundo a
Magia, três elementos radicais: a Alma (elemento espiritual), o Corpo (elemento
material) e o Perispírito ou Mediador (elemento fluídico). (…) A alma
espiritual seria , aliás, inábil para se fazer obedecer pelo corpo material sem
a interferência de um Mediador Plástico procedente de ambos (…) Ora, uma vez
que este Mediador Plástico, exercido convencionalmente, segundo sua própria
vontade, pode coagular ou dissolver, projetar ao longe ou atrair uma porção do
Fluido Universal, ele possibilita ao adepto influenciar toda a massa de Luz
Astral, nela criando correntes e produzindo, enfim, ainda que à distância,
fenômenos surpreendentes que a ignorância comum qualifica como milagres ou
perversas artimanhas do diabo, quando não acha ainda mais simples negá-los
obstinadamente.”
Tal interessante passagem, que
expõe de modo relativamente preciso o perispírito, propriedades e interação
deste com o fluido cósmico ambiente, revela um ponto de contato insuspeito com
a Doutrina dos Espíritos, embora o autor impute tais formulações a magia, seja
lá em que alfarrábios ancestrais tenha compulsado ele para os adquirir.
Stanislas de Guaita, no entanto, é apenas um dos indivíduos sem fim que desde o
medievo ao século XVIII, passando pelas escolas gnósticas do Renascimento,
fomentaram o ocultismo e demais doutrinas esotéricas - ao seu tempo, coetâneos
de Allan Kardec, certos nomes e personagens fizeram a história desta vertente
de pensamento, instando fabulações, lendas e mitos na mentalidade popular;
nomes como Gérard Encausse, Martinez de Pasqually, Louis-Claude de
Saint-Martin, Jean Baptiste Willermoz, Eliphas Levi, Conde de Cagliostro, Conde
de Saint Germain, entre muitos outros evocavam respeito e reservas em igual
medida. Acaso se possa apontar um ponto culminante na efervescência causada
pela presença e inserção do pensamento ocultista e esotérico no século XIX,
este seria a fundação da Sociedade Teosófica Internacional, fato que se deu em
Nova York, por iniciativa de Helena Blavatsky e Henry S. Olcott, em 1875.
Helena Petrovna Blavatsky nasceu
na Ucrânia em 1831 e, embora haja tido uma infância enfermiça, fora uma criança
manifestamente rebelde, obstinada e imaginativa. Com 17 anos se casa, mas foge
do marido em plena lua-de-mel, sem haver consumado o matrimônio; seu pai a
ampara e facilita sua fuga, permitindo-a seguir a moda dos filhos das elites
europeias de antanho, peregrinando por países considerados exóticos, colhendo
experiências as mais fantásticas e, por certo exageradas, dado o seu pendor
pessoal para a mitificação. Mulher independente, culta e de caráter firme,
Helena se dizia sensitiva, iniciando-se no esoterismo por intermédio de um
mestre muçulmano que conhecera no Egito. A Sociedade Teosófica Internacional
fundada por ela, teve sua sede transferida para a Índia, primeiramente em
Mumbai, e depois para Adyar, ao sul de Madras, onde se fixaria em definitivo.
Suas obras interligam o conhecimento religioso mistico asiático ao gnosticismo
e outras correntes ocultistas ocidentais; entre seus escritos destacam-se A
Doutrina Secreta, Ísis sem Véu e A Voz do Silêncio. Entre
personagens de destaque que foram membros da Sociedade Teosófica encontra-se
Charles Leadbeater, Alfred Sinnett, George Mead, Annie Besant, Jiddu
Krishnamurti e Curuppumullage Jinarajadasa.
2. Comandante
A biografia de Edgard Armond
registra seu nascimento à 14 de junho de 1894 na cidade paulista de
Guaratinguetá, localizada no Vale do Paraíba. Aos 21 anos, ingressou nas forças
públicas do Estado de São Paulo, onde viria a receber o título de Comandante,
patente pela qual ficaria conhecido junto ao movimento espírita nacional;
em 1938 deixa a vida militar em decorrência de haver fraturado os dois joelhos
em um acidente automobilístico. A este tempo passa a considerar-se espírita e
dedica-se, então a tenaz atuação, tendo participado da fundação da FEESP
(Federação Espírita do Estado de São Paulo), e de seu órgão de imprensa, o
periódico O Semeador, além de fundar a USE (União das Sociedades
Espíritas). Na década de 1970, disside da FEESP, ao lado dos dirigentes de
vários centros espíritas, fundando a Aliança Espírita Evangélica (AEE),
retomando a Escola de Aprendizes do Evangelho e a Fraternidade dos Discípulos
de Jesus, nos moldes em que existiram na FEESP na década de 1950, implementando
aí a Reforma Íntima como meio de aperfeiçoamento moral para a vivência do
cristianismo. É autor de mais de cinquenta livros, mas reconhecido
principalmente por Os Exilados de Capela, O Redentor, e Passes e
Radiações. Faleceu em 1982, aos 88 anos. Interessa, porém, apontar que além
de haver sido maçom, ao longo da década de 1920, Armond travou contato com
líderes esotéricos e ocultistas, como registrado nestas duas passagens
facilmente encontráveis em sites a respeito do autor - “(...) fez contatos
pessoais com líderes esotéricos, ocultistas e espiritualistas, entre outros
Krishanmurti, Krumm-Heller, Jinarajadasa (...)” - “(...) manteve contato
com líderes esotéricos, ocultistas e espiritualistas, entre os quais
Krishanmurti, Krumm-Heller, Jinarajadasa (...)”
Quem foram tais três figuras?
Henrich Arnold Krumm-Heller nasceu na Alemanha em 1879, tendo migrado ainda
jovem para o México, onde tornou-se militar, empreendendo missões no Chile,
Peru e Amazônia. Praticou curandeirismo, adotando o pseudônimo de Mestre Huiracocha.
