sábado, 14 de setembro de 2019

Kardec - um filme


Wagner de Assis dirigiu Nosso Lar, o que é um mau sinal para a cinebiografia de Allan Kardec – arrolado a categoria genérica das ‘cousas do Espiritismo’, a obra de André Luiz e o Espírito missionário do professor Rivail acabam se igualando numa mistura homogênea, perfazendo um simulacro de Espiritismo em sua expressão prática nacional – o que é chamado ordinariamente de movimento espírita brasileiro. E o diretor e roteirista, a despeito de suas capacidades como tal, apenas toma partido deste simulacro, dando-lhe um eco cinematográfico de grande visibilidade. Nosso Lar não deveria existir como livro, menos ainda em peça de teatro e filme – mas, por que haveria de ser relevante nossa opinião a respeito? Em prejuízo a fidelidade doutrinária, não serão tais filmes que darão sobrevida ao equívoco; há dezenas de lançamentos anuais de obras literárias de origem mediúnica que alimentam fartamente a confusão.

Num sábado qualquer e de espírito pronto, fomos assistir ao filme – as questões relativas aos aspectos técnicos da obra são o que mais se destacam positivamente, afinal a direção de arte é digna e convence em grande parte, tanto quanto a fotografia. Esta, todavia, chama a atenção em algumas cenas externas em que a luz natural parece ocre demais, como se uma lâmpada alaranjada houvera substituído o Sol. Sempre defendemos que o interprete definitivo de Allan Kardec seria o ator Paulo Goulart, infelizmente falecido em 2014; a ideia de vê-lo na pele do professor Rivail é hoje artigo da imaginação. Mas, Leonardo Medeiros é esforçado, tanto quanto o restante do elenco – o roteiro não ajuda, porém, e as falas ditas qual se escritas por um William Shakespeare desprovido de inspiração chamaram a atenção da crítica. De fato, acaba por emprestar um aspecto documental as cenas, parecendo um desses filmes de baixo orçamento feitos para a TV, e não uma superprodução destinada as salas de cinema.

Contudo, o que de fato começou a incomodar no filme é o retrato construído da protagonista, que a Sra. Anna Blackwell, a primeira tradutora para o inglês das obras espíritas de Allan Kardec, assim definiu:

Pessoalmente Allan Kardec era de estatura média. Compleição forte, com uma cabeça grande, redonda, maciça, feições bem marcadas, olhos pardos, claros, mais se assemelhando a um alemão do que a um francês. Enérgico e perseverante, mas de temperamento calmo, cauteloso e não imaginoso até a frieza, incrédulo por natureza e por educação, pensador seguro e lógico, e eminentemente prático no pensamento e na ação. Era igualmente emancipado do misticismo e do entusiasmo. Grave, lento no falar, modesto nas maneiras, embora não lhe faltasse uma certa calma dignidade, resultante da seriedade e da segurança mental, que eram traços distintivos de seu caráter. Nem provocava nem evitava a discussão, mas nunca fazia voluntariamente observações sobre o assunto a que havia devotado toda a sua vida, recebia com afabilidade os inúmeros visitantes de toda a parte do mundo que vinham conversar com ele a respeito dos pontos de vista nos quais o reconheciam um expoente, respondendo às perguntas e objeções, explanando as dificuldade, e dando informações a todos os investigadores sérios, com os quais falava com liberdade e animação, de rosto ocasionalmente iluminado por um sorriso genial e agradável, conquanto tal fosse a sua habitual seriedade de conduta que nunca se lhe ouvia uma gargalhada. Entre as milhares de pessoas por quem era visitado, estavam inúmeras pessoas de alta posição social, literária, artística e científica. O Imperador Napoleão III, cujo interesse pelos fenômenos espíritas não era mistério para ninguém, procurou-o várias vezes e teve longas palestras com ele nas Tuileries, sobre a doutrina de ‘O Livro dos Espíritos’.


Duas ocasiões no filme chamam a atenção – quando recebe mensagem mediúnica ameaçadora, torna-se paranoico e acovardado, tentando impedir mesmo que Amélie (Sandra Corveloni) atenda a porta de casa; em outro momento, tomado por inseguranças e carente da aprovação de seu trabalho, recebe Ermance Dufaux e seu pai em sua casa, acabando com esta impondo-lhe a mão sobre o peito em plena prática psicofônica. A cena toda acabou por vencer qualquer ânimo de nossa parte por manter plena a atenção diante do que se passava na tela – as suas reações ao Auto de Fé de Barcelona apenas somaram para vislumbrar com insistência ao relógio, ansiando pelo fim da projeção. Nem vagamente alguém que fora descrito com feições germânicas e uma personalidade fria, cautelosa, calma e segura passaria por aquela figura interpretada por Leonardo Medeiros – reitera-se que o problema não está na interpretação, mas no que o roteiro exige do ator, na composição do ethos da personagem, ou seja, o conjunto das características que compõem a personalidade deste.

