quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Das Luzes de Emmanuel

1. Introito
Via-lhe os traços fisionômicos de homem idoso, sentindo minha alma envolvida na suavidade de sua presença, mas o que mais me impressionava era que a generosa entidade se fazia visível para mim, dentro de reflexos luminosos que tinham a forma de uma cruz.

Essas palavras escritas de próprio punho por Francisco Cândido Xavier constam de um sem número de obras, reportagens, artigos e toda sorte de documento que busca reproduzir a ocasião em que se deu o primeiro encontro do maior médium brasileiro de todos os tempos com seu 'mentor' espiritual. Originalmente ela integra a introdução do livro que leva o nome deste, Emmanuel. Este não é um nome qualquer – aparece em duas ocasiões na Bíblia, ambas referindo-se a Jesus. A primeira consta do Velho Testamento, em Isaías, capítulo 7, versículo 14, pode-se ler: “Portanto, o mesmo Senhor vos dará um sinal: eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chamará o seu nome Emanuel”. A seguinte está no Evangelho de Mateus, capítulo 1, versículo 23: “Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chamá-lo-ão pelo nome de Emanuel, que traduzido é: Deus conosco”. É um nome bíblico e profético, justamente porque integra as previsões acerca da vinda de Jesus no seio do povo hebreu – que Espírito tem envergadura para sustentar um nome com tal importância? O 'mentor' espiritual de Chico Xavier, é apontado, frequentemente, como um luminar digno de alcunhar-se com este nome. Contudo, o presente artigo apontará fatos objetivando ir a favor das recomendações da Doutrina dos Espíritos, buscando identificar Emmanuel para além da crença e da imprudente idolatria; é o Espírito desnudo que interessa passar pelo crivo da razão e do Controle Universal dos Ensinamentos dos Espíritos – como o afirmado por Allan Kardec em O Livro dos Médiuns:

Julgam-se os Espíritos, como os homens, pela sua linguagem.

As ações de Emmanuel, ou antes, aquelas que se podem arrolar na categoria de orientações diretas a Chico Xavier, estas serão alvo de artigo futuro. Todavia, uma apenas dentre estas deve figurar aqui no interesse de explicitar em parte, seu progresso; e pois, por que justamente o fato se encontra na base, ou antes, no princípio da relação ostensiva de ambos – o ato de haver surgido para este sob os reflexos cruciformes de luz. O estudioso do Espiritismo, afeito e familiarizado com O Livro dos Médiuns sabe que esta pantomima não é consequência do progresso íntimo do Espírito, como pode ser levado a pensar um leitor menos apto diante desta narrativa de ares fantásticos. Ao contrário, a manipulação fluídica que permite esta espécie de efeito sinaliza para um Espírito inferior – o tomo à pouco citado, em seu capítulo V, intitulado Das Manifestações Físicas Espontâneas revela o seguinte:

85. Dissemos atrás que as manifestações físicas têm por fim chamar-nos a atenção para alguma coisa e convencer-nos da presença de uma força superior ao homem. Também dissemos que os Espíritos elevados não se ocupam com esta ordem de manifestações; que se servem dos Espíritos inferiores para produzi-las, como nos utilizamos dos nossos serviçais para os trabalhos pesados, (...). Alcançado esse fim, cessa a manifestação material, por desnecessária.

Assim sendo, pode-se apontar que Emmanuel não é mais que um Espírito inferior a manipular as mais intimas crenças, senão as fortes impressões religiosas que guardava Chico Xavier. Porém, O Livro dos Médiuns ainda tem alguns acréscimos a serem feitos para chegar-se a uma conclusão a contento quanto ao caso:

19ª A visão dos Espíritos se produz no estado normal, ou só estando o vidente num estado extático?
Pode produzir-se achando-se este em condições perfeitamente normais. Entretanto, as pessoas que os vêem se encontram muito amiúde num estado próximo do de êxtase, estado que lhes faculta uma espécie de dupla vista."

