sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Fé raciocinada - porque o Espiritismo não é uma religião?

Religião, como a Filosofia, é um aspecto do conhecimento humano cuja definição não é única nem unânime; pelo contrário, sem limites claros, qualquer novidade pode ser adequada a uma e a outra. Dificilmente algum estudioso se destaca dos demais por ter uma visão mais abrangente da questão, entendendo que conhecimento o é independente de como se busque classificá-lo – mas, para isso, seria preciso realmente uma visão de conjunto algo privilegiada, dada a escassez com que é encontrada entre os homens de intelecto. Para o Espiritismo, contudo, a questão é outra e mais profunda – a recusa em categorizar a Doutrina como uma religião, proceder adotado por Allan Kardec e muitos dos aderentes fidedignos, decorre do pleno conhecimento do que perfaz a base desta e daquela; e porque ambas são antagônicas. O Codificador compreendia a questão e a expôs em diversos e inumeráveis trechos das Obras Básicas, reconhecendo o Espiritismo como o mais oportuno e potente aliado da religião, por que vem somar-lhe a base racional faltante, explicando toda sorte de fenômenos sempre reportados como milagrosos, sempre alocados à condição de mistérios de fé. Nestas oportunidades, acaso fosse o Espiritismo de fato uma religião, não seria compreensível e esperado que Allan Kardec assim procedesse, assim o definisse? A culminância do antagonismo entre a religião e a Doutrina dos Espíritos foi exposta nas Obras Básicas em O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo XIX, itens 6 e 7, por meio do qual o professor expressa:

Nada examinando, a fé cega aceita, sem verificação, assim o verdadeiro como o falso, e a cada passo se choca com a evidência e a razão. Levada ao excesso, produz o fanatismo. (…) A fé necessita de uma base, base que é a inteligência perfeita daquilo em que se deve crer. E, para crer, não basta ver; é preciso, sobretudo, compreender. (…) A fé raciocinada, por se apoiar nos fatos e na lógica, nenhuma obscuridade deixa. A criatura então crê, porque tem certeza, e ninguém tem certeza senão porque compreendeu. Eis por que não se dobra. Fé inabalável só o é a que pode encarar de frente a razão, em todas as épocas da Humanidade.

A perfeita inteligência é a mais completa compreensão possível, acerca daquilo que se deve crer e, em termos espíritas, essa é a crença nos fundamentos da Doutrina dos Espíritos. Para ilustrar a questão, vamos tomar licença para revelar uma experiência pessoal – desde há alguns anos, quando empreendemos sinceros esforços no estudo do Espiritismo, alcançamos o fundamento dos fluidos; mas o que são os fluidos? Compreende-se sua ação nos fenômenos mediúnicos, e na composição do perispírito, mas e quanto ao passe espírita? A transferência de fluidos salutares de um indivíduo para outro, como bem proceder? Havia ainda uma série de questões em aberto, e não apenas o capítulo XIV de A Gênese foi preponderante e necessário, mas um sem número de passagens da Revista Espírita precisaram ser examinados com minúcia e labor – todavia, não estávamos plenamente satisfeitos. Buscamos a rica literatura acerca dos magnetizadores que precederam Allan Kardec e o Espiritismo, desde Mesmer e seus seguidores; a figura extraordinária de Daniel Dunglas Home ofereceu igual quantidade de apontamentos, das mais variadas fontes e vertentes. Ao final destas, um experimento a que este fora submetido atingiu-nos o ânimo com redobrado interesse – fora posta sob um cesto telado invertido uma balança, a mais precisa que havia na segunda metade do século XIX, sob a qual se orientou o sr. Home a impor a mão. O espaço existente entre a mão do médium e o fundo do cesto, e deste para a superfície sensível da balança distava uns bons centímetros, o que não impediu a agulha em registrar um volume de mais de 1 quilograma; volume este invisível para o médium e para o experimentador.


Pedimos licença a um companheiro em cujo local de trabalho dispunha uma balança eletrônica, destas que se encontram amiúde no comércio, para proceder a nossa própria experiência. Dotados de toda a compreensão que nos fora dada pelo estudo atento das Obras Básicas, e pelas leituras de outros tantos livros que relacionavam a existência do fluido, dispusemos a destra 10 centímetros acima do tampo metálico sensível da balança, com o firme propósito de causar alguma reação visível, ostensiva – por meros segundos, os indicadores numéricos passaram a registrar alguma leitura, embaralhando-se em seguida, até desaparecer completamente, indicando o desligamento do aparato, permanecendo assim por algo como 15 segundos, retornando após suas funções normais. Imediatamente fez-me rememorar a relação existente entre o fluido e a eletricidade, aspecto reportado por Allan Kardec e pelos Espíritos da Codificação em vários trechos das Obras Básicas. Teria sido possível causar um dano permanente no aparelho eletrônico? Felizmente este não se verificou. Bastou-nos então, para realizar uma série de experimentos com copos de água a fim de criar substâncias ora salutares, ora deletérias – nossa esposa reportou, em mais de uma ocasião, o sabor medicamentoso das infusões fluídicas que preparamos, as quais sorveu afim de minorar toda sorte de incômodos somáticos. Acaso antes os passes que aplicávamos eram decorrência mais da ação macaqueada de terceiros, passaram então a surtir efeitos muito mais eficazmente. Não fosse o desejo patente de compreender o mais possível o fluido, sua razão de ser e seus efeitos, teríamos ad aeternum uma pendência a resolver, uma lacuna a preencher no aprendizado do Espiritismo, um aprendizado de flagrantes consequências práticas. A fé que moveu-nos durante o experimento com a balança adveio dos resultados práticos colhidos e catalogados não apenas de Allan Kardec, mas por um séquito seleto de  homens animados pelo mesmo desejo de conhecer que nos comocionou até então, e que nos orienta à ação ainda hoje. Este conhecimento pregresso forneceu-nos a base de sustentação da fé, que levou a uma compreensão peremptória da ação dos fluidos.

Seria esta a ação correntemente adotada de parte dos espíritas? Será a fé destes sempre raciocinada? Será que o fato de um sujeito tornar-se espírita, faz com que sua fé seja imediatamente raciocinada? Que procedimentos se podem adotar para consolidar a fé raciocinada do espirita? Ou será que subsiste uma tendência de acreditar, de crer sem compreender, de parte dos espíritas? Será que, amiúde não se assumem como verdades versões, narrativas e conceitos tradicionalmente repetidos, mas que não contam com comprovação? Será que a atitude corrente não é a de crer por que alguém disse, ou por que determinada instituição assim se posicionou? Os aspectos do 'sujeito espírita nacional' são condignos de exame e estudo, o que oportunamente se fará – mas colecionamos um sem número de causos de indivíduos cujo ardor da maturidade espiritual fê-los debater com toda sorte de sacerdotes, fê-los lançar dúvidas às verdades religiosas, seus dogmas e seus mistérios; porém, quando descoberto o Espiritismo, quando lançados neste mundo novo de verdades racionais, vêm se portar tais mesmos como partícipes mansos de um rebanho que aceita bovinamente tudo o que lhes chega a guisa de Espiritismo. Parece uma maturidade incompleta, que questiona o dogma, mas não os símbolos e os sinais, não as instituições e invenções humanas, não a urdidura social e a origem das tradições, não as necessidades frente aos condicionamentos.

A fé raciocinada não deve mover o sujeito apenas para compreender a origem e ação do fluido, por exemplo, mas também e principalmente para conjurar um impacto prático em sua vida, assim como infusões fluídicas podem levar a mitigar sintomas, ou a curar as moléstias que os gerou. Por que casar? Por que ter filhos? Para quê ter animais de estimação? Deve-se ter uma religião? Qual a finalidade de uma religião? Será o Espiritismo uma religião? Por que deve-se confiar nas instruções a esse respeito? Como teria Allan Kardec tratado a questão? Estas e outras indagações mais ilustram os caminhos do pensamento que fideliza-se a fé raciocinada, que não busca crer sem proceder a um exame atento, a um estudo minucioso, a experiência. Um muito bom exercício que qualquer espírita pode realizar é o cotejamento de obras mediúnicas – três livros que lidam com a figura de Jesus de Nazaré podem prestar-se a esse procedimento: O Sublime Peregrino de Ramatis, O Redentor de Edgard Armond, e Os Últimos Seis Dias de Jesus de Jamiro dos Santos Filhos. Que abordagens os autores utilizaram? A quais passagens da vida de Jesus eles se dedicaram? Há semelhança ou discordância entre as obras? Das palavras de Jesus, elas são concordes as explicações encontradas em O Evangelho Segundo o Espiritismo? Das ações de Jesus, elas são concordes as explicações encontradas em A Gênese? Assim como nós outros incorremos em comparar Há 2000 Anos do Espírito Emmanuel aos fatos historiográficos acerca da Roma e da Palestina no século I, o leitor não há de encontrar maiores entraves para executar semelhante tarefa, seguindo a sugestão aqui exposta ou abordando temática própria. Temas como fluido e erraticidade possuem uma literatura vasta, assim como a pluralidade dos mundos habitados, ou a mediunidade, ou ainda os estudos da Física acerca da natureza e origem da matéria; são, enfim, fundamentos em que o Espiritismo se assenta e que deveriam, por princípio, ser do interesse mais caro de todo espírita.