Em 1895 estuda metodicamente o ocultismo e o gnosticismo, tomando contato com
as obras de Madame Blavatsky, Louis Claude de Saint-Martin, Eliphas Levi e
Gérard Encausse, em cujos cursos vem se inscrever em 1906, em Paris; aí passa a
integrar a maçonaria e a estudar medicina. Por toda a América Latina funda
lojas Rosacrucianas, inclusive no Brasil. Jiddu Krishnamurti, nascido na Índia
em 1895, fora adotado na infância por Annie Besant, então presidente da
Sociedade Teosófica. Ainda aí fora declarado Mestre do Mundo, cumprindo uma
profecia existente no seio dos teósofos; com o fito de preparar o planeta para
sua chegada, fundou-se a Ordem da Estrela do Oriente, e o pequeno indiano fora
empossado seu líder. Décadas após, ele dissolve tal agremiação renunciando o
papel que lhe fora imputado, restituindo os bens, as propriedades e o dinheiro
que lhe haviam sido doados para desempenhar tal tarefa. Entretanto, pelos quase
sessenta anos posteriores, peregrinou pelo mundo divulgando suas ideias acerca
do autoconhecimento para uma mudança radical da humanidade, de certo modo
desempenhando uma tarefa próxima a qual lhe houveram sujeitado. Curuppumullage
Jinarajadasa, nasceu em 1875 no Sri-Lanka; foi aluno de Charles Leadbeater, que
o tutelou quando retornou a Inglaterra, o que permitiu ao pequeno cingalês uma
formação privilegiada; sua biografia registra um poliglota que além de dominar
seu idioma de nascença, era proficiente em inglês, italiano, francês, havendo
lecionado em espanhol e português quando esteve na América do Sul, ocasião em
que teria fundado filiais da Sociedade Teosófica. Deixara mais de cinquenta
livros e cerca de mil e seiscentos artigos; fora maçom e comaçom, além de haver
sido o quarto presidente da Sociedade Teosófica.
Assinalado que tal tríade de
ocultistas haja, em dado momento de suas vidas, visitado a América do Sul, não
se duvida que, de fato, possam ter travado relação com o Comandante Edgard
Armond, incidindo estes, decisivamente sobre seu pensamento. Ainda que tais
contatos não hajam ocorrido factualmente, senão por meio de suas obras,
atesta-se o influxo com certa facilidade, dada a fartura de dados sobejantes
nos livros que compôs. Isto posto, compulsaremos alguns dentre estes, os mais
afamados e significativos a fim de verificar a tese aqui defendida. Mas o
volume pelo qual o autor é frequentemente rememorado, Os Exilados de Capela,
deixaremos para tecer laudas com o ensejo propício e a gana adequada ao
montante de labor exigido, bem como reservaremos a futuro artigo tratar da Reforma
Íntima, uma invenção armondiana que, infelizmente, disseminou-se ao ponto de
tornar-se o nirvana almejado a todo espírita; ninguém parece ter notado
que uma reforma faz-se em obra acabada, ou próxima a isto - o Espírito humano
encarnado na Terra está bastante distante de encontrar o potencial máximo
manifesto por sua natureza, com o agravante de se especular para a tênue
possibilidade de, um dia, encontrar termo o progresso espiritual. Mas aqui, já
é questão para o futuro - por hora basta examinar alguns pontos aberrantes de
suas mais célebres obras, e quão foram incisivas as ideias esotéricas e
teosóficas sobre seu pensamento.
3. Passes e Radiações
Lançado em meados do século
passado, foi amplamente adotado, em grande parte pela escassez de obras que tratavam
da fluidoterapia - infelizmente impingiu aqueles que seguiram-lhe as lições o
ridículo dos passes padronizados, um misto de técnicas outrora utilizadas pelos
magnetizadores e mesmerizadores que precederam ao Espiritismo, associada a
teoria hindú dos chacras. O desassossego advindo da observância ao gestual,
cores e tempo, aliado ao suposto conhecimento de anatomia e fisiologia
necessários a prática de tal metodologia obstaram que se conhecesse a teoria
espírita acerca dos fluidos, e sua aplicação por meio dos passes. Vejamos
alguns trechos significativos para o artigo presente, acompanhados de oportunos
e necessários comentários:
“Cada homem, cada ser vivo é
um centro atrativo dessa força (magnetismo animal), uma usina capaz de
proceder à sua captação, armazenamento e distribuição aos doentes, bastando
para isso o desejo sincero e humilde de exercer esse dignificante sacerdócio de
caridade evangélica, segundo os ensinamentos d'Aquele que por todos se
sacrificou, para salvá-los.” - Introdução a 1º edição da Passes e Radiações
(1950) _ bastasse apenas o desejo e todo homem bem intencionado curaria qual
Jesus em sua melhor forma, decretando a falência dos sistemas de saúde do
mundo, e o fim das profissões médicas e terapêuticas; é preciso mais para curar
de modo proficiente; claro, exclusos aqui os médiuns curadores, os quais são
objeto de estudo em O Livro dos Médiuns. No mais, o que se destaca é a
sentença segundo a qual Jesus sacrificou-se para salvar a humanidade,
demonstrando que as correntes de pensamento ocultistas as quais se expôs Armond
possuem bases bem estabelecidas no cristianismo místico do medievo, em nada
aparentado ao Espiritismo. Porém, que se note, a Doutrina dos Espíritos não
concebe que Jesus haja se sacrificado para salvar quem quer que seja, seja lá
de que perigos, questão a que mais abaixo será tangida em profundidade.