Quando teve a visão de Emmanuel por si descrita, Chico Xavier estava à beira de um açude, sob uma árvore para onde sempre acorria com o fito de afastar-se de dissabores da vida, fazendo suas rezas para angariar forças e serenidade. O fenômeno que descreveu pode tanto haver decorrido da ação direta do Espírito, quanto de sua disposição de alma, mais ou menos liberta por conta do estado mental originado das orações e do ambiente bucólico e aprazível, sendo resultado de um estado quase extático - ou que ambas hajam ocorrido em simultâneo, não é impossível, imagina-se. Qualquer que seja sua origem, todavia, impressionou o jovem Chico Xavier aquela figura sacerdotal imponente que, segundo afirmou, impôs-lhe rigorosa disciplina diante da tarefa, a princípio, de compor trinta obras, todas de autores desencarnados - tarefa cumprida sem ressalvas.

2. Uma atuação anômala
Quem pode afirmar, assim como Chico Xavier, conhecer seu benfeitor espiritual? Para ele, seu 'mentor'. O uso desta terminologia não corresponde ao Espiritismo, uma vez que um mentor é o guia do pensamento do sujeito, alguém a quem se consulta quando diante de uma decisão, alguém de grande experiência em determinado campo, e cujos conselhos costuma-se considerar e acatar. Essa relação prescreve uma ostensiva interação, o que não ocorre com o benfeitor ou guia espiritual, cuja ação oculta inspira mais que manda, oferta possibilidades mais do que indica a direção, insufla bom ânimo mais do que força a ação. Allan Kardec interessou-se vivamente pela atuação destes Espíritos, popularmente conhecidos como anjos guardiões, mas que são, espiriticamente falando, chamados por guias espirituais ou, para corresponder mais exatamente as suas funções, benfeitores espirituais. Em O Livro dos Espíritos, o Codificador assim questiona:

501. Por que é oculta a ação dos Espíritos sobre a nossa existência e por que, quando nos protegem, não o fazem de modo ostensivo?
Se vos fosse dado contar sempre com a ação deles, não obraríeis por vós mesmos e o vosso Espírito não progrediria. Para que este possa adiantar-se, precisa de experiência, adquirindo-a frequentemente à sua custa. É necessário que exercite suas forças, sem o que, seria como a criança a quem não consentem que ande sozinha. A ação dos Espíritos que vos querem bem é sempre regulada de maneira que não vos tolha o livre-arbítrio, porquanto, se não tivésseis responsabilidade, não avançaríeis na senda que vos há de conduzir a Deus. Não vendo quem o ampara, o homem se confia às suas próprias forças. Sobre ele, entretanto, vela o seu guia e, de tempos a tempos, lhe brada, advertindo-o do perigo."

Em O Céu e o Inferno há uma passagem interessante acerca destes:

Quaisquer que sejam a inferioridade e perversidade dos Espíritos, Deus jamais os abandona. Todos têm seu anjo da guarda (guia) que por eles vela, espreita-lhes os movimentos da alma, e se esforçam por suscitar-lhes bons pensamentos, desejos de progredir, de reparar em uma nova existência o mal que praticaram. Contudo, essa interferência do guia faz-se quase sempre ocultamente e de modo a não haver pressão, pois que o Espírito deve progredir por impulso da própria vontade, nunca por qualquer sujeição.

Emmanuel corresponde ao perfil do guia espiritual? Para quem deveria, por princípio, ocultar-se, o 'mentor' de Chico Xavier é bastante conhecido – em vidas passadas teria sido sacerdote egípcio, senador romano, escravo hebreu, santo da Igreja Católica, padre jesuíta em missão no novo mundo; o sacerdócio parece ter-lhe tocado mais vivamente a alma, pois abraçara esta vida para si em outras experiências reencarnatórias mais. Suas vidas passadas não foram reveladas a Chico Xavier no sigilo e recolhimento do ambiente doméstico, como informes muito particulares a serem mantidos ocultos à vista alheia – o Espírito compôs obras, narrativas romanceadas dessas vidas, revelando-se por um veículo de massa popular ao maior número possível dentre os aderentes de seu protegido, e do 'espiritismo'. Não fosse de tal conta anômala esta atuação de Emmanuel, registradas ainda foram suas pontuais intervenções junto ao médium mineiro, eventualmente reproduzidas por este em um tom anedótico, extravagante; são o retrato assinalado em artigos de uma relação disfuncional, que passou a posteridade como o testemunho e o paradigma do que deveria ser a atuação de um Espírito guia – esta é a visão geral do 'movimento espírita nacional'. Apontado pela Doutrina dos Espíritos como oculta a ação destes, onde dispor Emmanuel? Como considerá-lo? Abordada serão as possíveis respostas na conclusão do presente artigo – assinala-se, contudo, que a ação de Emmanuel fora heterodoxa, não correspondendo ao prescrito pelo Espiritismo, equivalendo ipsis litteris esta a experiência humana geral, em que são raros os indivíduos ostensivamente familiarizados a figura de seus benfeitores espirituais. De Emmanuel, tão pródigo em ditar livros, são estes tais o elemento em estudo e foco do interesse mais imediato.