Mas, se a questão abordada é a religião, por que não começar por esta? Em artigos futuros, serão desenvolvidos com maior desvelo tais indagações, depreendendo-se por que outras razões a Doutrina dos Espíritos não é, nem pode ser, uma religião.


sexta-feira, 20 de setembro de 2019

A Condessa Paula

José Herculano Pires avança posteridade adentro no qualitativo de modelo de fidelidade doutrinária espírita, reportado defensor da Doutrina dos Espíritos e outorgado por Emmanuel, o obsessor de Chico Xavier, como 'o metro que melhor mediu Kardec'. Obviamente que, parte significativa do enaltecimento a sua memória e trabalho é judiciosa, mas nem mesmo o avultado, por maiores sejam seu talento literário e sagacidade mental, deve padecer de aceitação passiva – sua obra merece e deve ser revisitada, examinada, criticada, racionalizada. Sem que o proceder seja permitido neste espaço e tempo, há que chamar a atenção, todavia, para o que é conhecido por alguns como a fase mais desairosa de um intelecto privilegiado – a fusão de sua obra a de Chico Xavier; deste período em que se achegou ao médium de Pedro Leopoldo, quando aposentou momentaneamente o espírito crítico pelo qual é sempre lembrado. Uma das obras deste ciclo é O Infinito e o Finito, onde o jornalista e filósofo atreve escrever o seguinte:

Muitas pessoas encontram dificuldades em aceitar as descrições da vida de além-túmulo, dos livros de André Luiz, psicografados por Chico Xavier. Mesmo entre os espíritas, já habituados a tratar dos problemas do 'outro lado da vida', essas descrições encontraram no princípio, e ainda hoje encontram, certa relutância. (…) No tocante às revelações mediúnicas, as descrições de André Luiz não constituem novidade, a não ser quanto ao que trazem de pessoal, da maneira de ver do autor. Já em O Céu e o Inferno, Kardec apresenta descrições semelhantes. Na Revue Spirite, o codificador publicou numerosos relatos de além-túmulo no mesmo sentido.

Para quem no livro Vampirismo chamou André Luiz de neófito empolgado que às vezes emprega em suas obras termos que destoam da terminologia doutrinária e conceitos que nem sempre se ajustam aos princípios espíritas, José Herculano Pires sofreu uma metamorfose digna de nota, sujeitando-se as figuras nefastas do Espírito pseudo-sábio André Luiz e do obsessor Emmanuel. É de se especular do poder da docilidade servil e da humildade mística de Chico Xavier para haverem dobrado o caráter, até então, considerado rijo do jornalista. Ou, como presumem observadores outros, houvera sempre um desejo velado de José Herculano Pires pela ascensão e reconhecimento como escritor, algo que talvez não haja ocorrido na medida de suas expectativas - mal algum faria, portanto, estar atado a um best-seller da categoria do matuto mineiro; ao que, para este, outrossim, não constituiria senão a vantagem de aderir a si a respeitabilidade outorgada ao primeiro graças a reputação de fiel servidor do Espiritismo. Sejam por estas ou outras razões, José Herculano Pires encerra em si a contradição por haver deferido uma obra claramente pseudo-sábia, enquanto a figura de Chico subsiste menos arranhada, ainda que seja o responsável passivo pelos livros destes.

Embora uma pesquisa superficial revele estes fatos biográficos e bibliográficos de José Herculano Pires, alguns autores ou entusiastas das ideias de André Luiz e que tais porfiam na idolatria da personalidade, tomando por irrecusáveis as ideias deste, e de outros mais; assim opera o autor Paulo Neto em sua obra As Colônias Espirituais e a Codificação. Este tomo foi detidamente compulsado nas pesquisas que levaram a composição de rica obra acerca da deturpação da erraticidade empreendida pela ideologia das Colônias Espirituais, de autoria nossa, que um dia será dado a publicação. Até lá, este livro de Paulo Neto constitui material interessante, posto que, apanhando da tradicional autoridade dada a José Herculano Pires, ele busca embasar sua defesa de uma erraticidade materialista. E, a exemplo deste, o autor também buscou nas Obras Básicas do Espiritismo o que não está lá; assim escreve ele:

O que é mais importante na obra O Céu e o Inferno vem agora. Trata-se de uma mensagem assinada pela Condessa Paula, classificada por Kardec entre os Espíritos felizes. Depois de destacar as qualidades morais da Condessa, informando que ela havia falecido aos 36 anos de idade, no ano de 1851, que 'um de seus parentes evocou-a doze anos depois de falecida, e obteve, em resposta a diversas perguntas, a seguinte comunicação.

Procede em seguida a transcrever todo o referido e volumoso fragmento de O Céu e o Inferno, o que não se fará aqui senão em parte, ao que conclui nos seguintes termos:

Fizemos questão de transcrever tudo, porquanto, além das 'moradias aéreas', a Condessa informa outras particularidades da vida espiritual. Aqui, então, podemos afirma com segurança, que na Codificação tem, sim, aquilo que alguns confrades querem combater como se não fosse doutrinário.

Quando José Herculano Pires atesta que em O Céu e o Inferno há descrições semelhantes àquela das obras do Espírito André Luiz, não é possível saber a que se refere, uma vez que examinada a obra da Allan Kardec não é possível encontrar cousa algum análoga as Colônias Espirituais; o detalhe aqui é que o jornalista empreendeu esforços para lançar sua própria tradução das Obras Básicas, além da Revista Espírita – para Paulo Neto, contudo, a resposta a esta referência é a Condessa Paula. Um trecho em particular da mensagem de tal nobiliárquico Espírito necessita ser transcrito:

Tendes razão, amigo, em pensar que sou feliz. Assim é, efetivamente, e mais ainda do que a linguagem pode exprimir, conquanto longe do seu último grau. Mas eu estive na Terra entre os felizes, pois não me lembro de haver aí experimentado um só desgosto real. Juventude, homenagens, saúde, fortuna, tudo o que entre vós outros constitui felicidade eu possuía! O que é, no entanto, essa felicidade comparada à que desfruto aqui? Esplêndidas festas terrenas em que se ostentam os mais ricos paramentos, o que são elas comparadas a estas assembleias de Espíritos resplendentes de brilho que as vossas vistas não suportariam, brilho que é o apanágio da sua pureza? Os vossos palácios de dourados salões, que são eles comparados a estas moradas aéreas, vastas regiões do Espaço matizadas de cores que obumbrariam o arco-íris? Os vossos passeios, a contados passos, a que se reduzem, comparados aos percursos da imensidade, mais céleres que o raio?

Em diversas comunicações registradas e catalogadas por Allan Kardec, seja em O Céu e o Inferno, seja nas milhares de páginas dos doze volumes da Revista Espírita, o professor lionês, quando ante um Espírito que, a exemplo da Condessa Paula possui progresso tal que o relaciona aos Espíritos de escol, sempre prodigalizou indagar da condição e destino deste – e sempre um mundo de maior progresso é aludido, seja por este seja por aquele. Júpiter mesmo é apontado amiúde por Allan Kardec, como exemplo de mundo superior, para onde vão os Espíritos de maior progresso. Segundo parece, a questão aqui é simplesmente de saber interpretar o que está escrito – a Condessa Paula descreve, por meio de analogias, ou seja, concebendo uma relação de semelhança entre cousas ou fatos distintos, tudo quanto sente e vê, o seu estado enfim. Não se escusa um certo lirismo próprio do Espirito, de fato, mas não se arrolaria tal mensagem ao ordinário da literatura mediúnica própria das obras que defendem as Colônias Espirituais. Quando ela questiona que 'os vossos palácios de dourados salões, que são eles comparados a estas moradas aéreas, vastas regiões do Espaço matizadas de cores que obumbrariam o arco-íris?', ela cria uma correspondência entre o local em que está e aqueles próprios da Terra; mas, porque concluir forçosamente tratar-se de uma Colônia Espiritual, ou algo de mesma natureza, posto que a equivalência maior está para com as moradias aéreas existentes em Júpiter? A mesma pareidolia se verifica quanto a mensagem encontrada em O Evangelho Segundo o Espiritismo, em seu capítulo XI, item 11, intitulada O Egoísmo, assinada apenas por Emmanuel – grande número de 'espíritas' credita a mesma ao obsessor de Chico Xavier, quando em realidade é de autoria de Emmanuel Swedemborg, este sim Espírito presente desde o princípio na Codificação do Espiritismo.

Contudo, uma observação atenta atesta que o nobre Espírito apanha de uma referência conhecida ao seu interlocutor, qual seja um palácio como exemplo de moradia suntuosa e de grandes dimensões, para buscar revelar o local onde erra, ou seja, um espaço multicolorido de enorme extensão – mas, o restante de sua mensagem dá a chave para se compreender o destino da jovem fidalga doze anos após seu decesso; assim ela expressa-se:

As ocupações, posto que isentas de fadiga, revestem-se de perspectivas e emoções variáveis e incessantes, pelos mil incidentes que se lhes filiam. Tem cada qual sua missão a cumprir, seus protegidos a velar, amigos terrenos a visitar, mecanismos da natureza a dirigir, almas sofredoras a consolar; e é o vaivém, não de uma rua a outra, porém, de um a outro mundo; reunimo-nos, separamo-nos para novamente nos juntarmos; e, reunidos em certo ponto, comunicamo-nos o trabalho realizado, felicitando-nos pelos êxitos obtidos; ajustamo-nos, mutuamente nos assistimos nos casos difíceis. Finalmente, asseguro-vos que ninguém tem tempo para enfadar-se, por um segundo que seja.