“(o corpo físico) É formado de
matéria densa (energia condensada a vários graus), apresentando uma forma
tangível, modelada sobre um arcabouço resistente e flexível rodeado, no etéreo,
de uma aura característica, variável para cada indivíduo, visível no plano
hiperfísico, e comumente limitada a uns poucos centímetros a partir da
superfície do corpo.” - Primeira Parte Teórica 1 O Santuário do Espírito
Encarnado _ toda a influência teosófica
se registra nestas poucas linhas. O que ele aponta no trecho refere-se a
atmosfera fluídica individual, que Allan Kardec apontou como a irradiação do
perispírito? O arcabouço sobre o qual o corpo físico é modelado é o
perispírito, este mesmo que no etéreo é rodeado por uma aura? E o que é o
etéreo e o plano hiperfísico? O linguajar empregado é grotesco, maculando a
feliz simplicidade do Espiritismo, levando confusão ao leitor. Mas, o que mais
fere aos olhos do estudioso é a afirmação de a matéria constitutiva do corpo
físico ser composta a partir de energia condensada - isto assim,
irresponsavelmente enunciado, é contrário ao Espiritismo, pois não atesta o
Elemento Material como princípio doutrinário; e repisa o erro de sempre, demonstrando
não saber, também Armond, a diferença entre energia e matéria, de um ponto de
vista exclusivamente espírita. Acerca do que a Física trata, buscaremos em
futuro artigo abordar dada a necessidade da temática e da enorme confusão
existente.
“(o Sistema Respiratório) Absorve
da atmosfera não somente o oxigênio necessário, como também o fluido vital, que
fornece ao organismo a indispensável energia.” - Primeira Parte Teórica 1 O
Santuário do Espírito Encarnado _
afirmar que a absorção de fluido vital se dá por intermédio de um dos
sistemas do corpo humano seria considerar a este tão físico quanto os gases
componentes da atmosfera, o que não pode ser. O fluido vital não sendo mais que
uma transformação do perispírito, e este do fluido cósmico universal, com ele
interage por toda a extensão do ser, não mais pelos pés que através da cabeça.
Nota-se contudo, no seguimento deste trecho, que o Comandante possui uma visão
particular da constituição do perispírito, o que justifica sua asserção.
“As glândulas hipófise e
pineal são pontos sensíveis das intervenções espirituais na vida anímica do
homem encarnado, sobretudo no desenvolvimento de suas faculdades psíquicas. A
glândula pineal possui uma aura, uma concreção dourada em torno, que apresenta
os setes matizes das cores básicas. Esta aura não existe na criança antes dos
sete anos (normalmente), nem nos idosos com arteriosclerose intensa e nos
deficientes mentais, o que prova que essa glândula esta ligada à vida mental
dos homens. É o órgão principal da espiritualidade e da consciência das coisas
tanto externas quanto internas.” - Primeira Parte Teórica 1 O Santuário do
Espírito Encarnado _ e se perpetua o mito, porfiando a mediunidade
incompreendida como o processo fisiológico que é, e não como um dom radicado num
órgão; ou não será exatamente isto que afirma Armond aqui? Tal tese tem suas
origens nas culturas do Oriente, ao gosto do autor, em que o terceiro olho, ou
a terceira visão, identificada como a visão espiritual é imageticamente
representada por um sacerdote com um olho do centro da fronte. Para o
hinduísmo, uma das fontes da Teosofia, o terceiro olho é um Ajna, ou chacra
localizado a altura da testa, estando ligado a intuição e a percepções sutis da
consciência. Helena Blavatsky em seu livro A Doutrina Secreta, por
exemplo, registra acerca da glândula pineal o seguinte: “Também chamada de
Terceiro Olho. (...) É um órgão misterioso que, em outros tempos, desempenhou
papel importantíssimo na economia humana. Durante a terceira Raça e no início
da quarta, existiu o Terceiro Olho, órgão principal da espiritualidade no
cérebro humano, local de gênio, o 'Sésamo' mágico, que, pronunciado pela mente
purificada do místico, abre todas as vias da verdade para aquele que sabe
usá-lo. Um Kalpa1 depois, devido ao gradual desaparecimento da
espiritualidade e do aumento da materialidade humanas, substituída a natureza
espiritual pela física, o Terceiro Olho foi se 'petrificando', atrofiando-se
gradualmente, começou a perder suas faculdades e a visão espiritual tornou-se obscurecida.
O 'Olho Divino' já não existe; está morto, deixou de funcionar. Porém, deixou
atrás de si um testemunho de sua existência e este testemunho é a glândula
pineal que, com os novos progressos da evolução, voltará a entrar em plena
atividade.” - parece familiar quanto a tudo que o estudioso do Espiritismo
veio encontrar acerca deste organelo fincado no cérebro? Pois esta similaridade
não é uma coincidência fortuita. Apenas cinco anos antes, o Espírito
pseudo-sábio André Luiz viera trazer Missionários da Luz ao mundo,
tratando neste da glândula pineal por tais mesmos paradigmas; e pouco mais de
cinco anos após Passes e Radiações, Lobsang Rampa encanta o mundo ao
lançar A Terceira Visão - ao que parece, esta temática estava na moda em
meados do século passado. Mas, que não se engane o aprendiz, pois a procedência
é a mesma para todos, a ancestral cultura oriental dos vedas do hinduísmo. Ou
seja, nada tem que ver com o Espiritismo.
