sexta-feira, 20 de setembro de 2019

A Condessa Paula

José Herculano Pires avança posteridade adentro no qualitativo de modelo de fidelidade doutrinária espírita, reportado defensor da Doutrina dos Espíritos e outorgado por Emmanuel, o obsessor de Chico Xavier, como 'o metro que melhor mediu Kardec'. Obviamente que, parte significativa do enaltecimento a sua memória e trabalho é judiciosa, mas nem mesmo o avultado, por maiores sejam seu talento literário e sagacidade mental, deve padecer de aceitação passiva – sua obra merece e deve ser revisitada, examinada, criticada, racionalizada. Sem que o proceder seja permitido neste espaço e tempo, há que chamar a atenção, todavia, para o que é conhecido por alguns como a fase mais desairosa de um intelecto privilegiado – a fusão de sua obra a de Chico Xavier; deste período em que se achegou ao médium de Pedro Leopoldo, quando aposentou momentaneamente o espírito crítico pelo qual é sempre lembrado. Uma das obras deste ciclo é O Infinito e o Finito, onde o jornalista e filósofo atreve escrever o seguinte:

Muitas pessoas encontram dificuldades em aceitar as descrições da vida de além-túmulo, dos livros de André Luiz, psicografados por Chico Xavier. Mesmo entre os espíritas, já habituados a tratar dos problemas do 'outro lado da vida', essas descrições encontraram no princípio, e ainda hoje encontram, certa relutância. (…) No tocante às revelações mediúnicas, as descrições de André Luiz não constituem novidade, a não ser quanto ao que trazem de pessoal, da maneira de ver do autor. Já em O Céu e o Inferno, Kardec apresenta descrições semelhantes. Na Revue Spirite, o codificador publicou numerosos relatos de além-túmulo no mesmo sentido.

Para quem no livro Vampirismo chamou André Luiz de neófito empolgado que às vezes emprega em suas obras termos que destoam da terminologia doutrinária e conceitos que nem sempre se ajustam aos princípios espíritas, José Herculano Pires sofreu uma metamorfose digna de nota, sujeitando-se as figuras nefastas do Espírito pseudo-sábio André Luiz e do obsessor Emmanuel. É de se especular do poder da docilidade servil e da humildade mística de Chico Xavier para haverem dobrado o caráter, até então, considerado rijo do jornalista. Ou, como presumem observadores outros, houvera sempre um desejo velado de José Herculano Pires pela ascensão e reconhecimento como escritor, algo que talvez não haja ocorrido na medida de suas expectativas - mal algum faria, portanto, estar atado a um best-seller da categoria do matuto mineiro; ao que, para este, outrossim, não constituiria senão a vantagem de aderir a si a respeitabilidade outorgada ao primeiro graças a reputação de fiel servidor do Espiritismo. Sejam por estas ou outras razões, José Herculano Pires encerra em si a contradição por haver deferido uma obra claramente pseudo-sábia, enquanto a figura de Chico subsiste menos arranhada, ainda que seja o responsável passivo pelos livros destes.

Embora uma pesquisa superficial revele estes fatos biográficos e bibliográficos de José Herculano Pires, alguns autores ou entusiastas das ideias de André Luiz e que tais porfiam na idolatria da personalidade, tomando por irrecusáveis as ideias deste, e de outros mais; assim opera o autor Paulo Neto em sua obra As Colônias Espirituais e a Codificação. Este tomo foi detidamente compulsado nas pesquisas que levaram a composição de rica obra acerca da deturpação da erraticidade empreendida pela ideologia das Colônias Espirituais, de autoria nossa, que um dia será dado a publicação. Até lá, este livro de Paulo Neto constitui material interessante, posto que, apanhando da tradicional autoridade dada a José Herculano Pires, ele busca embasar sua defesa de uma erraticidade materialista. E, a exemplo deste, o autor também buscou nas Obras Básicas do Espiritismo o que não está lá; assim escreve ele:

O que é mais importante na obra O Céu e o Inferno vem agora. Trata-se de uma mensagem assinada pela Condessa Paula, classificada por Kardec entre os Espíritos felizes. Depois de destacar as qualidades morais da Condessa, informando que ela havia falecido aos 36 anos de idade, no ano de 1851, que 'um de seus parentes evocou-a doze anos depois de falecida, e obteve, em resposta a diversas perguntas, a seguinte comunicação.