Eis a descrição de um Espírito feliz a errar pela eternidade - 'é o vaivém, não de uma rua a outra, porém, de um a outro mundo'. Não é de subtrair a ideia que faz das Colônias Espirituais cidades que, como tal, possuem seus logradouros, avenidas e ruelas; a Condessa Paula já não mais caminha por tais paragens terrestres, pois o pensamento a leva percorrer os mundos do firmamento infinito, com a intimidade e a familiaridade de quem atravessa os cômodos da própria residência. É a paga pelo progresso alcançado – um universo sem portas, cuja vastidão é convidativa e a acolhida é a de Deus por intermédio dos Espíritos familiares. Em ensaios previamente postados aqui, estas questões já foram tangidas e repisadas, para que não falte ao leitor subsídios para compreender a erraticidade qual prescrita pelo Espiritismo; nestes tempos revisionistas, é sempre necessário manter a vigília para que o erro não persista, para que a Doutrina dos Espíritos não seja conspurcada pela ação de autores como Paulo Neto e José Herculano Pires. Qual sejam suas motivações, as consequências de suas obras apenas diminuem o Espiritismo, eivando seus fundamentos com ideias aberrantes que, no âmago, constituem a expressão de um materialismo oriundo dos atavismos de eras ancestrais.

O Cosmo é muito maior do que pregam os autores aqui abordados, e a Condessa Paula vem dar seu contributo ao Espiritismo para expô-lo em toda sua beleza e magnitude.
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A nobre ao lado é Caroline Esterházy, Condessa de Galántha, amiga e musa do compositor Franz Schubert; nascida em Pressburg, outrora Reino da Hungria, atual Bratislava na Eslováquia, morreu em 1851, a exemplo da Condessa Paula, cuja identidade prossegue uma completa incógnita, apesar dos esforços empreendidos para descobrir a mulher por trás da mensagem. Certamente que sua identidade fora resguardada por Allan Kardec, ainda que por razões que nos escapam. Caroline aqui está para ilustrar como poderia parecer-se a Condessa Paula, com as vestimentas e o penteado próprios da primeira metade do século XIX. Cremos que, por haver sido nobre e abastada, a Condessa Paula possua registros relativamente precisos de sua passagem pela Terra, e até mesmo algum retrato pintado n'algum museu ou parede da residência de algum descendente, o que chama à pesquisa.

sábado, 14 de setembro de 2019

Kardec - um filme


Wagner de Assis dirigiu Nosso Lar, o que é um mau sinal para a cinebiografia de Allan Kardec – arrolado a categoria genérica das ‘cousas do Espiritismo’, a obra de André Luiz e o Espírito missionário do professor Rivail acabam se igualando numa mistura homogênea, perfazendo um simulacro de Espiritismo em sua expressão prática nacional – o que é chamado ordinariamente de movimento espírita brasileiro. E o diretor e roteirista, a despeito de suas capacidades como tal, apenas toma partido deste simulacro, dando-lhe um eco cinematográfico de grande visibilidade. Nosso Lar não deveria existir como livro, menos ainda em peça de teatro e filme – mas, por que haveria de ser relevante nossa opinião a respeito? Em prejuízo a fidelidade doutrinária, não serão tais filmes que darão sobrevida ao equívoco; há dezenas de lançamentos anuais de obras literárias de origem mediúnica que alimentam fartamente a confusão.

Num sábado qualquer e de espírito pronto, fomos assistir ao filme – as questões relativas aos aspectos técnicos da obra são o que mais se destacam positivamente, afinal a direção de arte é digna e convence em grande parte, tanto quanto a fotografia. Esta, todavia, chama a atenção em algumas cenas externas em que a luz natural parece ocre demais, como se uma lâmpada alaranjada houvera substituído o Sol. Sempre defendemos que o interprete definitivo de Allan Kardec seria o ator Paulo Goulart, infelizmente falecido em 2014; a ideia de vê-lo na pele do professor Rivail é hoje artigo da imaginação. Mas, Leonardo Medeiros é esforçado, tanto quanto o restante do elenco – o roteiro não ajuda, porém, e as falas ditas qual se escritas por um William Shakespeare desprovido de inspiração chamaram a atenção da crítica. De fato, acaba por emprestar um aspecto documental as cenas, parecendo um desses filmes de baixo orçamento feitos para a TV, e não uma superprodução destinada as salas de cinema.

Contudo, o que de fato começou a incomodar no filme é o retrato construído da protagonista, que a Sra. Anna Blackwell, a primeira tradutora para o inglês das obras espíritas de Allan Kardec, assim definiu:

Pessoalmente Allan Kardec era de estatura média. Compleição forte, com uma cabeça grande, redonda, maciça, feições bem marcadas, olhos pardos, claros, mais se assemelhando a um alemão do que a um francês. Enérgico e perseverante, mas de temperamento calmo, cauteloso e não imaginoso até a frieza, incrédulo por natureza e por educação, pensador seguro e lógico, e eminentemente prático no pensamento e na ação. Era igualmente emancipado do misticismo e do entusiasmo. Grave, lento no falar, modesto nas maneiras, embora não lhe faltasse uma certa calma dignidade, resultante da seriedade e da segurança mental, que eram traços distintivos de seu caráter. Nem provocava nem evitava a discussão, mas nunca fazia voluntariamente observações sobre o assunto a que havia devotado toda a sua vida, recebia com afabilidade os inúmeros visitantes de toda a parte do mundo que vinham conversar com ele a respeito dos pontos de vista nos quais o reconheciam um expoente, respondendo às perguntas e objeções, explanando as dificuldade, e dando informações a todos os investigadores sérios, com os quais falava com liberdade e animação, de rosto ocasionalmente iluminado por um sorriso genial e agradável, conquanto tal fosse a sua habitual seriedade de conduta que nunca se lhe ouvia uma gargalhada. Entre as milhares de pessoas por quem era visitado, estavam inúmeras pessoas de alta posição social, literária, artística e científica. O Imperador Napoleão III, cujo interesse pelos fenômenos espíritas não era mistério para ninguém, procurou-o várias vezes e teve longas palestras com ele nas Tuileries, sobre a doutrina de ‘O Livro dos Espíritos’.


Duas ocasiões no filme chamam a atenção – quando recebe mensagem mediúnica ameaçadora, torna-se paranoico e acovardado, tentando impedir mesmo que Amélie (Sandra Corveloni) atenda a porta de casa; em outro momento, tomado por inseguranças e carente da aprovação de seu trabalho, recebe Ermance Dufaux e seu pai em sua casa, acabando com esta impondo-lhe a mão sobre o peito em plena prática psicofônica. A cena toda acabou por vencer qualquer ânimo de nossa parte por manter plena a atenção diante do que se passava na tela – as suas reações ao Auto de Fé de Barcelona apenas somaram para vislumbrar com insistência ao relógio, ansiando pelo fim da projeção. Nem vagamente alguém que fora descrito com feições germânicas e uma personalidade fria, cautelosa, calma e segura passaria por aquela figura interpretada por Leonardo Medeiros – reitera-se que o problema não está na interpretação, mas no que o roteiro exige do ator, na composição do ethos da personagem, ou seja, o conjunto das características que compõem a personalidade deste.

Como se reconhece, pelos frutos, a árvore que os gerou, pelas Obras Básicas se ponde conhecer Allan Kardec, acrescendo-lhe o adjetivo de homem eminentemente cerebral; alguém que fora descrito, ainda, pelo astrônomo Camille Flammarion em discurso proferido diante de sua tumba como dotado de razão reta e judiciosa, o bom-senso encarnado. O professor Rivail é uma figura cuja distância temporal e escassez documental dificultam o retrato, cuja personalidade o torna a mais improvável das personagens a serem abordadas pela ficção, ainda mais na condição de protagonista – uma personalidade à pouco retratada pelo cinema que poderia ser um modelo mais próximo de Allan Kardec é a de Neil Armstrong no filme O Primeiro Homem. Interpretado ali por Ryan Gosling, o astronauta é frio, distante, evasivo até, preferindo chorar a morte da filha na solidão e recolhimento oculto de um gabinete. O Codificador é um sujeito que aí oferece possibilidades mais interessantes, a de representar um homem de intelecto privilegiado desvendando um ramo de conhecimento todo novo – alguns críticos mesmo se ressentiram disto; com um diretor mais habilidoso, esta poderia ser uma boa maneira de mostrar um cético de pensamento livre sendo levado, por esforços próprios, a uma descoberta que o converte a um ramo de saber até então oculto.