3. Suas obras diante dos fatos
Em 1927 Emmanuel começou a ditar mensagens por meio de Chico Xavier, em fazenda de amigos espíritas de seu pai, que, enfim vieram trazer as explicações para as visões e vozes que o matuto de Pedro Leopoldo via e ouvia, e prosseguiria ouvindo e vendo até o último de seus dias, mais de setenta anos depois – mas, foi distante destes companheiros que, enfim, se veria diante do Espírito, que lhe surgiu como narrado no início deste opúsculo, fato que se deu em 1931. A partir de então, acostumado as pancadas e mandos da vida, para o qual seu temperamento servil fez joguete sempre,  passou o médium a arrolar, para além das prosas, narrativas inteiras. A psicografia dos livros vinha cumprir um acordo com Emmanuel, acordo que se renovaria mais tarde, até ser rompido por este de modo abrupto, assunto pertinente para futuro artigo. Ele mesmo, seu 'mentor', dera-se a narrar não apenas instruções ou mensagens de cunho moralizante, mas romances de época, histórias de suas pregressas experiências na senda da carne – todo o conjunto destas configura rico documento para a análise do estudioso, um caso ímpar que merece exame atento e minucioso. Teria sido, Chico Xavier, um protegido tão probo que não oferecera desafio a Emmanuel, a ponto deste ter muito tempo livre para a literatura?

Para o momento, no mais, basta considerar aspectos os mais ilustrativos de parte do que compusera o Espírito; na obra que leva seu nome, encontram-se os seguintes trechos, por exemplo:

QUEM SÃO OS MÉDIUNS NA SUA GENERALIDADE
Os médiuns, em sua generalidade, não são missionários na acepção comum do termo; são almas que fracassaram desastradamente, que contrariaram, sobremaneira, o curso das leis divinas, e que resgatam, sob o peso de severos compromissos e ilimitadas responsabilidades, o passado obscuro e delituoso. O seu pretérito, muitas vezes, se encontra enodoado de graves deslizes e de erros clamorosos. Quase sempre, são Espíritos que tombaram dos cumes sociais, pelos abusos do poder, da autoridade, da fortuna e da inteligência, e que regressam ao orbe terráqueo para se sacrificarem em favor do grande número de almas que desviaram das sendas luminosas da fé, da caridade e da virtude. São almas arrependidas que procuram arrebanhar todas as felicidades que perderam, reorganizando, com sacrifícios, tudo quanto esfacelaram nos seus instantes de criminosas arbitrariedades e de condenável insânia.

AS OPORTUNIDADES DO SOFRIMENTO
As existências dos médiuns, em geral, têm constituído romances dolorosos, vidas de amargurosas dificuldades, em razão da necessidade do sofrimento reparador; suas estradas, no mundo, estão repletas de provações, de continências e desventuras. Faz-se, porém, necessário que reconheçam o ascetismo e o padecer, como belas oportunidades que a magnanimidade da Providência lhes oferece, para que restabeleçam a saúde dos seus organismos espirituais, combalidos nos excessos de vidas mal orientadas, nas quais se embriagaram à saciedade com os vinhos sinistros do vicio e do despotismo. Humilhados e incompreendidos, faz-se mister que reconheçam todos os benefícios emanantes das dores que purificam e regeneram, trabalhando para que representem, de fato, o exemplo da abnegação e do desinteresse, reconquistando a felicidade perdida.