Procede em seguida a transcrever todo o referido e volumoso fragmento de O Céu e o Inferno, o que não se fará aqui senão em parte, ao que conclui nos seguintes termos:

Fizemos questão de transcrever tudo, porquanto, além das 'moradias aéreas', a Condessa informa outras particularidades da vida espiritual. Aqui, então, podemos afirma com segurança, que na Codificação tem, sim, aquilo que alguns confrades querem combater como se não fosse doutrinário.

Quando José Herculano Pires atesta que em O Céu e o Inferno há descrições semelhantes àquela das obras do Espírito André Luiz, não é possível saber a que se refere, uma vez que examinada a obra da Allan Kardec não é possível encontrar cousa algum análoga as Colônias Espirituais; o detalhe aqui é que o jornalista empreendeu esforços para lançar sua própria tradução das Obras Básicas, além da Revista Espírita – para Paulo Neto, contudo, a resposta a esta referência é a Condessa Paula. Um trecho em particular da mensagem de tal nobiliárquico Espírito necessita ser transcrito:

Tendes razão, amigo, em pensar que sou feliz. Assim é, efetivamente, e mais ainda do que a linguagem pode exprimir, conquanto longe do seu último grau. Mas eu estive na Terra entre os felizes, pois não me lembro de haver aí experimentado um só desgosto real. Juventude, homenagens, saúde, fortuna, tudo o que entre vós outros constitui felicidade eu possuía! O que é, no entanto, essa felicidade comparada à que desfruto aqui? Esplêndidas festas terrenas em que se ostentam os mais ricos paramentos, o que são elas comparadas a estas assembleias de Espíritos resplendentes de brilho que as vossas vistas não suportariam, brilho que é o apanágio da sua pureza? Os vossos palácios de dourados salões, que são eles comparados a estas moradas aéreas, vastas regiões do Espaço matizadas de cores que obumbrariam o arco-íris? Os vossos passeios, a contados passos, a que se reduzem, comparados aos percursos da imensidade, mais céleres que o raio?

Em diversas comunicações registradas e catalogadas por Allan Kardec, seja em O Céu e o Inferno, seja nas milhares de páginas dos doze volumes da Revista Espírita, o professor lionês, quando ante um Espírito que, a exemplo da Condessa Paula possui progresso tal que o relaciona aos Espíritos de escol, sempre prodigalizou indagar da condição e destino deste – e sempre um mundo de maior progresso é aludido, seja por este seja por aquele. Júpiter mesmo é apontado amiúde por Allan Kardec, como exemplo de mundo superior, para onde vão os Espíritos de maior progresso. Segundo parece, a questão aqui é simplesmente de saber interpretar o que está escrito – a Condessa Paula descreve, por meio de analogias, ou seja, concebendo uma relação de semelhança entre cousas ou fatos distintos, tudo quanto sente e vê, o seu estado enfim. Não se escusa um certo lirismo próprio do Espirito, de fato, mas não se arrolaria tal mensagem ao ordinário da literatura mediúnica própria das obras que defendem as Colônias Espirituais. Quando ela questiona que 'os vossos palácios de dourados salões, que são eles comparados a estas moradas aéreas, vastas regiões do Espaço matizadas de cores que obumbrariam o arco-íris?', ela cria uma correspondência entre o local em que está e aqueles próprios da Terra; mas, porque concluir forçosamente tratar-se de uma Colônia Espiritual, ou algo de mesma natureza, posto que a equivalência maior está para com as moradias aéreas existentes em Júpiter? A mesma pareidolia se verifica quanto a mensagem encontrada em O Evangelho Segundo o Espiritismo, em seu capítulo XI, item 11, intitulada O Egoísmo, assinada apenas por Emmanuel – grande número de 'espíritas' credita a mesma ao obsessor de Chico Xavier, quando em realidade é de autoria de Emmanuel Swedemborg, este sim Espírito presente desde o princípio na Codificação do Espiritismo.