Muitas passagens do filme reinterpretam em falas diversas passagens das notas de Allan Kardec presentes em Obras Póstumas, e outras mais das Obras Básicas – uma em específico, quando rememora a mensagem do Espírito da Verdade acerca dos escolhos decorrentes de aceitar a missão de codificar o Espiritismo, o filme se aproveita desta para buscar novamente imprimir pela insegurança alguma humanidade a personagem, como se a personalidade sistemática do Codificador não bastasse para tanto. A nota anexa a transcrição da mensagem mediúnica é a seguinte:

Escrevo esta nota a 1º de janeiro de 1867, dez anos e meio depois que me foi dada a comunicação acima e atesto que ela se realizou em todos os pontos, pois experimentei todas as vicissitudes que me foram preditas. Andei em luta com o ódio de inimigos encarniçados, com a injúria, a calúnia, a inveja e o ciúme; libelos infames se publicaram contra mim; as minhas melhores instruções foram falseadas; traíram-me aqueles em quem eu mais confiança depositava, pagaram-me com a ingratidão aqueles a quem prestei serviços. A Sociedade de Paris se constituiu foco de contínuas intrigas urdidas contra mim por aqueles mesmos que se declaravam a meu favor e que, de boa fisionomia na minha presença, pelas costas me golpeavam. Disseram que os que se me conservavam fieis estavam à minha soldada e que eu lhes pagava com o dinheiro que ganhava do Espiritismo. Nunca mais me foi dado saber o que é o repouso; mais de uma vez sucumbi ao excesso de trabalho, tive abalada a saúde e comprometida a existência. Graças, porém, à proteção e assistência dos bons Espíritos que incessantemente me deram manifestas provas de solicitude, tenho a ventura de reconhecer que nunca senti o menor desfalecimento ou desanimo e que prossegui, sempre com o mesmo ardor, no desempenho da minha tarefa, sem me preocupar com a maldade de que era objeto. Segundo a comunicação do Espírito de Verdade, eu tinha de contar com tudo isso e tudo se verificou. Mas, também, a par dessas vicissitudes, que de satisfações experimentei, vendo a obra crescer de maneira tão prodigiosa! Com que compensações deliciosas foram pagas as minhas tribulações! Que de bênçãos e de provas de real simpatia recebi da parte de muitos aflitos a quem a Doutrina consolou! Este resultado não mo anunciou o Espírito de Verdade que, sem dúvida intencionalmente, apenas me mostrara as dificuldades do caminho. Qual não seria, pois, a minha ingratidão, se me queixasse! Se dissesse que há uma compensação entre o bem e o mal, não estaria com a verdade, porquanto o bem, refiro-me às satisfações morais, sobrelevaram de muito o mal. Quando me sobrevinha uma decepção, uma contrariedade qualquer, eu me elevava pelo pensamento acima da humanidade e me colocava antecipadamente na região dos Espíritos e desse ponto culminante, donde divisava o da minha chegada, as misérias da vida deslizavam por sobre mim sem me atingirem. Tão habitual se me tornara esse modo de proceder, que os gritos dos maus jamais me perturbaram.

Parece-nos claro que não obstante toda campanha em contrário, toda a tribulação, a saúde física de Allan Kardec sofreu mais que seu desejo de chegar a um propósito – laborou para a morte, abreviou a própria existência para alcançar um objetivo; e tão certo são suas próprias palavras para descrever um estado de espírito inabalável quanto a lógica simples que não pode conceber um intelectual de meia idade hesitante, inseguro, acovardado frente a um desafio mental de tal monta – nesta altura da vida, ou se aceita ou se recusa, ou é fácil ou simplesmente impossível. Todo o processo intelectivo exigido do professor Rivail, certamente, não constituiu per si o maior ou mais truncado embaraço; na qualidade de Espírito missionário, possuía as ferramentas para a execução da tarefa. O filme peca nesta retratação, ficando muito aquém do biografado. E nisto se concentra o seu malogro. Allan Kardec merece mais.


sexta-feira, 13 de setembro de 2019

O vídeo de Pondé


Detratores. No passado quanto no presente cabe ao espírita defrontar com estes, investidos sempre dos mesmos argumentos e da mesma presunção – nos dias que correm, contudo, a singularidade dos tempos pelos quais avança a nação brasileira, eventualmente, pode trazer alguma novidade. Velhas fórmulas e velhos sistemas não têm funcionado mais para certo extrato social – as disciplinas do conhecimento humano são complexas e o tempo para estudá-las é escasso; o sacerdote já não vem ao encontro de uma maturação de alma que pede mais, mas prossegue com o empenho minguado de sempre. Em meio a polarização política e ideológica, os discursos se perdem no vazio do óbvio, numa guerra inane entre o politicamente correto e o incorreto – mas os tempos repudiam a isenção, pedem, exigem a tomada de posição, seja ela qual for. Os líderes da nova vanguarda do pensamento usurpam a importância clerical e falam dos púlpitos da nação a um rebanho cujos indivíduos se creem mais inteligentes que seus pares. Em um país de analfabetos funcionais este é o novo êxtase religioso. No grande mercado midiático o sujeito deve escolher seu líder, seu oráculo, seu guru, aquele a cujas palavras dará eco – Mário Sergio Cortela, Clóvis de Barros Filho, Augusto Cury, Leandro Karnal, Luiz Felipe Pondé, Olavo de Carvalho, Marco Antonio Villa ou qualquer outro dentro deste espectro.

Luiz Felipe Pondé é o filósofo do politicamente incorreto, da crítica ao simulacro da inteligência e bondade, desta grande máscara social que todos buscam vestir, da grande demagogia do homem que pratica a forma mais débil de desonestidade – aquela impingida contra si mesmo. Além de lecionar na Academia, filosofa em artigos para jornais e livros – seu O Guia Politicamente Incorreto da Filosofia, uma de suas obras de maior vendagem, possui um começo promissor, mas suas bravatas acabam por resvalar na obviedade, tornando-se estanques pouco após a metade do livro, redundando numa experiência de leitura estétil. Nas entrelinhas de suas provocações filosóficas há um prazer indisfarçável, como se as dirigisse aos filhos bem-nascidos da nação, da qual se compõe por certo, a massa de seus alunos – pessoas que tem horror a ideologia de direita, que vertem suores diante de um discurso contrário ao aquecimento global, tem ódios intestinos de quem usa a palavra poetisa ao invés de poeta, etc. Imagina-se que este público, provavelmente, se sinta ofendido com este exercício de sagaz inventividade filosófica levada a efeito pelo pensador de cachimbo; Olavo de Carvalho também aprecia um bom discurso regado a tabaco, e corriqueiros palavrões. Pondé abre mão destes no entanto, mantendo a placidez entre um trago e outro, fazendo do coloquialismo discursivo uma prática menos prazerosa que necessária, afinal, o publico precisa entender o que lhe passa pela cabeça entre as listas de pensadores que sustentam seu patrimônio intelectual.

Além dos muitos compromissos que o fazem uma figura sempre presente nos veículos de mídia, ele mantém um canal no Youtube, e foi neste que a 14 de setembro de 2017 baixou um vídeo sob o título O Espiritismo é uma filosofia respeitada pelo mainstream filosófico? - para evitar dissabores próprios a sempre complexa questão de direitos autorais vertidos ao ambiente virtual, bem como a correr o risco de o vídeo ser deletado desde sua origem, transcrevemos palavra por palavra a preleção de cerca de 3 minutos onde o filósofo leva em conta o Espiritismo:

O Espiritismo é uma filosofia respeitada pelo mainstream filosófico? Não, não é. Com isso eu não quero dizer que você só pode seguir coisas que é respeitado pelo mainstream filosófico. Quando eu falo mainstream filosófico quero dizer, digamos, uma tradição que vem da Grécia, com Platão e Aristóteles, que passa pela escolástica medieval, que toca em gente como Descartes, Pascal, Locke, Hobbes, Rousseau, iluministas em geral, e de lá para cá gente como Wittgenstein, Heidegger, ou seja, estou citando alguns nomes; o próprio Nietzsche, Marx, nomes que fazem parte do mainstream filosófico. O Espiritismo não é considerado uma filosofia, digamos assim, consistente. O Espiritismo é uma forma de crença que nasce de um sujeito chamado Allan Kardec, que na verdade assumiu esse nome, supostamente de um Espirito de uma reencarnação anterior dele; francês, mas que na França, todo mundo que reza no túmulo dele no Père-Lachaise é brasileiro, e que era um positivista. Então, a ideia que muitos espíritas falam de que o Espiritismo é uma Ciência, e que portanto, ele só acredita no que é provado... eu sempre tenho amigos espíritas, e converso com eles e tal... eu acho Candomblé enfim, infinitamente mais interessante do que o Espiritismo como forma religiosa inclusive de crença em Espíritos e coisas assim. E eu sempre pergunto aos espíritas kardecistas: mas, afinal de contas porque a gente não prova de uma vez por todas, diante de um grupo de pesquisa de céticos que existe essa coisa chamada reencarnação? Por que que pessoas que curam o câncer em outras pessoas não conseguem curar o câncer nelas mesmas, né? A teoria de que o Espirito está em eterna evolução é uma teoria legal, por que resolve tudo e não responde nada. Significa que você está sempre e sempre avançando e, por isso você não consegue resolver os problemas básicos que todo mundo gostaria de resolver agora. Uma outra coisa que sempre me chamou a atenção é por que a ideia de que o Espírito seja uma energia não resolve muita coisa, por que a energia é luz. Pra você lembrar quem você é, você precisa de um cérebro, a não ser que as suas memórias não tenham nenhuma relação com neurônios e fica então armazenadas num tipo de luz que é você. Só que até onde a gente sabe, se a gente viaja a velocidade da luz dissolve qualquer identidade que a gente tenha. Então, a noção de que no princípio Deus criou Espíritos inteligentes e imateriais, me parece uma versão positivista como Kardec, ou seja, uma linguagem que parece meio científica, pra velha história que Deus teria criado almas imortais. Então, portanto, o desejo que alguns espíritas tem de que o Espiritismo seja uma filosofia que faça parte, digamos assim, da filosofia mainstream, me parece completamente fora da realidade. Primeiro porque a maior parte do tempo eles ficam lendo esses livros, O Evangelho Segundo o Espiritismo por exemplo, né? Ou ficam lendo outros livros de Espíritos que, de repente, psicografaram esses textos e tal, e esses Espíritos não sabem nada além do que a gente já sabe; eles falam de amor, eles falam de desapego, coisa que Buda, Jesus e todo esse time aí já falou, não é? Então, me parece que o Espiritismo é uma religião entre outras, uma religião sem ritualística, uma religião sem liturgia, uma religião sem ritos, né? Uma religião sem igreja, por isso mesmo, eu acho, uma religião sem graça.

