sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Fé raciocinada - porque o Espiritismo não é uma religião?

Religião, como a Filosofia, é um aspecto do conhecimento humano cuja definição não é única nem unânime; pelo contrário, sem limites claros, qualquer novidade pode ser adequada a uma e a outra. Dificilmente algum estudioso se destaca dos demais por ter uma visão mais abrangente da questão, entendendo que conhecimento o é independente de como se busque classificá-lo – mas, para isso, seria preciso realmente uma visão de conjunto algo privilegiada, dada a escassez com que é encontrada entre os homens de intelecto. Para o Espiritismo, contudo, a questão é outra e mais profunda – a recusa em categorizar a Doutrina como uma religião, proceder adotado por Allan Kardec e muitos dos aderentes fidedignos, decorre do pleno conhecimento do que perfaz a base desta e daquela; e porque ambas são antagônicas. O Codificador compreendia a questão e a expôs em diversos e inumeráveis trechos das Obras Básicas, reconhecendo o Espiritismo como o mais oportuno e potente aliado da religião, por que vem somar-lhe a base racional faltante, explicando toda sorte de fenômenos sempre reportados como milagrosos, sempre alocados à condição de mistérios de fé. Nestas oportunidades, acaso fosse o Espiritismo de fato uma religião, não seria compreensível e esperado que Allan Kardec assim procedesse, assim o definisse? A culminância do antagonismo entre a religião e a Doutrina dos Espíritos foi exposta nas Obras Básicas em O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo XIX, itens 6 e 7, por meio do qual o professor expressa:

Nada examinando, a fé cega aceita, sem verificação, assim o verdadeiro como o falso, e a cada passo se choca com a evidência e a razão. Levada ao excesso, produz o fanatismo. (…) A fé necessita de uma base, base que é a inteligência perfeita daquilo em que se deve crer. E, para crer, não basta ver; é preciso, sobretudo, compreender. (…) A fé raciocinada, por se apoiar nos fatos e na lógica, nenhuma obscuridade deixa. A criatura então crê, porque tem certeza, e ninguém tem certeza senão porque compreendeu. Eis por que não se dobra. Fé inabalável só o é a que pode encarar de frente a razão, em todas as épocas da Humanidade.

A perfeita inteligência é a mais completa compreensão possível, acerca daquilo que se deve crer e, em termos espíritas, essa é a crença nos fundamentos da Doutrina dos Espíritos. Para ilustrar a questão, vamos tomar licença para revelar uma experiência pessoal – desde há alguns anos, quando empreendemos sinceros esforços no estudo do Espiritismo, alcançamos o fundamento dos fluidos; mas o que são os fluidos? Compreende-se sua ação nos fenômenos mediúnicos, e na composição do perispírito, mas e quanto ao passe espírita? A transferência de fluidos salutares de um indivíduo para outro, como bem proceder? Havia ainda uma série de questões em aberto, e não apenas o capítulo XIV de A Gênese foi preponderante e necessário, mas um sem número de passagens da Revista Espírita precisaram ser examinados com minúcia e labor – todavia, não estávamos plenamente satisfeitos. Buscamos a rica literatura acerca dos magnetizadores que precederam Allan Kardec e o Espiritismo, desde Mesmer e seus seguidores; a figura extraordinária de Daniel Dunglas Home ofereceu igual quantidade de apontamentos, das mais variadas fontes e vertentes. Ao final destas, um experimento a que este fora submetido atingiu-nos o ânimo com redobrado interesse – fora posta sob um cesto telado invertido uma balança, a mais precisa que havia na segunda metade do século XIX, sob a qual se orientou o sr. Home a impor a mão. O espaço existente entre a mão do médium e o fundo do cesto, e deste para a superfície sensível da balança distava uns bons centímetros, o que não impediu a agulha em registrar um volume de mais de 1 quilograma; volume este invisível para o médium e para o experimentador.