“O corpo físico não gera o
fluido vital ou a força promotora da atividade orgânica, entretanto recebe-o
dos centros de força do perispírito e absorve-o do meio em que vive por
intermédio da pele, dos alimentos e da respiração. Em todos os casos o sistema
nervoso é o veículo de recebimento dessas forças e, além de armazená-las em
órgãos apropriados (plexos e centros de força), finalmente as distribui
oportunamente a todos os órgãos internos, (...)” - Primeira Parte Teórica 1
O Santuário do Espírito Encarnado _ surge então, pela primeira vez a menção a
plexos e centros de força. Novamente e uma vez mais, é atribuir uma
materialidade ao perispírito que este não possui, proceder que fora já apontado
de outros autores, especificamente do Espírito André Luiz que, outrossim, impôs
um paradigma materialista ao corpo fluídico, conferindo a este um aspecto
orgânico do qual é destituído. Plexos são entrelaçamentos de nervos do sistema
nervoso periférico e autônomo, e para os aderentes, correspondem ao centros de
força presentes no perispírito - uma total bobagem; não para Armond que, no início
do capítulo seguinte emenda:
“No perispírito, o sistema
nervoso liga-se através dos plexos e gânglios, a uma série de centros de força,
denominados chacras na literatura oriental, sobre os quais devemos aqui dizer
mais algumas palavras, tendo em vista sua importância para o trabalho dos
passes, apesar de não terem sido citados por Kardec na Codificação, por
conveniência de programação.” - Primeira Parte Teórica 2 Centros de Força _
é interessante e desanimador testemunhar que certas informações surgem a partir
das conveniências as mais oportunas; então Allan Kardec nada registrou nas
obras da Codificação acerca dos chacras e dos centros de força por conveniência
de programação? Ora, pois que o sr. Armond encontra-se na obrigação de
provar tal afirmação; e mais, o dever de por a vista de todos esta programação,
sim, pois tal afirmação apenas leva a concluir que o ex-militar conhece os
desígnios misteriosos atribuídos aí aos Espíritos da Codificação. Para olhos
treinados, as entrelinhas deixam entrever a verdade - afirma-se aqui que o
Espiritismo é uma doutrina inconclusa, e sob tal farsa toda sorte de
invencionices e interpolações são aceitas, buscando embasar todos os mais
díspares autores e suas teses, ideias e conceitos. O restante do capítulo é uma
salada tão indigesta que separar seus diversos elementos para exame resultaria
em triplicar-lhe a extensão original, labor dispensado, uma vez que o nível de
obscurantismo arremete a níveis abismais. Convém, todavia resumir o que se
segue ao fato de o autor enumerar os chacras, classificá-los e explicar-lhes a
ação - tudo eivado por um vocabulário abominável que transtorna em asco e
resulta em esgotamento; tudo muito distante da limpidez da linguagem de Allan
Kardec.
Armond não se entende com o uso
equivocado do termo energia, repercutindo a cada passagem esse erro crasso que
magoa os sentidos tanto quanto a inteligência. Em semelhante medida demonstra
um profundo desconhecimento do fluido e das suas inumeráveis transformações,
reiterando uma série de expedientes eminentemente materiais com o fim de
manipulá-los - é o mesmo que afirmar que velas acesas atraem Espíritos; não são
exercícios de respiração, ou qualquer dos sistemas ou órgãos do corpo físico
que capacitarão alguém a manipular fluidos em benefício próprio, pois é o
pensamento, a qualidade deste, que determinará a absorção de fluidos salutares,
tanto ou mais em relação a eficácia que se almeja por meio da fluidoterapia. O
capítulo 8 da obra, intitulado Estudo dos Fluidos é uma afronta ao
Espiritismo, e evidencia os limites cognitivos de Armond. O restante da obra é
uma tortura que o leitor busca antever o fim urgentemente - uma série de
conceitos os mais estapafúrdios que, por certo, catalogam ideias absolutamente
equivocadas acerca do fluido, hauridos de toda sorte de fontes pregressas dos
mais diversos experimentadores e pesquisadores ao longo da história, o que
poderia resultar numa coleção coesa e historiograficamente bem urdida. O que se
encontra, no entanto, é uma espécie de almanaque místico de algum mago ou
alquimista medieval. Não é apenas afrontoso que indivíduos que se afirmaram e
afirmam espíritas hajam adotado tal caderno de insanidades para vir aplicar a
fluidoterapia, é ainda patético que alguém haja seguido os caprichos do autor,
que na qualidade de espírita é um eminente orientalista e teósofo.
Não resta dúvida, todavia, que
Edgard Armond era cônscio do carisma e penetração de sua obra, ao que ele
expressou na Introdução a 2º edição desta, tratando de sua repercussão: “(...);
como também de disciplinar e unificar as práticas doutrinarias da Casa,
sobretudo os passes, que o arbítrio desordenado e as infiltrações de correntes
estranhas levavam muitas vezes ao ridículo, ao descrédito, atentando
negativamente contra a seriedade e a eficiência científica deste precioso
elemento auxiliar de reequilíbrio material e psíquico.”
4. O Redentor
A começar pelo título da obra, o
termo redentor refere-se a Jesus, e embora os espíritas possam lhe atribuir
significados próprios, a acepção original afirma este como o salvador da
humanidade, o que veio sacrificar-se para a todos salvar. Aí o termo já não
pode ser aceito diante da Doutrina dos Espíritos, afinal algo apenas pode ser
salvo diante de uma potencial perda - ora, o Espiritismo não aceitando um modelo
cósmico senão progressivo para o Espírito, não há como sustentar o conceito da
perdição presente no cristianismo. Nenhum Espírito perdendo-se, nenhuma
salvação se faz necessária, menos ainda que alguém venha purgar os pecados da
humanidade como um cordeiro em holocausto. Esta parece ser uma escolha para
título que reflete a visão pessoal de Armond acerca do papel de Jesus, como
pudemos constatar anteriormente, na diminuta passagem da introdução de seu
livro Passes e Radiações. A este ele vem afirmar, na introdução de O
Redentor:
“A tarefa messiânica era
sanear a Terra de suas iniquidades, oferecer a humanidade diretrizes
espirituais mais perfeitas, definitivas, redimir os homens e encaminhá-los para
Seu reino divino de luzes e de amor e foi cumprida em todos os sentidos, (...)”