Dito com toda a pompa da retórica, este texto bem pouco filosófico até parece fazer algum sentido; mas, transcrito, perde força imensamente. O grande problema deste amontoado de professores, filósofos e palestrantes é, certamente, a agremiação que os sustenta. Não se pode duvidar que possuam sua parcela de conhecimento, e a custa de treino, prática e experiência, ou apenas talento natural, sejam capazes de transmitir de modo excepcional o que sabem – mas, a saber o que sabem, não sabem tudo acerca de todas as disciplinas de conhecimento humano. Para seus aderentes isto pouco importa – é da tradição dos intelectuais meterem-se a opinar acerca de tudo, e com grandes manobras argumentativas, passam por mestres. Porém, esta é uma prática que põe a prova o sujeito, e o Espiritismo já teve opositores mais hábeis em denegri-lo, sem que estes denunciassem de pronto jamais terem posto olhos a obra de Allan Kardec. Aqui, todavia, Pondé parece um amador de aptidão ginasiana. Está claro que jamais leu as obras componentes da Doutrina dos Espíritos – isto, mais claro fica, ao apontar amigos seus, supostamente espíritas, como as fontes de seus conhecimentos acerca da Doutrina.

Seus partidário e admiradores não se atentarão, sequer, para asneiras da ordem da afirmação segundo a qual o Espírito é energia! Essa ideia pode bem encontrar aderentes em certos círculos da prática espírita, ilegítima, as quais frequentam estes tais amigos do filósofo, mas é mais prevalente no vocabulário de ‘bichos-grilos’ egressos do movimento hippie dos anos 1960, daqueles que se voltaram ao espectro exotérico do ocultismo ocidental – tudo é energia, quando na realidade, é fluido. Os conhecimentos de Pondé acolhem, por exemplo, a questão das terapias espirituais, ou espiritualistas; talvez ele esteja mesmo pensando nas tão polêmicas cirurgias, as quais apenas indivíduos dotados de grande ignorância e desespero arriscam submeter-se. Esta, por si só, daria uma postagem extensa; afirma-la qual manifestação do Espiritismo é sinal de desconhecimento profundo – espera-se isto do populacho iletrado, mas não de um filosofo graduado em Israel? Depende de quem dá a ele a respeitabilidade que acredita ser merecedor. Respeitamos, desde que ele se atenha a seu campo de conhecimento.

Luiz Felipe Pondé comete a clássica falácia lógica do argumentum ad ignorantiam, largamente utilizada por detratores de sempre, que prescreve que sua ignorância da vasta literatura acerca da reencarnação é prova de que ela não há – é o mesmo que afirmar que o que lhe escapa ao conhecimento não existe; pode ser aplicada numa afirmação tradicional dos céticos que defendem que nunca tendo sido detectada vida fora da Terra, ela não existe, por exemplo. Carl Sagan teria afirmado que ‘ausência de evidencia não é evidencia de ausência’, uma frase que demonstra uma postura um cadinho mais previdente e de maior bom senso, denunciadora de um pensador de primeira ordem, e que bem poderia guiar o modus pensandi do sr. Pondé. Mas as evidências existem, o que é ainda mais acusadora do proceder do filósofo.

Outra questão que suscitaria um desenvolvimento maior, para além daquele mesmo que demos em artigo anteriormente publicado neste blog (3 de agosto de 2019) é a do Espiritismo como uma religião. Mas, neste específico e exclusivo caso damos total razão ao filósofo - vertido a uma reles religião, o Espiritismo perde sua força e razão de ser. Quanto a sua graça, Pondé vê elegância no mistério religioso, como demonstra em seus escritos e entrevistas - para ele, um milagre se basta por sua condição, ou seja, indefinidamente sem explicação e razão de dogma. Uma doutrina que oferte uma alternativa lógica que explique tais ordens de fenômenos não é, senão, um atentado a beleza que ele vê, como algo nocivo a sua razão intrínseca de ser - um filósofo existe para questionar, e não para encontrar respostas, afinal. Porém, um raciocínio assim desenvolvido, raso, aborrecido e sem esforço, demonstra o quão apelativo é este vídeo, que se destina a instilar o escândalo e a chocar as sensibilidades mais vulneráveis; e o quanto leva em conta Pondé a Doutrina? - ele pouco se dá por isso. A recíproca, porém, não é a realidade. Pondé, assim como outros detratores cujos argumentos atestam um obscurantismo intelectual agudo é, e deve permanecer sendo o alvo de atento exame por parte dos espíritas, não apenas para impedir ataques disparatados, mas para evitar a divulgação de conceitos equivocados daqueles que pensam ser espíritas. São estes os responsáveis, em primeiríssima instância, das bobeiras saídas da boca de Luiz Felipe Pondé. Permaneçamos vigilantes.
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O vídeo, para ser observado in loco pelos interessados
https://www.youtube.com/watch?v=xwsiHwd5FSc

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Emmanuel à luz dos fatos

1. Introdução
A título de dar prosseguimento aos questionamentos levantados no artigo anteriormente publicado sem que, todavia, lhe seja uma continuação direta, o presente se propõe a focar nas ocasiões em que o suposto guia espiritual de Francisco Cândido Xavier, o Espírito que atendeu pelo consagrado cognome de Emmanuel, veio dar cumprimento a sua tarefa de orientar a este. Desde antes se esclareceu que o proceder de Emmanuel esteve muito ao largo da atuação oculta esperada de um guia espiritual segundo o prescrito pelo Espiritismo, de fato adequando-se mais ao posto de mentor, como era apontado por Chico e seus aderentes. Havendo construído uma carreira literária póstuma, o Espírito não demonstrou nenhum pudor em revelar-se por meio de romances autobiográficos, dando registro das identidades possuídas em vidas anteriores – na de maior destaque e pelo qual é lembrado, teria sido o bisneto de Públio Lêntulo Cornélio Sura, conspirador romano que, ao lado de Lúcio Sérgio Catilina tentou dissolver a República Romana cerca de 60 anos antes do nascimento de Jesus. Deste suposto bisneto não há prova que sustente sua existência, posto que uma vez executado o conspirador Sura em 63 a.C., seu corpo não foi reclamado por nenhum familiar ou parente consanguíneo, proceder de praxe, resultando concluir que não tivera filhos – menos ainda um bisneto.

Estes e outros pontos obscuros e duvidosos de seus livros já foram com minudência abordados – resta, no entanto, com o objetivo de chegar-se a uma conclusão acerca da natureza de Emmanuel, observar os extratos da vida de Chico Xavier, seu protegido, em sua atuação direta como guia. Algumas biografias foram detidamente examinadas para este intento; deixamos uma lista destas ao final do presente artigo para que o leitor possa, por seus próprios esforços consultá-las. Parte destas histórias e causos foram catalogadas pelo próprio Chico Xavier, seja por havê-las transcrito em artigos publicados amiúde na imprensa especializada, seja por tê-las relatado a amigos, companheiros e familiares, ou diante do público, como fez na histórica entrevista concedida ao programa Pinga-fogo da extinta TV Tupi, onde narrou o hoje famoso caso em que se viu sob forte turbulência em um avião que o levava de Uberaba para Belo Horizonte. A estes, portanto.

2. Passagens da vida de Chico Xavier
José Álvaro Santos, poeta, levou Chico Xavier para a capital mineira em 1933 à promessa de um trabalho que lhe pagasse melhor que o armazém de José Felizardo Sobrinho – conseguiu este uma licença de três meses e partiu com o versejador para Belo Horizonte, a contragosto de Emmanuel. Passado esse período e nada de emprego preparou-se para partir quando dois amigos de José Álvaro Santos o interpelaram, oferecendo emprego e estudo gratuito a custa de renegar O Parnaso de Além-Túmulo, seu primeiro livro, como obra dos Espíritos. Rapaz ainda, negou-se Chico a cumprir a condição, ademais os argumentos dos sujeitos que compararam-no a um sofrê, um pássaro hábil em imitar o estilo de canto de outras aves – Chico seria o sofrê dos poetas mortos, ou seja, nada de Espíritos. Emmanuel que não concordara com a viajem desde o princípio aconselhou o matuto: “_Sim, volte a Pedro Leopoldo e procuremos trabalhar. Você não é um sofrê, mas precisa sofrer para aprender.
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Quando retornou a Pedro Leopoldo, Chico voltou feliz as atividades do centro espírita – mas o público que já era pouco, minguou. Viu-se então sozinho a realizar as atividades da casa para os desencarnados. As histórias corriam e não poucos quiseram colocá-lo num sanatório. O padre Júlio Maria de Manhumirim era um renhido detrator do Espiritismo e, em particular, da figura de Chico Xavier – por treze anos o atacou por meio de artigos no periódico 'O Lutador', que fazia fossem entregues na casa do médium. Parou quando morreu e Emmanuel assim falou a Chico por ocasião do passamento: “_Não te aflijas com os que te atacam. O martelo que atormenta o prego com pancada o faz mais seguro e mais firme.
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Em maio de 1935 o correspondente de 'O Globo', Clementino de Alencar, desembarca em Pedro Leopoldo a fim de decifrar o fenômeno Chico Xavier. Acompanha uma das sessões no centro espírita e recebe uma mensagem em inglês de Emmanuel, e outra ainda, quase hermética: “_A vida, em suas causalidades profundas, escapa aos vossos escalpelos, e apenas o embriogenista observa, na penumbra e no silêncio, a infinitésima fração do fenômeno assimilatório das criações orgânicas.” Não seria a primeira e nem a última das mensagens do guia de Chico a desafiar qualquer tradução, embora estivesse claro que usava da língua portuguesa para se expressar.

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Chico Xavier era elogiado e exaltado por seus aderentes; mas, amargurado por ressalvas feitas por Emmanuel e, em especial, por sua mãe que o alertara acerca de ter sua mediunidade suspensa se cedesse aos prazeres da matéria, evitava as armadilhas do ego rebaixando-se, recusando qualquer enaltecimento, humilhando-se se preciso fosse. Certa feita, repreendeu uma mulher pedindo que não o elogiasse a maneira que procedia, pois não passava de um verme no mundo. Emmanuel interveio: “_Não insulte o verme. Ele funciona, ativo, na transmutação dos detritos da terra, com extrema fidelidade ao papel de humilde e valioso servidor da natureza. Ainda nos falta muito para sermos fiéis a Deus em nossa missão.” Chico passou, então, a definir-se como subverme.
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Certa feita, Chico recebeu convite para apresentar-se a um centro espírita de Belo Horizonte; sua presença era considerada indispensável pelos anfitriões. Num laivo de rara vaidade, o médium pediu dois dias de folga e, procedimento mais raro ainda, não pediu consentimento a Emmanuel, embarcando de trem para a capital. Este, todavia, não demoraria a manifestar-se – durante a viajem surgiu a Chico dizendo: “_Então, você se julga indispensável e, por isso, rompeu todos os obstáculos para viajar como quem realiza uma tarefa fundamental? Já refletiu que o serviço do ganha-pão é indispensável a você?” Bastou para Chico sair do trem e apanhar outro de retorno a Pedro Leopoldo. Nunca mais faltou ao trabalho por que motivo fosse, até se aposentar.
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Os necessitados que acorriam para Chico eram muitos, e até no trabalho eles o perturbavam – deu-se ocasião em que uma mulher o procurara por toda parte, sendo frequentemente despistada para que deixasse o médium trabalhar em paz: as cousas do Espiritismo apenas à noite, no centro. Esta mulher foi a primeira a chegar, e desde pronto repreendeu Chico aos tapas pela trabalheira de persegui-lo ao longo do dia. Ele se irritara, mas fora acalmado por Emmanuel que o fez lembrar-se de uma fala sua: “_Sua missão é formar livros e leitores. Formar leitores é suportar suas exigências, sem censuras. Formar livros é se esquecer de você.” Nenhum leitor em potencial poderia ser deixado de lado; nenhum divulgador, por menor que fosse, deveria ser ignorado ou atendido com descuido.
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A vista de Chico Xavier nunca foi boa – tinha uma doença crônica que causava-lhe muita dor. Certa noite, a agonia se apoderou dele e, cansado, pediu o auxílio de Emmanuel, que duramente lhe respondeu: “_Sua condição não exonera você da necessidade de lutar e sofrer, em seu próprio benefício, como acontece às outras criaturas. Se nem Cristo teve privilégios, por que você os teria?” O sofrimento vinha acompanhado de lições aviltantes e depreciativas. Numa ocasião, o olho sangrara, e Chico passara o fim de semana deitado recuperando-se. Emmanuel não podia deixar por menos, e interpelou o médium, que respondeu-lhe o óbvio: “_O senhor não vê que meu olho está doente?” O Espírito não se satisfez: “_E o que o outro está fazendo? Ter dois olhos é um luxo.
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Iniciava-se a década de 1940 e Chico parou de urinar – o ataque de uremia, alertou-lhe o médico, poderia ser fatal se o médium não urinasse dentro de 24 horas. A perspectiva da morte avizinhava-se dele e, como de costume, evocou a presença de Emmanuel. Desta feita, sem pedido de ajuda, apenas desejava ser recebido no além por seu guia. O Espírito, todavia, era muito atarefado para dar atenção ao seu protegido: “_Estarei ocupado. Mas se você sentir que a hora chegou recorra aos amigos do (centro espírita) Luiz Gonzaga e, depois, não se descuide das sessões de quarta-feira (destinadas aos Espíritos sofredores). Espere pacientemente a sua vez de ser atendido. Você não é melhor do que os outros.