Contudo, uma observação atenta atesta que o nobre Espírito apanha de uma referência conhecida ao seu interlocutor, qual seja um palácio como exemplo de moradia suntuosa e de grandes dimensões, para buscar revelar o local onde erra, ou seja, um espaço multicolorido de enorme extensão – mas, o restante de sua mensagem dá a chave para se compreender o destino da jovem fidalga doze anos após seu decesso; assim ela expressa-se:

As ocupações, posto que isentas de fadiga, revestem-se de perspectivas e emoções variáveis e incessantes, pelos mil incidentes que se lhes filiam. Tem cada qual sua missão a cumprir, seus protegidos a velar, amigos terrenos a visitar, mecanismos da natureza a dirigir, almas sofredoras a consolar; e é o vaivém, não de uma rua a outra, porém, de um a outro mundo; reunimo-nos, separamo-nos para novamente nos juntarmos; e, reunidos em certo ponto, comunicamo-nos o trabalho realizado, felicitando-nos pelos êxitos obtidos; ajustamo-nos, mutuamente nos assistimos nos casos difíceis. Finalmente, asseguro-vos que ninguém tem tempo para enfadar-se, por um segundo que seja.

Eis a descrição de um Espírito feliz a errar pela eternidade - 'é o vaivém, não de uma rua a outra, porém, de um a outro mundo'. Não é de subtrair a ideia que faz das Colônias Espirituais cidades que, como tal, possuem seus logradouros, avenidas e ruelas; a Condessa Paula já não mais caminha por tais paragens terrestres, pois o pensamento a leva percorrer os mundos do firmamento infinito, com a intimidade e a familiaridade de quem atravessa os cômodos da própria residência. É a paga pelo progresso alcançado – um universo sem portas, cuja vastidão é convidativa e a acolhida é a de Deus por intermédio dos Espíritos familiares. Em ensaios previamente postados aqui, estas questões já foram tangidas e repisadas, para que não falte ao leitor subsídios para compreender a erraticidade qual prescrita pelo Espiritismo; nestes tempos revisionistas, é sempre necessário manter a vigília para que o erro não persista, para que a Doutrina dos Espíritos não seja conspurcada pela ação de autores como Paulo Neto e José Herculano Pires. Qual sejam suas motivações, as consequências de suas obras apenas diminuem o Espiritismo, eivando seus fundamentos com ideias aberrantes que, no âmago, constituem a expressão de um materialismo oriundo dos atavismos de eras ancestrais.

O Cosmo é muito maior do que pregam os autores aqui abordados, e a Condessa Paula vem dar seu contributo ao Espiritismo para expô-lo em toda sua beleza e magnitude.
_____

A nobre ao lado é Caroline Esterházy, Condessa de Galántha, amiga e musa do compositor Franz Schubert; nascida em Pressburg, outrora Reino da Hungria, atual Bratislava na Eslováquia, morreu em 1851, a exemplo da Condessa Paula, cuja identidade prossegue uma completa incógnita, apesar dos esforços empreendidos para descobrir a mulher por trás da mensagem. Certamente que sua identidade fora resguardada por Allan Kardec, ainda que por razões que nos escapam. Caroline aqui está para ilustrar como poderia parecer-se a Condessa Paula, com as vestimentas e o penteado próprios da primeira metade do século XIX. Cremos que, por haver sido nobre e abastada, a Condessa Paula possua registros relativamente precisos de sua passagem pela Terra, e até mesmo algum retrato pintado n'algum museu ou parede da residência de algum descendente, o que chama à pesquisa.

Nenhum comentário: