Wagner de Assis dirigiu Nosso
Lar, o que é um mau sinal para a cinebiografia de Allan Kardec – arrolado a
categoria genérica das ‘cousas do
Espiritismo’, a obra de André Luiz e o Espírito missionário do professor
Rivail acabam se igualando numa mistura homogênea, perfazendo um simulacro de
Espiritismo em sua expressão prática nacional – o que é chamado ordinariamente
de movimento espírita brasileiro. E o
diretor e roteirista, a despeito de suas capacidades como tal, apenas toma partido
deste simulacro, dando-lhe um eco cinematográfico de grande visibilidade. Nosso Lar não deveria existir como
livro, menos ainda em peça de teatro e filme – mas, por que haveria de ser
relevante nossa opinião a respeito? Em prejuízo a fidelidade doutrinária, não
serão tais filmes que darão sobrevida ao equívoco; há dezenas de lançamentos
anuais de obras literárias de origem mediúnica que alimentam fartamente a
confusão.
Num sábado qualquer e de espírito pronto, fomos assistir ao filme – as
questões relativas aos aspectos técnicos da obra são o que mais se destacam
positivamente, afinal a direção de arte é digna e convence em grande parte,
tanto quanto a fotografia. Esta, todavia, chama a atenção em algumas cenas
externas em que a luz natural parece ocre demais, como se uma lâmpada
alaranjada houvera substituído o Sol. Sempre defendemos que o interprete
definitivo de Allan Kardec seria o ator Paulo Goulart, infelizmente falecido em
2014; a ideia de vê-lo na pele do professor Rivail é hoje artigo da imaginação.
Mas, Leonardo Medeiros é esforçado, tanto quanto o restante do elenco – o
roteiro não ajuda, porém, e as falas ditas qual se escritas por um William
Shakespeare desprovido de inspiração chamaram a atenção da crítica. De fato,
acaba por emprestar um aspecto documental as cenas, parecendo um desses filmes
de baixo orçamento feitos para a TV, e não uma superprodução destinada as salas
de cinema.
Contudo, o que de fato começou a incomodar no filme é o retrato
construído da protagonista, que a Sra. Anna Blackwell, a primeira tradutora
para o inglês das obras espíritas de Allan Kardec, assim definiu:
“Pessoalmente Allan Kardec era
de estatura média. Compleição forte, com uma cabeça grande, redonda, maciça,
feições bem marcadas, olhos pardos, claros, mais se assemelhando a um alemão do
que a um francês. Enérgico e perseverante, mas de temperamento calmo, cauteloso
e não imaginoso até a frieza, incrédulo por natureza e por educação, pensador
seguro e lógico, e eminentemente prático no pensamento e na ação. Era
igualmente emancipado do misticismo e do entusiasmo. Grave, lento no falar,
modesto nas maneiras, embora não lhe faltasse uma certa calma dignidade,
resultante da seriedade e da segurança mental, que eram traços distintivos de
seu caráter. Nem provocava nem evitava a discussão, mas nunca fazia
voluntariamente observações sobre o assunto a que havia devotado toda a sua
vida, recebia com afabilidade os inúmeros visitantes de toda a parte do mundo
que vinham conversar com ele a respeito dos pontos de vista nos quais o
reconheciam um expoente, respondendo às perguntas e objeções, explanando as
dificuldade, e dando informações a todos os investigadores sérios, com os quais
falava com liberdade e animação, de rosto ocasionalmente iluminado por um
sorriso genial e agradável, conquanto tal fosse a sua habitual seriedade de
conduta que nunca se lhe ouvia uma gargalhada. Entre as milhares de pessoas por
quem era visitado, estavam inúmeras pessoas de alta posição social, literária,
artística e científica. O Imperador Napoleão III, cujo interesse pelos
fenômenos espíritas não era mistério para ninguém, procurou-o várias vezes e
teve longas palestras com ele nas Tuileries, sobre a doutrina de ‘O Livro dos
Espíritos’.”
Duas ocasiões no filme chamam a atenção – quando recebe mensagem mediúnica
ameaçadora, torna-se paranoico e acovardado, tentando impedir mesmo que Amélie
(Sandra Corveloni) atenda a porta de casa; em outro momento, tomado por
inseguranças e carente da aprovação de seu trabalho, recebe Ermance Dufaux e
seu pai em sua casa, acabando com esta impondo-lhe a mão sobre o peito em plena
prática psicofônica. A cena toda acabou por vencer qualquer ânimo de nossa
parte por manter plena a atenção diante do que se passava na tela – as suas
reações ao Auto de Fé de Barcelona apenas somaram para vislumbrar com
insistência ao relógio, ansiando pelo fim da projeção. Nem vagamente alguém que
fora descrito com feições germânicas e uma personalidade fria, cautelosa, calma
e segura passaria por aquela figura interpretada por Leonardo Medeiros –
reitera-se que o problema não está na interpretação, mas no que o roteiro exige
do ator, na composição do ethos da
personagem, ou seja, o conjunto das características que compõem a personalidade
deste.