_ para o Espiritismo, todavia, a missão de Jesus era mais prosaica, e se a sua
mensagem ganhou o mundo deveu-se a uma série de fatores alheios a sua
performance, ou mesmo a sua vontade; mas não seria de supor que ele
desconhecesse o que resultaria sua passagem pelos encarnados àquele tempo, a
tanto que afiançou o surgimento do Espiritismo (o consolador prometido).
Tratando em O Evangelho Segundo o Espiritismo de situar o leitor quanto
a alguns caracteres do tempo de Jesus, Allan Kardec trata dos Fariseus, e
acerca destes frente a Jesus concluiu:
“Jesus, que prezava,
sobretudo, a simplicidade e as qualidades da alma, que, na lei, preferia o
espírito que vivifica à letra que mata, se aplicou durante toda a sua missão, a
lhes desmascarar a hipocrisia, pelo que tinha neles encaniçados inimigos. Essa
a razão por que se ligaram aos príncipes dos sacerdotes para amotinar contra
Ele o povo e eliminá-lo.” _ ao lado dos Saduceus, os Fariseus constituíam
uma poderosa força materialista no seio do povo hebreu, e contra eles Jesus
teve os mais marcantes embates registrados nas páginas dos Evangelhos. Em
mensagem recebida espontaneamente em sede da Sociedade Parisiense de Estudos
Espíritas a 2 de fevereiro de 1868, sem que Allan Kardec lhe tenha composto
qualquer ressalva ou complemento, um Espírito resumiu a questão assim: “Moisés
é o tempo passado; o Cristo, o tempo presente; o Messias a vir, que é o amanhã,
ainda não apareceu... Moisés tinha que combater a idolatria; o Cristo, os
fariseus; o Messias a vir terá também os seus adversários: a incredulidade, o
cepticismo, o materialismo, o ateísmo e todos os vícios que acabrunham o gênero
humano...” _ ora, como se constata, sua missão era o enfrentamento aberto
às ideias contrárias ao espiritualismo que àquele tempo contaminavam o povo da
Palestina. Não há cousa alguma, sequer meramente análogo a fazer de si uma
metáfora viva do holocausto empreendido pelas gentes no Templo de Jerusalém;
menos ainda que ele buscasse a cada palavra dita e ação empreendida tanger a
totalidade dos homens de todos os tempos, embora, é preciso ressaltar, ele
certamente tinha plena presciência do seu legado. Imaginar que apenas, e tão
somente por meio de Jesus se alcançará um progresso de monta é desprezar que
suas lições já não se encontrem presentes num sem número de culturas e
correntes filosóficas e religiosas pelos povos da Terra. A defesa de tais
ideias em O Redentor apenas revela os pendores íntimos do autor, mesmo
que para tanto sustente algo contrário a Doutrina dos Espíritos. Acerca disto,
a propósito, tem-se curiosa passagem ainda neste seguimento da obra, que vale
um exame:
“E se nos voltarmos para as
obras de caráter mediúnico, da mesma forma encontraremos inúmeras divergências,
de forma e de fundo, que não levam a maiores certezas. Têm-se, então, a
impressão de que ainda não chegou a época de ser o assunto esclarecido pelos
Instrutores Espirituais que, conquanto se mostrem muitas vezes até mesmo
prolixos na exposição de assuntos doutrinários ou filosóficos, não trazem
maiores esclarecimentos a respeito da parte histórica da vida do Divino
Messias.” _ ao que, mais adiante, na lista de obras que afirma haver
consultado para compor seu livro, registra sucintamente 'diversas obras
mediúnicas'. Ora, inicialmente, não será por intermédio dos Espíritos que
caberá preencher as lacunas quanto aos aspectos historiográficos da vida de
Jesus de Nazaré, ou de qualquer figura ou acontecimento passado; os que assim
almejam se expõem as narrativas disparatadas de Espíritos enganadores e
pseudo-sábios. Em seguimento, é necessário se questionar se, diante das
divergências das obras mediúnicas, que critérios Edgard Armond utilizou na
escolha daquelas que consultou para a composição do texto. Convenientemente ele
os sonega ao leitor, cabendo a este a confiança cega em sua metodologia, seja
qual for. Não é uma atitude muito espírita insuflar tal juízo ao legente.
Edgard Armond dedica todo um
capítulo a tratar da seita dos Essênios, e em apenas um único trecho comete
dois equívocos frente a Codificação: “É sabido que João Batista era essênio,
como essênio eram José de Arimatéia, Nicodemo, a família de Jesus e inúmeros
outros que na vida do Mestre desempenharam papéis relevantes, como também o
próprio Jesus que conviveu com essa seita, frequentando assiduamente seus
mosteiros, enterrados nas montanhas palestinas, onde sempre encontrava ambiente
espiritualizado e puro, apto a lhe fornecer as energias de que carecia nos
primeiros tempos da preparação para o desempenho de sua transcendente missão.”
- já Allan Kardec vem esclarecer em O Evangelho Segundo o Espiritismo
acerca dos essênios: “Pelo gênero de vida que levavam, assemelhavam-se muito
aos primeiros cristãos, e os princípios da moral que professavam induziram
muitas pessoas a supor que Jesus, antes de dar começo à sua missão pública,
lhes pertencera à comunidade. É certo que ele há de tê-la conhecido, mas nada
prova que se lhe houvesse filiado, sendo, pois, hipotético tudo quanto a esse
respeito se escreveu” _ e se escreveria. Afirmando que as pessoas em
derredor de Jesus eram essênios, o Comandante cai em outra falha; o mestre
lionês vem em socorro: “Pelo que concerne a seus irmãos, sabe-se que não o
estimavam. Espíritos pouco adiantados, não lhe compreendiam a missão: tinham
por excêntrico o seu proceder e seus ensinamentos não os tocavam, tanto que
nenhum deles o seguiu como discípulo. Dir-se-ia mesmo que partilhavam, até
certo ponto, das prevenções de seus inimigos. O que é fato, em suma, é que o
acolhiam mais como um estranho do que como um irmão, quando aparecia à família.