NECESSIDADE DA EXEMPLIFICAÇÃO
Todos os médiuns, para realizarem dignamente a tarefa a que foram chamados a desempenhar no planeta, necessitam identificar-se com o ideal de Jesus, buscando para alicerce de suas vidas o ensinamento evangélico, em sua divina pureza; a eficácia de sua ação depende do seu desprendimento e da sua caridade, necessitando compreender, em toda a amplitude, a verdade contida na afirmação do Mestre: “Dai de graça o que de graça receberdes.” Devendo evitar, na sociedade, os ambientes nocivos e viciosos, podem perfeitamente cumprir seus deveres em qualquer posição social a que forem conduzidos, sendo uma de suas precípuas obrigações melhorar o seu meio ambiente com o exemplo mais puro de verdadeira assimilação da doutrina de que são pregoeiros. Não deverão encarar a mediunidade como um dom ou como um privilégio, sim como bendita possibilidade de reparar seus erros de antanho, submetendo-se, dessa forma, com humildade, aos alvitres e conselhos da Verdade, cujo ensinamento está, freqûentemente, numa inteligência iluminada que se nos dirige, mas que se encontra igualmente numa provação que, humilhando, esclarece ao mesmo tempo o espírito, enchendo-lhe o íntimo com as claridades da experiência.

Esta tríade de pequenos textos guarda características de uma profissão de fé, uma declaração que se impôs como receita para a vida de muitos médiuns, em especial o que as psicografou. Seu autor afirma que os médiuns são, em sua generalidade, desastrosos fracassados – a generalização, porém, resulta em adotar absolutamente uma concepção acerca de algo, sem lhe considerar as partes ou os pormenores. Ela é a base de muitos preconceitos, ou ideias previas acerca de algo desconhecido ou conhecido apenas em parte – ninguém arriscaria apontar que todos os médiuns, sem exceção, são indivíduos cujas experiências de vidas passadas se mostraram fracassadas. O que diz o bom senso? Emmanuel precisaria conhecer a totalidade da experiência humana para afirmar algo de tal natureza sem o risco de parecer ridículo; sua mão pesada se impõe em um texto afeito a uma sentença de condenação. Contudo, mais adiante ele se contradiz ao adotar expressões menos absolutas, quando afirma que ‘muitas vezes’ têm eles passados plenos de erros, ou ‘quase sempre’ são indivíduos que abusaram da autoridade, ou poder. Ainda assim, afirmá-lo é denunciar um certo espírito precipitado, uma certa opressão que tende a ostentar uma superioridade de per si – não poucos, por certo, hão de crer que Emmanuel é sim possuidor de um conhecimento tal da alma humana, e das experiências pelas quais a coletividade terrestre passou, que positivamente tem autoridade para sustentar tais ordens de afirmações. Considerar, porém, a prescrição de Emmanuel é preconceber, é partir de uma falsa premissa com base numa amostragem limitada, ou antes desconhecida, de indivíduos.

Porém, o problema maior, ainda mais grave que a generalização, é o Espírito sustentar uma ideia equivocada do que seja a mediunidade – nota-se isto ao tomá-la, senão como dom ou missão, mas como seu oposto, ou seja, uma espécie de maldição, uma sina que se abate sobre o indivíduo como oportunidade de sanar as dívidas pregressas de que faz referência constante. Em O Livro dos Médiuns, capítulo XIV, Allan Kardec define assim ao médium:

Todo aquele que sente, num grau qualquer, a influência dos Espíritos é, por esse fato, médium. Essa faculdade é inerente ao homem; não constitui, portanto, um privilégio exclusivo. Por isso mesmo, raras são as pessoas que dela não possuam alguns rudimentos. Pode, pois, dizer-se que todos são, mais ou menos, médiuns.