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Nosso Lar fora a décima nona obra psicografada por Chico Xavier – para escrevê-la, ou antes, traduzir o mais perfeitamente possível as descrições fantásticas de André Luiz, ele fora levado para conhecer a Colônia fluídica, ciceroneado por este e por Emmanuel. De retorno, as dúvidas ainda persistiam, mas o trabalho foi feito e o ponto final fora pingado. Como de hábito, consultou seu guia diante do desejo de estudar a medianimidade da psicografia, ao que este lhe respondeu: “_Se a laranjeira quisesse estudar o que se passa com ela na produção de laranjas, com certeza não produziria fruto algum. Vamos trabalhar como se amanhã já não fosse possível fazer nada. Para nós, o que interessa agora é trabalhar.
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Chico Xavier trabalhava muito – ocorreu uma noite de voltar para casa era mais de 1 hora da manhã, exaurido. Ao chegar ao lar, deu com seus gatos doentes, tendo vomitado por toda a sala. Apesar do mau cheiro terrível, preferiu a cama; pela manhã pediria a uma irmã que arrumasse tudo. No caminho para o quarto, Emmanuel intervém: “_Você, que vem de uma reunião espírita, está fugindo da sua obrigação? Está exigindo que uma pobre menina cansada de trabalhar nas panelas e no tanque para que não lhe falte comida nem roupa lavada, limpe esta sujeira? Você vai pegar um pano, vai trazer água, sabão e vamos lavar.” Por lavar, claro, apenas Chico o fez. O Espírito emendaria ainda: “_No Espiritismo, a pessoa tem que começar estudando nos grandes livros e também lavando as privadas, trabalhando, ajudando os que estão com fome, lavando a ferida de nossos irmãos. Se não tivermos coragem de ajudar na limpeza de um banheiro, de uma privada, nós estaremos estudando os grandes livros de nossa doutrina em vão.” Cabia a Emmanuel interpretar de modo bastante pessoal ao Espiritismo, e como devia um espírita se comportar. A Chico, nem o estudo das obras da Doutrina, pois entre deveres e direitos apenas os primeiros lhe couberam.
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O médium de Pedro Leopoldo não era afeito a momentos de descanso e diversão – numa ocasião, contudo, deu-se a demandar algum tempo entre conversas frívolas com amigos. Emmanuel não podia consentir com aquilo e interveio: ou Chico se trancava imediatamente para escrever ou ele iria embora: “_Você fará tudo aproveitando os minutos.” Conversa encerrada.
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A rotina de Chico Xavier era massacrante, e o peso só fazia aumentar; ansiava por um alívio, por um caminho mais tranquilo e calmo. Emmanuel veio em resposta: “_A estrada larga, pavimentada é mais suscetível de desastres, porque nela a velocidade é ameaçadora. A estrada estreita, entulhada, nos faz caminhar com mais cuidado.” Chico esboroaria os pés e perderia a saúde na estrada acidentada da vida.
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Em 1944 estoura o escândalo Humberto de Campos – a viúva do jornalista e escritor acionara o médium mineiro na justiça. O matuto do interior de Minas Gerais via-se diante da possibilidade de ser preso, e seus queixumes para Emmanuel tiveram a seguinte resposta: “_Meu filho, você é planta muito fraca para suportar a força das ventanias. Tem ainda muito que lutar para um dia merecer ser preso e morrer pelo Cristo.” Chico estava aquém da pior das celas.
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Refeito do processo movido contra si pela viúva de Humberto de Campos, Chico estava feliz e, para sua surpresa, recebeu de presente de empresários paranaenses um piano. Espalhara-se o boato que, próximo ao fim de sua existência, o médium mineiro passaria a psicografar partituras dos grandes gênios da música. Verdade ou não, os representantes da marca do piano fizeram sua parte, atrelando esta ao médium por meio do mimo. Amante de música clássica, Chico empolgou-se e contratou aulas de piano – diversamente do que sempre fazia, resolveu ficar com o presente e usá-lo. No dia de sua primeira aula, em meio a doentes e necessitados que aguardavam sua assistência, ele apenas esperava a chegada da professora. Emmanuel surgiu e ralhou: “_Quer dizer que essa gente toda que está aí sofrendo, angustiada, ficará aguardando o dia em que você resolva atendê-la?” Chico dispensou a professora e livrou-se do piano.
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Quando o escândalo envolvendo a obra psicográfica atribuída a Humberto de Campos era apenas uma lembrança infeliz do passado, novo golpe sobreveio a Chico – seu sobrinho residente em Sabará, Amauri Pena Xavier, denunciou o tio como farsante; mensagens e livros eram produção própria, decorrente de espantosa memória e capacidade de imitação do médium. A imprensa deitou o sensacionalismo em reportagens mais interessadas em vender jornais e revistas que em apurar a verdade. Desanimado, Chico recorre a Emmanuel, pedindo desta feita uma orientação a própria mãe de Jesus; dias se passam até que o 'mentor' retorna com a mensagem mariana: “_Isso também passa.” Chico a escrevera na cabeceira da cama e a lera toda manhã como ânimo para suportar o dia. Mas, Emmanuel dera sua emenda, afinal a frase se aplicava a momentos tristes, e também aos alegres.
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Em 1958 Chico Xavier ia de avião de Uberaba para Belo Horizonte – a nave enfrentava turbulência devido a um vento de cauda. Por mais de dez minutos tudo sacudiu e tremeu; ainda que os Espíritos lhe fossem íntimos, Chico não era afeito a ideia de morrer e, como todos no avião, demonstrava isto com veemência. Emmanuel interveio – como era possível a um espírita fazer tamanho alarde diante da morte? Cansado e oprimido, e ante da possibilidade de uma morte terrível, Chico desafiou seu 'mentor' afirmando estar apavorado. Emmanuel recomendou: “_Está bem. Então, cale a boca para não afligir a cabeça dos outros com seus gritos. Morra com fé em Deus, morra com educação.
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Em 1967 Chico Xavier comemorou a efeméride de completar 40 anos de mediunato; de Emmanuel ganhou a responsabilidade de receber as mensagens de Espíritos aos seus parentes encarnados. Eram mensagens particulares, e a assistência ficava em expectativa irreal, atingindo os limites do descontrole emocional. Certa noite um sujeito devolveu a mensagem que Chico lhe entregara, atribuída a um familiar morto, com cusparadas – alegava serem falsas aquelas palavras. O médium aguentou passivamente, caindo em prantos quando de volta ao lar. Emmanuel endureceu: “_Quando alguém cuspir em seu rosto, diga simplesmente que a chuva molhou sua face, se alguém pedir explicações. Não reclame.
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A década de 1970 passara de sua metade quando o coração de Chico começou a mostrar sinais de cansaço – a angina passou a afligir-lhe. Fora a doença que vitimara sua mãe. Acometido pelas dores angustiantes, recorreu uma vez mais a Emmanuel, e dele ouviu laconicamente: “_Afinal, o que querias? Não maltrataste as energias do corpo? As lutas e as caminhadas pelo bem, embora contem com o amparo do Mundo Maior, não excluem as limitações e os desgastes do vaso físico terrestre.” Apenas esqueceu-se de afirmar o Espírito que muito desta luta e parte da caminhada se deveu não a sua orientação, mas ao constrangimento e a mão pesada que impôs sobre o médium, não lhe dando paz ou espaço para seu livre-arbítrio.
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Quando Emmanuel iniciou contatos ostensivos frequentes com Chico Xavier, estabelecera com ele o compromisso da recepção psicográfica de trinta livros. Dezesseis anos depois, em 1947, ele põe o ponto final em Volta, Bocage, a trigésima obra. Emmanuel aparece e sentencia – mais trinta livros. Chico anui, desanimado. Em 1958 Evolução em Dois Mundos é lançado, seu sexagésimo livro, psicografado em parceria com Waldo Vieira – findo mais um acordo com Emmanuel, Chico estava feliz novamente, diante da perspectiva de diminuir o ritmo. Seu 'mentor', contudo, veio com um novo comunicado: “_Os mentores da Vida Maior, perante os quais devo também estar disciplinado, me advertiram que nos cabe chegar ao limite de cem livros.” Onze anos se passariam até completar os quarenta volumes restantes, e Chico uma vez mais rejubilava-se; Poetas Redivivos era a obra de número cem acordado com Emmanuel. O Espírito, uma vez mais, portava más notícias para o médium: “_Estou na obrigação de dizer a você que os mentores da Vida Superior, que nos orientam, expediram uma instrução: ela determina que sua atual reencarnação seja desapropriada, em benefício da divulgação dos princípios espírita-cristãos. Sua existência, do ponto de vista físico, fica à disposição das entidades espirituais que possam colaborar na execução das mensagens e livros, enquanto seu corpo se mostre apto para nossas atividades.” Chico não engoliu a indignação e ralhou, defendendo que o Espiritismo prescreve o livre-arbítrio: e se ele não desejasse prosseguir? Emmanuel encerrou o assunto afirmando: “_A instrução a que me refiro é semelhante a um decreto de desapropriação, quando lançado por autoridade na Terra. Se você recusar o serviço a que me reporto, os orientadores dessa obra de nos dedicarmos ao cristianismo redivivo terão autoridade bastante para retirar você de seu atual corpo físico.” Diante desta velada ameaça de morte, Chico psicografou mais três centenas de livros até o ponto em que a saúde não mais o permitiu, às portas da morte.

3. Apuração
Quem tem o privilégio de uma relação tão próxima, íntima, particular e ostensiva com seu benfeitor espiritual, assim como Chico Xavier? Excetuando-se as biografias que, a feição das hagiografias dos santos católicos, exaltam qualquer fato ligado a existência do médium mineiro, quem como Marcel Souto Maior buscou a isenção jornalística para abordar os fatos, reconheceu a anormal atuação de Emmanuel – não é, senão pela explicação ululante que se pode inferir pela identidade deste: um obsessor manifesto, patente. Que benfeitor espiritual desapropria a vida de seu protegido? Que benfeitor espiritual espezinha seus sofrimentos? Que benfeitor constrange, humilha, interfere no livre-arbítrio deste? Atentarão as vozes dos fanáticos que os fins justificam os meios, que a mediunidade é maior que o homem, que a mensagem deve sobrepujar o indivíduo – mas estes não são espíritas; são já qualquer outra cousa, um amontoado de idólatras sincréticos. As evidências são obnubiladas pela ignorância quanto ao prescrito pelo Espiritismo – então o Espírito missionário deve ir adiante, como a cumprir um fadário sem o qual cai derrotado, não resistindo espaço para a manifestação do livre-arbítrio? Allan Kardec, um Espírito missionário evidente, tivera notícias de sua missão e com o Espírito da Verdade colheu as seguintes impressões, dirimindo suas dúvidas:

Não esqueças que pode triunfar, como podes falir. Neste último caso, outro te substituiria, porquanto os desígnios de Deus não assentam na cabeça de um homem. Nunca, pois, fales de tua missão; seria a maneira de a fazeres malograr-se. Ela somente pode justificar-se pela obra e tu ainda nada fizeste. Se a cumprires, os homens saberão reconhecê-lo, cedo ou tarde, visto que pelos frutos é que se verifica a qualidade da árvore. (…) A nossa assistência não te faltará, mas será inútil se, de teu lado, não fizeres o que for necessário. Tens o teu livre-arbítrio, do qual podes usar como o entenderes. Nenhum homem é constrangido a fazer coisa alguma.

Segue-se a esta um sumário de dificuldades que o Espírito alerta se abaterão sobre Allan Kardec, caso prossiga na missão – este complementa a nota, escrita dez anos após tal comunicação, confirmando a estas e os dissabores previstos, bem como o comprometimento da própria saúde física diante do tamanho da tarefa. Porém, relata o júbilo com que recebera as consequências benfazejas de tanto labor, afirmando sem laivos de vaidade que, em nenhum momento sobreveio o desânimo diante das vicissitudes, mantendo-se apartado de toda reação negativa que lhe lançaram detratores e opositores. Cotejando-se os casos, verifica-se a oposição no tocante ao respeito a um dos princípios fundamentais da Doutrina dos Espíritos – o livre-arbítrio. Caso se leve em conta que o Espírito de Verdade tenha de fato sido Jesus de Nazaré, uma hipótese sempre aventada, mais grave se verifica a atuação de Emmanuel frente a Chico Xavier – ou alguém há de cometer o descalabro de meter no mesmo nível um Espírito de escol como Jesus e este insipiente Emmanuel?

4. Cotejamento e conclusão
No artigo anteriormente postado aqui, transcreveram-se os itens 246 e 247 do capítulo intitulado Da Obsessão de O Livro dos Médiuns, onde o Codificador traça um perfil bastante apropriado de uma espécie de obsessor que, parece-nos, adequa-se quase à perfeição a figura de Emmanuel. Ponto a ponto, vamos cotejá-los ao que se conhece de Emmanuel, lançando questões para se encontrar respostas que permitam a devida reflexão e inferência acerca da identidade do Espírito; também aqui tomaremos de tudo quanto foi exposto na postagem anteriormente publicada.

A_Há Espíritos obsessores sem maldade (…) dominados pelo orgulho e falso saber. (…) Têm suas ideias (…) e querem fazer que suas opiniões prevaleçam. Para esse efeito, procuram médiuns bastante crédulos para os aceitar de olhos fechados e que eles fascinam, a fim de os impedir de discernir o verdadeiro do falso. São os mais perigosos, (…) podem tornar cridas as mais ridículas utopias.”_Chico Xavier em algum momento de sua trajetória lançou dúvidas quanto a ser Emmanuel o seu guia espiritual? Em que ponto, mesmo dentre aqueles raros em que se opôs aos caprichos deste, deixou de acatá-lo e obedecê-lo? Mesmo quando, durante o processo de psicografia de Nosso Lar guardou dúvidas ao que punha no papel, não permitiu que o trabalho fosse finalizado e publicado, sem o que, contudo, lhe fosse podido estudar a psicografia, impedido por Emmanuel? E não seria este um Espírito de cujas ideias próprias, ainda que contrárias ao Espiritismo, as apresentou por meio de livros (O Consolador, A Caminha da Luz, Emmanuel, etc.)? Não é uma ridícula utopia todo este sistema que corrompeu a erraticidade por meio do ideário das Colônias Espirituais, a qual sancionou ao auxiliar André Luiz, seu autor?

B_Como conhecem o prestígio dos grandes nomes, não escrupulizam em se adornarem com um daqueles diante dos quais todos se inclinam, e não recuam sequer ante o sacrilégio de se dizerem Jesus, a Virgem Maria, ou um santo venerado.”_O uso do nome Emmanuel, um nome bíblico e profético, segundo a qual seria conhecido o próprio Jesus tem algum significado? Não imporia ele respeito por tacitamente levar a concluir, ainda que erroneamente, que Emmanuel fora um Espírito de elite? Essa ideia subjacente não foi reforçada pela história narrada em Há 2000 Anos, onde supostamente Emmanuel estivera na presença de Jesus? Ou quando Chico, ingenuamente pede por um consolo a Virgem Maria, sem levantar objeções a que Emmanuel poderia obtê-las para ele, diante dos problemas causados por seu sobrinho? Ainda: não exorta respeito revelar haver sido, outrossim, o padre jesuíta Manoel da Nóbrega, um dos fundadores da cidade de São Paulo? Não teria sido a credulidade de Chico Xavier explorada por este Espírito?

C_Procuram deslumbrar por meio de uma linguagem empolada, mais pretensiosa do que profunda, eriçada de termos técnicos e recheada das retumbantes palavras – caridade e moral. Cuidadosamente evitarão dar um mau conselho, porque bem sabem que seriam repelidos. (…) A moral, porém, para esses Espíritos é simples passaporte, (…) O que querem, acima de tudo, é impor suas ideias por mais disparatadas que sejam.”_O estilo de escrita pomposa e pernóstica de Emmanuel não de adequa ao perfil elaborado? Não foi grande parte dos atos de benemerência levados a efeito por Chico Xavier movidos pela intervenção direta de Emmanuel? Não foi ele a dobrar a vontade do médium para fazer além das próprias forças e da saúde? O que desejara Emmanuel impedindo Chico Xavier de divertir-se, de dar vazão ao desejo inofensivo de aprender piano? Ou reprovando suas conversas frívolas com amigos e familiares? Não eram os ditados de suas obras o que deveria importar mais que ao bem-estar do médium?

D_“Os Espíritos dados a sistemas são geralmente escrevinhadores, pelo que buscam os médiuns que escrevem com facilidade e dos quais tratam de fazer instrumentos dóceis e, sobretudo, entusiastas, fascinando-os. São quase sempre verbosos, muito prolixos, procurando compensar a qualidade pela quantidade. Comprazem-se em ditar, aos seus intérpretes, volumosos escritos indigestos e frequentemente pouco inteligíveis que, felizmente têm por antidoto a impossibilidade material de serem lidos pelas massas. Os Espíritos verdadeiramente superiores são sóbrios de palavras; dizem muita coisa em poucas frases. Segue-se que aquela fecundidade prodigiosa deve sempre ser suspeita. Nunca será demais toda a circunspecção, quando se trate de publicar semelhantes escritos.”_Chico Xavier, algum dia, lançou dúvidas quanto a suposta superioridade de Emmanuel? Não era a ele que sempre evocava para orientar-se, sujeitando seu livre-arbítrio aos desvarios deste? Não é Emmanuel que, dentre as mais de quatro centenas de livros psicografados por Chico Xavier, responde por um quarto dentre estes? E quanto aos prefácios de obras alheias, ou as mensagens de cunho moral, e toda sorte de escritos que indicam um loquaz em pleno exercício? Não são estes mesmos livros de orientação ética um pastiche das mais altas e edificantes lições morais de todos os povos e de todos os tempos? Não é o proceder comum de um padre a compor sermões ao longo de décadas? E, embora popular, não seria Emmanuel como que a roupa nova do imperador, alegadamente compreendido por quem teme o estigma da estupidez por não haver sido capaz de romper-lhe os desafios idiomáticos? Fascinado Chico Xavier, e enredado os leitores, outrossim, que barreiras sê-lhe foram impostas para alardear o que bem entendesse? Não foi a custa de algo inexistente como 'mentores da vida maior' que ele prendeu seu médium até o fim?

E_“As utopias e as excentricidades, que neles por vezes abundam e chocam o bom-senso, produzem lamentável impressão nas pessoas ainda noviças na Doutrina, dando-lhes uma ideia falsa do Espiritismo, sem mesmo se levar em conta que são armas de que se servem seus inimigos, para ridicularizá-los. Entre tais publicações, algumas há que, sem serem más e sem provirem de uma obsessão, podem considerar-se imprudentes, intempestivas, ou desazada.”_Que pensaria o sujeito que, estudando a O Livro dos Médiuns lesse os apontamentos de Emmanuel em sua obra homônima acerca do caráter desgraçado dos médiuns? Que pensaria este, ainda, acerca da questão das almas gêmeas em resposta contida em O Consolador? Ou ainda seu aval a doutrina das Colônias Espirituais, estando este hipotético estudante diante de O Céu e o Inferno? Ainda e uma vez mais, que pensar do infame 'Culto do Evangelho no Lar', cuja mensagem deste instila a prática? E quantos não tiveram o espírito de questionar a postura frontalmente contrária ao Espiritismo deste escrevinhador de além-túmulo, abraçando seus sistemas, adotando suas ideias?

Tais ordens de questionamentos visam apenas colaborar para a reflexão; e a que levam estes, afinal? Que conclusões se podem tirar por meio deste cotejamento e de tudo quanto foi apresentado até aqui, neste e no artigo anterior? Os fatos falam por si e, se acaso ainda persistem dúvidas quanto a se este Espírito fora um obsessor, basta verificar que distante esteve da postura esperada de um guia espiritual, e mais ainda de possuir as luzes de sabedoria que lhe outorgaram a insensata crença do populacho inculto. Não condizendo a este nível, o que lhe resta tendo em vista seu proceder e suas obras eivadas de equívocos? Não é sua postura indefensável, a despeito dos aderentes sempre tão pródigos em argumentar para salvaguardar suas crenças, seu fanatismo, sua idolatria? Não outro senão Emmanuel constrangeu Chico Xavier, explorou o matuto ingênuo de Pedro Leopoldo para dele fazer seu servidor, seu escravo de letras, o arauto de moral ilibada contra a qual todas as vozes antagônicas pareceriam a expressão cabal da loucura e da obsessão? Não compulsou ao médium de caráter servil a tornar-se uma máquina de escrever despojada de livre-arbítrio, um autômato sem vontade cuja razão de existir era única e simplesmente psicografar-lhe a obra, espargindo suas ideias extravagantes, seja acerca da natureza dos médiuns e da mediunidade, seja acerca da formação da Terra ou da evolução de Jesus, ou da existência afirmativa das almas gêmeas, ou ainda dos procedimentos burocráticos da Roma antiga? Não foi ele a ameaçar de morte Chico Xavier?

A conclusão parece agora mais inequívoca - Francisco Cândido Xavier, médium prático de Pedro Leopoldo, interior de Minas Gerais, jamais fora espírita; padecera toda a vida de um processo doloroso de obsessão e fascinação, empreendido por um Espírito que se identificara pelo nome de Emmanuel; e este, apesar de suas palavras insuflando a caridade e exortado elevados valores morais, estivera apenas e tão somente comprometido em espalhar a confusão com suas ideias anômalas e equivocadas, frontalmente contrárias a Doutrina dos Espíritos. Este, enfim, é o Espírito Emmanuel, desnudo ao exame de todos. Que contributos Chico Xavier e Emmanuel deram ao Espiritismo? Nenhum!


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Chico Xavier de Encarnação a Encarnação _Therezinha Radetic; Ed. EME. Capivari-SP. 2019
Nosso Amigo Chico Xavier_Luciano N. da Costa e Silva; Ed. ALF. Itapira-SP. 1998
Novíssimas Revelações do Nosso Amigo Chico Xavier_Luciano N. da Costa e Silva; Ed. ALF. Joanópolis-SP. s/d
A Vida Triunfa-Pesquisa Sobre Mensagens que Chico Xavier Recebeu_Paulo Rossi Severino; Ed. FE. S/ localidade ou data
As Vidas de Chico Xavier_Marcel Souto Maior; Ed. Planeta. São Paulo-SP. 2003
Por Trás do Véu de Ísis_Marcel Souto Maior; Ed. Planeta. São Paulo-SP. 2004
Nosso Chico_Saulo Gomes; Ed. Intervidas. Catanduva-SP. 2018
Até Sempre Chico Xavier_Nena Galves; Ed. CEU. São Paulo-SP. 2017
Chico Xavier do Calvário à Redenção_Carlos Alberto Braga Costa; Ed. EME. Capivari-SP. 2019
Testemunhos de Chico Xavier_Sueli Caldas Schubert; FEB. Brasília-DF. 2010