Como se reconhece, pelos frutos, a árvore que os gerou, pelas Obras Básicas se ponde conhecer Allan Kardec, acrescendo-lhe o adjetivo de homem eminentemente cerebral; alguém que fora descrito, ainda, pelo astrônomo Camille Flammarion em discurso proferido diante de sua tumba como dotado de razão reta e judiciosa, o bom-senso encarnado. O professor Rivail é uma figura cuja distância temporal e escassez documental dificultam o retrato, cuja personalidade o torna a mais improvável das personagens a serem abordadas pela ficção, ainda mais na condição de protagonista – uma personalidade à pouco retratada pelo cinema que poderia ser um modelo mais próximo de Allan Kardec é a de Neil Armstrong no filme O Primeiro Homem. Interpretado ali por Ryan Gosling, o astronauta é frio, distante, evasivo até, preferindo chorar a morte da filha na solidão e recolhimento oculto de um gabinete. O Codificador é um sujeito que aí oferece possibilidades mais interessantes, a de representar um homem de intelecto privilegiado desvendando um ramo de conhecimento todo novo – alguns críticos mesmo se ressentiram disto; com um diretor mais habilidoso, esta poderia ser uma boa maneira de mostrar um cético de pensamento livre sendo levado, por esforços próprios, a uma descoberta que o converte a um ramo de saber até então oculto.


Muitas passagens do filme reinterpretam em falas diversas passagens das notas de Allan Kardec presentes em Obras Póstumas, e outras mais das Obras Básicas – uma em específico, quando rememora a mensagem do Espírito da Verdade acerca dos escolhos decorrentes de aceitar a missão de codificar o Espiritismo, o filme se aproveita desta para buscar novamente imprimir pela insegurança alguma humanidade a personagem, como se a personalidade sistemática do Codificador não bastasse para tanto. A nota anexa a transcrição da mensagem mediúnica é a seguinte:

Escrevo esta nota a 1º de janeiro de 1867, dez anos e meio depois que me foi dada a comunicação acima e atesto que ela se realizou em todos os pontos, pois experimentei todas as vicissitudes que me foram preditas. Andei em luta com o ódio de inimigos encarniçados, com a injúria, a calúnia, a inveja e o ciúme; libelos infames se publicaram contra mim; as minhas melhores instruções foram falseadas; traíram-me aqueles em quem eu mais confiança depositava, pagaram-me com a ingratidão aqueles a quem prestei serviços. A Sociedade de Paris se constituiu foco de contínuas intrigas urdidas contra mim por aqueles mesmos que se declaravam a meu favor e que, de boa fisionomia na minha presença, pelas costas me golpeavam. Disseram que os que se me conservavam fieis estavam à minha soldada e que eu lhes pagava com o dinheiro que ganhava do Espiritismo. Nunca mais me foi dado saber o que é o repouso; mais de uma vez sucumbi ao excesso de trabalho, tive abalada a saúde e comprometida a existência. Graças, porém, à proteção e assistência dos bons Espíritos que incessantemente me deram manifestas provas de solicitude, tenho a ventura de reconhecer que nunca senti o menor desfalecimento ou desanimo e que prossegui, sempre com o mesmo ardor, no desempenho da minha tarefa, sem me preocupar com a maldade de que era objeto. Segundo a comunicação do Espírito de Verdade, eu tinha de contar com tudo isso e tudo se verificou. Mas, também, a par dessas vicissitudes, que de satisfações experimentei, vendo a obra crescer de maneira tão prodigiosa! Com que compensações deliciosas foram pagas as minhas tribulações! Que de bênçãos e de provas de real simpatia recebi da parte de muitos aflitos a quem a Doutrina consolou! Este resultado não mo anunciou o Espírito de Verdade que, sem dúvida intencionalmente, apenas me mostrara as dificuldades do caminho. Qual não seria, pois, a minha ingratidão, se me queixasse! Se dissesse que há uma compensação entre o bem e o mal, não estaria com a verdade, porquanto o bem, refiro-me às satisfações morais, sobrelevaram de muito o mal. Quando me sobrevinha uma decepção, uma contrariedade qualquer, eu me elevava pelo pensamento acima da humanidade e me colocava antecipadamente na região dos Espíritos e desse ponto culminante, donde divisava o da minha chegada, as misérias da vida deslizavam por sobre mim sem me atingirem. Tão habitual se me tornara esse modo de proceder, que os gritos dos maus jamais me perturbaram.

Parece-nos claro que não obstante toda campanha em contrário, toda a tribulação, a saúde física de Allan Kardec sofreu mais que seu desejo de chegar a um propósito – laborou para a morte, abreviou a própria existência para alcançar um objetivo; e tão certo são suas próprias palavras para descrever um estado de espírito inabalável quanto a lógica simples que não pode conceber um intelectual de meia idade hesitante, inseguro, acovardado frente a um desafio mental de tal monta – nesta altura da vida, ou se aceita ou se recusa, ou é fácil ou simplesmente impossível. Todo o processo intelectivo exigido do professor Rivail, certamente, não constituiu per si o maior ou mais truncado embaraço; na qualidade de Espírito missionário, possuía as ferramentas para a execução da tarefa. O filme peca nesta retratação, ficando muito aquém do biografado. E nisto se concentra o seu malogro. Allan Kardec merece mais.


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