Acaso não fossem todos médiuns, de modo mais ou menos ostensivo, por quais meios receber-se-iam as instruções, bons conselhos e bons ânimos dos benfeitores espirituais? Não saber distinguir a ação destes, porém, não anula que seus pensamentos se confundem ao de seus guiados, perfazendo assim o limite de sua ação, oculta e sigilosa, mas sempre presente. A mediunidade é uma faculdade, portanto, e sua ação, permitindo a comunicação ostensiva entre seres em instâncias distintas de existência, assemelha-se a fala humana - considerar o escrito por Emmanuel, seria o mesmo que afirmar que nascer com dois braços é sinal de falência moral de vidas passadas. Ou seja, a mediunidade é constitutiva do ser encarnado, característica essencial deste. Por considerá-la como fenômeno fantástico, sobrenatural, forçosamente a fantasia exige que seja tida como a definiu este – contrária, portanto, ao que prega e demonstra o Espiritismo. Que sabe este Espírito da mediunidade e dos médiuns? Emmanuel faz retroceder a mediunidade a um fadário, acrescendo a ela um ascetismo místico, evocando a condição do pecado original católico, envolvendo o leitor na atmosfera da tradição da mortificação na própria carne, na autoflagelação como forma de purificação espiritual. Parece que o 'mentor' de Chico Xavier dá eco a Roustaing e seu Docetismo, cuja origem remonta ao gnosticismo que prega que o mundo material é mau e corrompido – eis um fato, aliás, pouco conhecido acerca de Emmanuel. Seu roustainguismo está expresso, por exemplo, no prefácio que compôs para a obra Vida de Jesus, livro de Antônio Lima, onde defende os princípios contidos em Os Quatro Evangelhos. Chico Xavier fora orientado por um Espírito aderente de Roustaing? Deste autor e sua obra, o artigo datado de 3 de agosto de 2019 os toma como objeto de exame.

Outro livro de Emmanuel cujo conteúdo é do interesse do presente é O Consolador. Por si só, a obra constitui uma anomalia, visto que, composto no sistema de perguntas e respostas, é dividido em três partes, cada qual respectivamente correspondente ao assim chamado tríplice aspecto do qual se supõe que o Espiritismo seja constituído, qual seja a Ciência, a Filosofia e a Religião – este sofisma enganou a muitos, alguns bastante capacitados. As questões do livro são dirigidas senão ao próprio Emmanuel, que convertido em expoente do saber cósmico, inadvertidamente ombreia-se a Ramatis e outros tais, vertendo para a assistência fascinada um manancial de conceitos particulares, como se fossem a expressão da verdade absoluta. Obviamente tal exercício convertido em livro não está em adequação ao Controle Universal dos Ensinamentos dos Espíritos prescrito por Allan Kardec, bastando senão como curiosidade, jamais para efeito de Doutrina. A questão de nº 323 deste, por exemplo, brinda o leitor com o seguinte:

323 – Será uma verdade a teoria das almas gêmeas?
– No sagrado mistério da vida, cada coração possui no Infinito a alma gêmea da sua, companheira divina para a viagem à gloriosa imortalidade. Criadas umas para as outras, as almas gêmeas se buscam, sempre que separadas. A união perene é-lhes a aspiração suprema e indefinível. Milhares de seres, se transviados no crime ou na inconsciência, experimentaram a separação das almas que os sustentam, como a provação mais ríspida e dolorosa, e no drama das existências mais obscuras vemos sempre a atração eterna das almas que se amam mais intimamente, envolvendo umas para as outras num turbilhão de ansiedades angustiosas; atração que é superior a todas as expressões convencionais da vida terrestre. Quando se encontram no acervo real para os seus corações – o da ventura de sua união pela qual não trocariam todos os impérios do mundo, e a única amargura que lhes empana a alegria é a perspectiva de uma nova separação pela morte, perspectiva essa que a luz da Nova Revelação veio dissipar, descerrando para todos os Espíritos amantes do bem e da verdade os horizontes eternos da vida.