Pedimos licença a um companheiro em cujo local de trabalho dispunha uma balança eletrônica, destas que se encontram amiúde no comércio, para proceder a nossa própria experiência. Dotados de toda a compreensão que nos fora dada pelo estudo atento das Obras Básicas, e pelas leituras de outros tantos livros que relacionavam a existência do fluido, dispusemos a destra 10 centímetros acima do tampo metálico sensível da balança, com o firme propósito de causar alguma reação visível, ostensiva – por meros segundos, os indicadores numéricos passaram a registrar alguma leitura, embaralhando-se em seguida, até desaparecer completamente, indicando o desligamento do aparato, permanecendo assim por algo como 15 segundos, retornando após suas funções normais. Imediatamente fez-me rememorar a relação existente entre o fluido e a eletricidade, aspecto reportado por Allan Kardec e pelos Espíritos da Codificação em vários trechos das Obras Básicas. Teria sido possível causar um dano permanente no aparelho eletrônico? Felizmente este não se verificou. Bastou-nos então, para realizar uma série de experimentos com copos de água a fim de criar substâncias ora salutares, ora deletérias – nossa esposa reportou, em mais de uma ocasião, o sabor medicamentoso das infusões fluídicas que preparamos, as quais sorveu afim de minorar toda sorte de incômodos somáticos. Acaso antes os passes que aplicávamos eram decorrência mais da ação macaqueada de terceiros, passaram então a surtir efeitos muito mais eficazmente. Não fosse o desejo patente de compreender o mais possível o fluido, sua razão de ser e seus efeitos, teríamos ad aeternum uma pendência a resolver, uma lacuna a preencher no aprendizado do Espiritismo, um aprendizado de flagrantes consequências práticas. A fé que moveu-nos durante o experimento com a balança adveio dos resultados práticos colhidos e catalogados não apenas de Allan Kardec, mas por um séquito seleto de  homens animados pelo mesmo desejo de conhecer que nos comocionou até então, e que nos orienta à ação ainda hoje. Este conhecimento pregresso forneceu-nos a base de sustentação da fé, que levou a uma compreensão peremptória da ação dos fluidos.

Seria esta a ação correntemente adotada de parte dos espíritas? Será a fé destes sempre raciocinada? Será que o fato de um sujeito tornar-se espírita, faz com que sua fé seja imediatamente raciocinada? Que procedimentos se podem adotar para consolidar a fé raciocinada do espirita? Ou será que subsiste uma tendência de acreditar, de crer sem compreender, de parte dos espíritas? Será que, amiúde não se assumem como verdades versões, narrativas e conceitos tradicionalmente repetidos, mas que não contam com comprovação? Será que a atitude corrente não é a de crer por que alguém disse, ou por que determinada instituição assim se posicionou? Os aspectos do 'sujeito espírita nacional' são condignos de exame e estudo, o que oportunamente se fará – mas colecionamos um sem número de causos de indivíduos cujo ardor da maturidade espiritual fê-los debater com toda sorte de sacerdotes, fê-los lançar dúvidas às verdades religiosas, seus dogmas e seus mistérios; porém, quando descoberto o Espiritismo, quando lançados neste mundo novo de verdades racionais, vêm se portar tais mesmos como partícipes mansos de um rebanho que aceita bovinamente tudo o que lhes chega a guisa de Espiritismo. Parece uma maturidade incompleta, que questiona o dogma, mas não os símbolos e os sinais, não as instituições e invenções humanas, não a urdidura social e a origem das tradições, não as necessidades frente aos condicionamentos.

A fé raciocinada não deve mover o sujeito apenas para compreender a origem e ação do fluido, por exemplo, mas também e principalmente para conjurar um impacto prático em sua vida, assim como infusões fluídicas podem levar a mitigar sintomas, ou a curar as moléstias que os gerou. Por que casar? Por que ter filhos? Para quê ter animais de estimação? Deve-se ter uma religião? Qual a finalidade de uma religião? Será o Espiritismo uma religião? Por que deve-se confiar nas instruções a esse respeito? Como teria Allan Kardec tratado a questão? Estas e outras indagações mais ilustram os caminhos do pensamento que fideliza-se a fé raciocinada, que não busca crer sem proceder a um exame atento, a um estudo minucioso, a experiência. Um muito bom exercício que qualquer espírita pode realizar é o cotejamento de obras mediúnicas – três livros que lidam com a figura de Jesus de Nazaré podem prestar-se a esse procedimento: O Sublime Peregrino de Ramatis, O Redentor de Edgard Armond, e Os Últimos Seis Dias de Jesus de Jamiro dos Santos Filhos. Que abordagens os autores utilizaram? A quais passagens da vida de Jesus eles se dedicaram? Há semelhança ou discordância entre as obras? Das palavras de Jesus, elas são concordes as explicações encontradas em O Evangelho Segundo o Espiritismo? Das ações de Jesus, elas são concordes as explicações encontradas em A Gênese? Assim como nós outros incorremos em comparar Há 2000 Anos do Espírito Emmanuel aos fatos historiográficos acerca da Roma e da Palestina no século I, o leitor não há de encontrar maiores entraves para executar semelhante tarefa, seguindo a sugestão aqui exposta ou abordando temática própria. Temas como fluido e erraticidade possuem uma literatura vasta, assim como a pluralidade dos mundos habitados, ou a mediunidade, ou ainda os estudos da Física acerca da natureza e origem da matéria; são, enfim, fundamentos em que o Espiritismo se assenta e que deveriam, por princípio, ser do interesse mais caro de todo espírita.

Mas, se a questão abordada é a religião, por que não começar por esta? Em artigos futuros, serão desenvolvidos com maior desvelo tais indagações, depreendendo-se por que outras razões a Doutrina dos Espíritos não é, nem pode ser, uma religião.


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