João diz, positivamente (7:5), 'que eles não lhe davam crédito'. Quanto à sua
mãe, ninguém ousaria contestar a ternura que lhe dedicava. Deve-se, entretanto,
convir igualmente em que também ela não fazia ideia muito exata da missão do
filho, pois não se vê que lhe tenha seguido os ensinos, nem dado testemunho
dele, como fez João Batista.”
Dentre os livros que Edgard
Armond indica como bibliografia utilizada para a composição de O Redentor,
nenhum deles é espírita, nenhum deles compõe as Obras Básicas ou qualquer outro
dentre os escritos de Allan Kardec - eis pois, porque resulta seu tomo num
equívoco, dos quais qualquer leitor de ânimo há de extrair outras tantas
passagens inexatas, hipotéticas e anômalas. Talvez, a que mais clame seja sua
defesa da existência de um Cristo Planetário. No capitulo 17 da obra, que trata
do batismo de Jesus por João Baptista, Armond explica: “Seja como for,
percebe-se que Jesus, naquele instante - o Filho do Homem, isto é, o que
evoluíra pelas encarnações humanas, o Governador Planetário, em perfeita
sintonia com o Cristo Planetário - reintegrou-se em todo o poder do Espírito
Crístico, da esfera dos Amadores, tornando-se integralmente apto para a
realização de sua sacrificial tarefa na Terra.” _ preciso é esclarecer que
a Teosofia e outras tantas correntes das práticas ocultistas possuem uma
intrincada, para não dizer hermética, base teórica que considera uma hierarquia
de comando cósmica extremamente complexa. Disto nasce a ideia de uma 'faixa
crística' onde, supostamente se localizariam os Cristos, que
respondem a Cristos Planetários, agentes inteligentes enviados diretamente de
Deus, que responderiam pela criação de universos. O interessante é notar a
ideia presente, por exemplo, em A Doutrina Secreta, de Blavatsky, onde
ela expressa o seguinte em dada passagem: “Chame-o por qualquer nome, mas
deixe apenas que os infelizes cristãos saibam que o verdadeiro Cristo de todo
cristão é Vach, a 'Voz mística', enquanto o homem Jeshu foi apenas um mortal
como qualquer um de nós, um adepto mais por sua pureza inerente e sua
ignorância do verdadeiro Mal que pelo que ele tenha aprendido com seus Rabinos
iniciados e os Hierofantes e sacerdotes egípcios, já (àquela época) em rápida
degeneração.” _ nem queira entender o leitor, porque isto é Teosofia, e não
Espiritismo. Esta ideia do Cristo Planetário, alias, está também presente na
obra do Espírito pseudo-sábio Ramatis, que teve por primeiro médium Hercílio
Maes, que até a publicação e repercussão positiva de seus livros se dizia
teósofo.
No capítulo 4 intitulado Controvérsias
Doutrinárias, o autor tece considerações a vários temas, dentre os quais a
natureza do corpo de Jesus; para tanto, erige uma série de perguntas e
respostas, das quais se destaca uma em particular: “P_Mas como, sendo de
carne comum, poderia desmaterializar-se, como fez várias vezes e de forma tão
natural e perfeita, como consta dos Evangelhos? R_Porque tinha um corpo de
carne, sem dúvida, porém de consistência diferente, de densidade muito menor,
de matéria mais pura, de vibração mais alta, adequada a conter um Espírito de
Sua elevada hierarquia; corpo, a seu turno, gerado por um vaso físico
devidamente preparado e selecionado anteriormente ao nascimento, de vibração e
pureza que comportasse Sua permanência em nosso plano grosseiro e impuro.”
_ não é afirmar o mesmo que Roustaing, por outras palavras? E incide em novo
erro, proclamando a superioridade mariana, expressa na pureza da matéria que
comporia seu corpo físico. Acima já transcreveu-se passagem de O Evangelho
Segundo o Espiritismo acerca do proceder de Maria a denunciar-lhe o
progresso espiritual, não tão excelso quanto pintam alguns espíritas que
não abandonaram o ranço católico.
A narrativa de Armond é hábil em
buscar subterfúgios para não adentrar completamente nem as palavras, tampouco
as ações de Jesus, tendo as primeiras sido tratadas em O Evangelho Segundo o
Espiritismo, e as últimas em A Gênese. Mas, ocasionalmente se lhe
escapa ao escrutínio da revisão um ou outro ponto que o expõe; por exemplo, no
capítulo 27, sob o título Outros Lugares, o leitor encontra: “Diz o
Evangelho que efetuou também muitos 'milagres' (...) e duas multiplicações de
pães, que o Espiritismo também pode explicar como condensações fluídicas,
multiplicadas em cadeia, o que, para o Divino Mestre, seria possibilidade
natural.” _ Em A Gênese, Allan Kardec desfere o correto ensinamento
acerca de tal passagem evangélica, erroneamente interpretada ao longo dos
séculos: “O prodígio, no caso, está no ascendente da palavra de Jesus,
poderosa bastante para cativar a atenção de uma multidão imensa, ao ponto de
fazê-la esquecer-se de comer. Esse poder moral comprova a superioridade de
Jesus, muito mais do que o fato puramente material da multiplicação dos pães, que
tem de ser considerada como alegoria.” _ Edgard Armond não leu A Gênese?
Recomenda-se a atitude correta para compreender-se os milagres de Jesus,
ao que convidamos os leitores a não proceder como o ex-militar, e ir por olhos
sobre as obras da Codificação; além, claro, de empreender pelos próprios
esforços um mais atento exame da presente obra, com a certeza de que novos
deslizes surgirão.
5. Mediunidade
A exemplo de Passes e
Radiações, esta obra de mote instrucional descortina-se em real sevicia ao
estudioso do Espiritismo. O tortuoso emprego de linguagem alheia aquela trazida
pelos Espíritos da Codificação e adotada por Allan Kardec, torna a leitura um
enigma a que nenhum dicionário dará solução. Além, obviamente, do emprego dos
termos equivocados de sempre - carma, incorporação, energia, desdobramento,
etc. Mas, o crème de la crème são sempre as divergências das teses,
ideias e conceitos presentes na obra frente a Doutrina dos Espíritos. Exemplos
são abundantes:
“A mediunidade é pois um
fenômeno natural e se realiza em todos os graus da hierarquia da criação, numa
escala que vai do verme aos anjos, tudo e todos reciprocamente se manifestando
e dando testemunho de si mesmos. Assim, Jesus Cristo foi, inegavelmente, o
médium de Deus junto aos homens, manifestando, transmitindo e realizando suas
vontades divinas.” _ a mediunidade se dá em todos os graus da hierarquia da
Criação? Vermes têm mediunidade? É o que preceitua este trecho, ou seria
conclusão apriorística? Porventura se tratasse de outro autor, poder-se-ia
traduzi-lo como metáfora ou símbolo, mas é o Comandante quem compõe tais
frases. Desprovido, no entanto, de qualquer possibilidade de interpretação é a
afirmação acerca de Jesus; quanto a isto, encontra-se em A Gênese as seguintes
passagens acerca do tema: “(...) o médium é um intermediário, um instrumento
de que se servem os Espíritos desencarnados e o Cristo não precisava de
assistência, pois que era ele quem assistia os outros. Agia por si mesmo, em
virtude do seu poder pessoal (...) Que Espírito, ao demais, ousaria
insuflar-lhe seus próprios pensamentos e encarregá-lo de os transmitir? Se
algum influxo estranho recebia, esse só de Deus lhe poderia vir. Segundo
definição dada por um Espírito, ele era médium de Deus” _ antes que
imaginar Edgard Armond havendo de harmonizar-se a algo presente nas Obras
Básicas, é preciso atentar para o fato de que Allan Kardec faz notar que apenas
um Espírito assim definiu Jesus, cuja mediunidade é suposta e
tratada como hipotética, bastando ao leitor constatar o tempo do verbo usado
pelo mestre lionês; aqui sim se pode registrar positivamente por uma expressão
alegórica, jamais literal.
“A muitos, entretanto, ainda
que atrasados em sua evolução e moralmente incapazes, são concedidas faculdades
psíquicas como graça. Não as conquistaram, mas receberam-nas de empréstimo, por
antecipação, numa posse precária que fica dependendo do modo como forem
utilizadas, da forma pela qual o indivíduo cumprir a tarefa cujo compromisso
assumiu, nos planos espirituais ao recebê-la. A isso denominamos mediunidade de
prova.” _ há todo um capítulo dedicado a esta aberração, do qual não se
afirma que uma só linha de seu conteúdo concorde aos postulados da Doutrina dos
Espíritos; mas, fica ao arbítrio do leitor apreciar tal anômalo opúsculo. A
mediunidade, como fizemos notar em artigo passado, é um atributo humano como a
fala e, como tal, seu sinônimo mais perfeito é comunicabilidade; mas a exemplo
de Emmanuel, que deturpando a mediunidade viu em tal característica um castigo,
Edgard Armond lança doutrina própria a tratar deste ponto fundamental do
Espiritismo, mesmo que para tanto venha adulterá-lo.
“As quedas são mais comuns nos
degraus inferiores da escada evolutiva e tanto mais dolorosas e profundas se
tornam quanto maior for o cabedal próprio de conhecimentos espirituais
adquiridos pelo Espírito. 'Estado de evolução' e 'estado de queda' são duas
condições de caráter geral, em que se encontram os Espíritos nas fases
inferiores da ascese. Essas são as condições que dominam no umbral que, como
sabemos, é uma esfera de vida purgatorial, bem como nos planos que lhe são, até
certo ponto, e de um certo modo, imediatamente acima. Quando porém as quedas se
acentuam devido a reincidências de transgressões, elas levam os culposos às
Trevas, esfera mais profunda, de provas mais acerbas, situada abaixo da Crosta.”
_ Edgard Armod oferece sempre um espetáculo soberbo de falhas, equívocos e
conceitos clara e frontalmente opostos aos princípios do Espiritismo. Aqui,
neste trecho em particular, ele prega a involução, que chama espertamente de
queda. E vai além, remetendo o leitor diretamente as obras mais controversas de
André Luiz, aquelas mesmas que couberam a Rafael Ranieri registrar. Certamente
o livro O Abismo causou pungente impressão em Armond, a tal ponto de
fazê-lo compor esta pérola de ignorância espiritual.
“(...) o espírito que fala
transmite a palavra ou o som e as ondas sonoras não atravessam a cortina
fluídica de proteção que separa o perispírito do corpo denso, permanecendo no
campo das atividades do perispírito; tais impressões não são transmitidas aos
órgãos dos sentidos físicos e, por isso, é que o médium tem a impressão de que
ouve dentro do cérebro. (...)” _ cortina fluídica de proteção que separa o
perispírito do corpo denso? Mas que obscenidade é esta? Pior é alegar que o
Espírito ao falar move o ar como quando encarnado podia fazê-lo! É um completo
desconhecimento da natureza perispiritual, do fluido e da mediunidade. Não leu
o Comandante o Ensaio Teórico da Sensação nos Espíritos? O Livro dos
Médiuns? É de tal natureza complexa a torção que ele compôs aqui que se
torna difícil alcançar positivas conclusões acerca do que quis afirmar; pode-se
concluir aí pela defesa da existência de um perispírito orgânico? Sim. Mas ora,
se o som é impedido por esta suposta barreira de alcançar os órgãos do corpo,
como pode ser percebido? Nada disso parece fazer nenhum sentido, sob quaisquer
modos de entendimento aplicado a tal trecho.
“Ballonnement. Adotamos esta
expressão francesa para indicar a sensação de dilatação, estufamento,
inchamento de mãos, pés e rosto do médium, que muitas vezes ocorre antes do
transe. É ainda efeito da exteriorização, do deslocamento do perispírito do
médium dentro do arcabouço físico para ceder lugar, parcial ou totalmente, ao
Espírito comunicante.” _ Incorporação? Bem o sabe o estudioso que o
Espírito não toma o corpo, como se este lhe pudesse conter em seu imo. Mas,
nada sabendo acerca disto Edgard Armond, ele ainda foi capaz de compor um
capítulo inteiro acerca da incorporação. Lamentavelmente.
“Como os animais vivem ao
mesmo tempo no astral e no plano material denso, a visão e a audição captam
impressões desses dois planos: ouvem e veem com facilidade nos dois planos, os
seres encarnados e desencarnados.” _ há todo um seguimento na obra acerca
deste absurdo, do qual já deitamos esforços em elucidar em artigo aqui
publicano em 14 de agosto do ano passado. Embora positivamente os sentidos dos
animais, mais sensíveis que os humanos, percebam a presença de certos Espíritos
que, conscientemente ou não, fazem uso do fluido de algum médium próximo para
serem percebidos ostensivamente pelos primeiros, tais fenômenos não são
mediúnicos. Menos ainda se pode conceber um médium ganindo ou rosnando.
Reiteramos a leitura do artigo supracitado.
E há ainda um sem número de
passagens em que Armond chama a mediunidade sonambúlica de desdobramento, não
compreendendo cousa alguma dos processos sucedidos aí. É mais um soberbo
festival em que o leitor se vê depauperado pelo esforço de atravessar tais
linhas, página após outra em busca de algo que faça sentido, em busca de algo
que minimamente o faça recordar das Obras Básicas em toda sua clareza e
coerência, em vão.
6. Conclusão
E por tais absurdos vaga Edgard
Armond, haurindo das leituras de quando jovem as impressões mais pungentes
acerca da mediunidade, e de outros princípios eles também presentes na Doutrina
dos Espíritos - mas, nem por um instante se engane o desavisado, o aprendiz ou
o estudioso, pois que de tais princípios pouco compreendia, ou compreendia
justamente segundo a literatura teosófica e oriental de seus tempos de moço.
Leitura esta que soergueu as bases de seu pensamento, e dos quais, suspeita-se,
não haja empreendido forças para os revisitar frente a um conhecimento de outra
natureza, qual seja o Espiritismo. Mais perigoso que um Espírito pseudo-sábio
que busca impor suas ideias e sistemas, tendo na figura do médium um
intermediário que lhe pode escudar e a quem pode fascinar, mas ainda assim
traduzir incorretamente seu pensamento, os autores encarnados mais livremente
espargem suas doutrinas; e ainda que tanjam nas mesmas bases do Espiritismo,
estas nenhum parentesco podem lhe guardar, e frequentemente é o que se observa.
Hinduísmo, budismo e outras
culturas e religiões orientais assinalam, por exemplo, a existência da
reencarnação, mas tem seus sistemas próprios para a explicá-la, compreende-la,
o que, pela simples comparação se infere que sonegam informes que a Doutrina
dos Espíritos possui; quando não, aliam a estas crendices, superstições e toda
sorte de especulações que a razão e a lógica recusam, indo por caminho
contrário ao Espiritismo. Judiciosamente pois é que o Espiritismo tem sua
singularidade, que pede e merece respeito tanto quanto qualquer outra corrente
de pensamento ou doutrina que trate das mesmas questões por si abordadas.
O ocultismo, a teosofia e o
esoterismo tem lugar nas mentalidades que lhes são afins, e não há o que
condenar os que por tais vertentes de pensamento escolheram aventurar-se - não
se pode, contudo, avançar os limites que lhes são próprios. A objeção se faz a
alguns indivíduos, dotados de carisma, voz de comando e ascendência psicológica
sobre os demais que, na consideração de tudo conhecer, urdem na efervescência
do ego sistemas doutrinários personalíssimos, espargindo-os sob o balsão do
labor fervoroso em nome de uma religião, de uma doutrina econômica, científica,
política ou filosófica. Não impõe ressalvas inutilmente quem toma com apreensão
tais personagens, e a eles impõe todos os entraves a confiança. Vigiai e
orai, prescreve Mateus; vigiemos portanto.
--
1_Kalpa é o equivalente a 14
Manvantaras, o que é um ano de Manu, ser surgido de Brahma, o Criador, e
responsável pela criação da humanidade, isto segundo o hinduísmo. Para a
Teosofia, o Kalpa é a somatória de tempo universal para os mundos possuidores
de vida, o que equivale, na contagem de tempo terrena, a 4.320.000.000 de anos.
Na lógica da obra de Blavatsky, portanto, a espécie humana teria surgido muito
antes deste tempo, o que não corresponde a realidade geológica e biológica do
planeta; mas este detalhe científico é o tipo de conhecimento tomado como
incorreto ou passível de relativização por ocultistas, esotéricos e teósofos,
procedimento muito comum, ainda, dentre os autores que compõem obras sob o
epíteto de Espiritismo. Acautelemo-nos diante destes.
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