O estudioso tem em mente já as questões iniciadas em O Livro dos Espíritos, a partir da de número 298 e seguintes, acerca das metades eternas, ou almas gêmeas – a resposta dos Espíritos Superiores da Codificação é flagrantemente contrária ao que defende Emmanuel. Mas, prossegue este Espírito em sua obra:

243 – Todos os Espíritos que passaram pela Terra tiveram as mesmas características evolutivas, no que se refere ao problema da dor?
– Todas as entidades espirituais encarnadas no orbe terrestre são Espíritos que se resgatam ou aprendem nas experiências humanas, após as quedas do passado, com exceção de Jesus Cristo, fundamento de toda a verdade neste mundo, cuja evolução se verificou em linha reta para Deus, e em cujas mãos angélicas repousa o governo espiritual do planeta, desde os seus primórdios.

Como provar que Jesus progrediu em ‘linha reta para Deus’? O comentário de Allan Kardec a questão 127 de O Livro dos Espíritos é de imediato evocado, trazendo a compreensão segundo a qual, por mais benévolo haja sido um Espírito em particular, todos ‘precisam adquirir a experiência e os conhecimentos indispensáveis para alcançar a perfeição’. São afirmações desta natureza que transtornam a fé dos neófitos, desnudam o Espírito para os estudiosos, e sedimentam o engodo nos círculos afeitos ao Espiritismo, legítimos ou não. Emmanuel guardava, então, algum conhecimento acerca das Obras Básicas que compõem a Doutrina dos Espíritos? Observemos outra de suas obras, talvez a mais famosa dentre elas – Há 2000 Anos.

Esta narrativa de época apresenta uma de suas experiências passadas, tendo nesta sido um senador romano de nome Públio Lêntulo Cornélio Sura, que, contemporâneo de Jesus, teria visto a este em sua passagem pela Palestina. Públio fora senador romano, bisneto do primeiro Públio seu homônimo, conspirador ao lado de Lúcio Sérgio Catilina, que buscou derribar a República Romana, particularmente o poder oligárquico do senado. Não existem quaisquer provas de que este, executado em 63 a.C., tenha deixado descendentes; seus despojos foram reclamados por Marco Antônio, tarefa cuja burocracia exigia caber a seus filhos ou descendentes diretos. Este descendente de Sura conspirador, suposto bisneto, e suposta identidade passada de Emmanuel, diz-se no texto do livro, possuía uma filha, de nome Flávia Lentúlia, o que cria uma anomalia onomástica – seu nome deveria ser Cornélia, por ser filha de um Cornélio; poucas opções de nome caberiam a filha de Sura, mas nenhuma que fosse a adotada na obra.

Há que considerar, igualmente, outros equívocos presentes na obra – por exemplo, o imbróglio administrativo causado pela presença de um senador romano na Palestina àquele tempo – “(...) mas não conhecia Jerusalém, onde o esperavam como legado do Imperador, para a solução de vários problemas administrativos de que fora incumbido junto ao governo da Palestina.” A província da Judéia estava sob a supervisão da Síria e, acaso houvesse a necessidade de uma missão para a solução de problemas administrativos, há duas possibilidades de ação de parte das autoridades romanas. Primeiramente, o legado propretoriano da Síria mandaria alguém de seu séquito, por certo um cavaleiro para lidar com a questão junto ao prefeito / procurador da Judéia ou, num segundo momento, se mais grave fosse o caso, o legado da Síria convocaria o prefeito / procurador da Judéia a Antióquia para se explicar, e se não fosse satisfeito, iria suspender a este de suas funções, enviando-o a Roma para que se explicasse, pessoalmente, ao Imperador. Este jamais enviaria um legado de nível senatorial a Judéia, posto que isto criaria uma série de problemas. Segundo a psicografia, Lêntulo Sura fora um senador, enquanto Pôncio Pilatos era um cavaleiro, inferior ao primeiro, social e hierarquicamente. Pondo os pés na Judéia, Lêntulo daria ordens a Pilatos, nunca o tratando como semelhante, proceder adotado pelo primeiro frente ao segundo conforme alega o texto de Emmanuel, equivocadamente.