Como se reconhece, pelos frutos, a árvore que os gerou, pelas Obras
Básicas se ponde conhecer Allan Kardec, acrescendo-lhe o adjetivo de homem
eminentemente cerebral; alguém que fora descrito, ainda, pelo astrônomo Camille
Flammarion em discurso proferido diante de sua tumba como dotado de razão reta
e judiciosa, o bom-senso encarnado. O professor Rivail é uma figura cuja
distância temporal e escassez documental dificultam o retrato, cuja
personalidade o torna a mais improvável das personagens a serem abordadas pela
ficção, ainda mais na condição de protagonista – uma personalidade à pouco
retratada pelo cinema que poderia ser um modelo mais próximo de Allan Kardec é
a de Neil Armstrong no filme O Primeiro
Homem. Interpretado ali por Ryan Gosling, o astronauta é frio, distante,
evasivo até, preferindo chorar a morte da filha na solidão e recolhimento oculto de um
gabinete. O Codificador é um sujeito que aí oferece possibilidades mais
interessantes, a de representar um homem de intelecto privilegiado desvendando
um ramo de conhecimento todo novo – alguns críticos mesmo se ressentiram disto;
com um diretor mais habilidoso, esta poderia ser uma boa maneira de mostrar um
cético de pensamento livre sendo levado, por esforços próprios, a uma
descoberta que o converte a um ramo de saber até então oculto.
Muitas passagens do filme reinterpretam em falas diversas passagens
das notas de Allan Kardec presentes em Obras
Póstumas, e outras mais das Obras Básicas – uma em específico, quando
rememora a mensagem do Espírito da Verdade acerca dos escolhos decorrentes de
aceitar a missão de codificar o Espiritismo, o filme se aproveita desta para
buscar novamente imprimir pela insegurança alguma humanidade a personagem, como
se a personalidade sistemática do Codificador não bastasse para tanto. A nota
anexa a transcrição da mensagem mediúnica é a seguinte:
“Escrevo esta nota a 1º de
janeiro de 1867, dez anos e meio depois que me foi dada a comunicação acima e
atesto que ela se realizou em todos os pontos, pois experimentei todas as
vicissitudes que me foram preditas. Andei em luta com o ódio de inimigos
encarniçados, com a injúria, a calúnia, a inveja e o ciúme; libelos infames se
publicaram contra mim; as minhas melhores instruções foram falseadas;
traíram-me aqueles em quem eu mais confiança depositava, pagaram-me com a
ingratidão aqueles a quem prestei serviços. A Sociedade de Paris se constituiu
foco de contínuas intrigas urdidas contra mim por aqueles mesmos que se
declaravam a meu favor e que, de boa fisionomia na minha presença, pelas costas
me golpeavam. Disseram que os que se me conservavam fieis estavam à minha
soldada e que eu lhes pagava com o dinheiro que ganhava do Espiritismo. Nunca
mais me foi dado saber o que é o repouso; mais de uma vez sucumbi ao excesso de
trabalho, tive abalada a saúde e comprometida a existência. Graças, porém, à
proteção e assistência dos bons Espíritos que incessantemente me deram
manifestas provas de solicitude, tenho a ventura de reconhecer que nunca senti
o menor desfalecimento ou desanimo e que prossegui, sempre com o mesmo ardor,
no desempenho da minha tarefa, sem me preocupar com a maldade de que era
objeto. Segundo a comunicação do Espírito de Verdade, eu tinha de contar com
tudo isso e tudo se verificou. Mas, também, a par dessas vicissitudes, que de
satisfações experimentei, vendo a obra crescer de maneira tão prodigiosa! Com
que compensações deliciosas foram pagas as minhas tribulações! Que de bênçãos e
de provas de real simpatia recebi da parte de muitos aflitos a quem a Doutrina
consolou! Este resultado não mo anunciou o Espírito de Verdade que, sem dúvida
intencionalmente, apenas me mostrara as dificuldades do caminho. Qual não
seria, pois, a minha ingratidão, se me queixasse! Se dissesse que há uma
compensação entre o bem e o mal, não estaria com a verdade, porquanto o bem,
refiro-me às satisfações morais, sobrelevaram de muito o mal. Quando me
sobrevinha uma decepção, uma contrariedade qualquer, eu me elevava pelo
pensamento acima da humanidade e me colocava antecipadamente na região dos
Espíritos e desse ponto culminante, donde divisava o da minha chegada, as
misérias da vida deslizavam por sobre mim sem me atingirem. Tão habitual se me
tornara esse modo de proceder, que os gritos dos maus jamais me perturbaram.”
Parece-nos claro que não obstante toda campanha em contrário, toda a
tribulação, a saúde física de Allan Kardec sofreu mais que seu desejo de chegar
a um propósito – laborou para a morte, abreviou a própria existência para
alcançar um objetivo; e tão certo são suas próprias palavras para descrever um
estado de espírito inabalável quanto a lógica simples que não pode conceber um
intelectual de meia idade hesitante, inseguro, acovardado frente a um desafio mental
de tal monta – nesta altura da vida, ou se aceita ou se recusa, ou é fácil ou
simplesmente impossível. Todo o processo intelectivo exigido do professor
Rivail, certamente, não constituiu per si o maior ou mais truncado embaraço; na
qualidade de Espírito missionário, possuía as ferramentas para a execução da
tarefa. O filme peca nesta retratação, ficando muito aquém do biografado. E
nisto se concentra o seu malogro. Allan Kardec merece mais.
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