Tanto este parece desconhecer os meandros internos da administração romana que, a altura tanta do livro, há registrado que Lêtulo Sura servira um ano na administração da cidade de Esmirna (terceira maior cidade da Turquia, atualmente), com o fito de melhor integrar-se nos mecanismos dos trabalhos do Estado. Esmirna era cidade da província da Ásia (província senatorial de nível consular), e possuía um governo municipal autônomo, com um magistrado ornado com o título de ‘coroado’, além de sede de um conventus juridici, quer dizer, local onde o procônsul realizava audiências, uma vez ao ano. Não era, portanto, um local para onde se enviavam funcionários romanos, muito menos um que atuasse como administrador – jamais poderia ser como Emmanuel narra, simplesmente porque não condiz com a realidade histórica.

Um último exemplo do desconhecimento de Emmanuel acerca do que ele afirma ser sua existência passada - por ocasião da Páscoa do ano 33, o texto informa: “As autoridades romanas, por sua vez, concentravam-se, igualmente, em Jerusalém, na mesma ocasião, reunindo-se na cidade quase todos os centuriões e legionários, destacados a serviço do Império, nas paragens mais remotas da província.”. Bem, antes da revolta do ano 66 d.C., jamais puseram os pés na Judéia nenhuma legião romana, sendo a guarnição da província feita por corpos auxiliares de infantaria, tanto quanto de cavalaria. Ao que parece, o senador Cornélio Sura, de quem não se tem registro histórico algum, deveria ter ideias bastante arejadas e avançadas ao seu tempo para, entre dar um nome gentio a própria filha e permitir-se uma visitinha a Palestina de antão, voltar seu interesse para um agitador judeu condenado, dele compondo um documento, o enviando a seus colegas de assembleia. A este suposto bisneto de Lêtulo Sura conspirador, atribui-se esta carta, uma declaração que teria sido escrita com a descrição da aparência física de Jesus de Nazaré. Historiadores do Vaticano desde há muito identificaram este registro como uma fraude datada do século XIII. Cabe a Emmanuel dar explicações acerca destes problemas identificados em sua narrativa? Conviria evocá-lo?

Em A Caminho da Luz, Emmanuel mete-se a defender uma teoria relativamente antiga acerca da formação do planeta Terra:

A primeira, verificou-se quando o orbe terrestre se desprendia da nebulosa solar, a fim de que se lançassem, no Tempo e no Espaço, as balizas do nosso sistema cosmogônico e os pródromos da vida na matéria em ignição, do planeta, e a segunda, quando se decidia a vinda do Senhor à face da Terra, trazendo à família humana a lição imortal do seu Evangelho de amor e redenção.

Não é propriamente um ensaio acerca da questão, mas será preciso atentar para a afirmação segundo a qual o planeta originou-se a partir do Sol. Esta é uma teoria conhecida e reconhecida pela Ciência, chamada de Teoria da Projeção, primeiramente defendida por Georges-Louis Leclerc, ou apenas Conde de Buffon. Naturalista, matemático e escritor francês, foi um intelectual muito afamado em seu tempo, cujas teorias e ideias refletir-se-iam em figuras como Darwin e Lamarck. Allan Kardec, acerca da Teoria da Projeção do Conde de Buffon, discorre em A Gênese:

De todas as teorias concernentes à origem da Terra, a que alcançou maior voga, (...) é a de Buffon, quer pela posição que ele desfrutava no mundo sábio, quer pela razão de não se saber mais do que ele disse naquela época. (...) sendo o Sol uma massa incandescente em fusão, um cometa se haja chocado com ele e, raspando-lhe a superfície, tenha destacado desta uma porção que, projetada no espaço pela violência do choque, se dividiu em muitos fragmentos, formando esses fragmentos os planetas, que continuaram a mover-se circularmente, pela combinação das forças centrífuga e centrípeta, no sentido dado pela direção do choque primitivo, isto é, no plano da eclíptica.

Prossegue o Codificador, em seguida, elencando em cinco itens as razões pelas quais a teoria de Buffon, a Teoria da Projeção, tornara-se obsoleta. A sucessão de detalhes ali expostos é para o leitor um convite ao estudo – mas, vale recordar, ou revelar alguns pontos importantes. A Gênese foi lançada em 1868. O Conde de Buffon desencarnara em 1788. Ou seja, cerca de 80 anos separam as ideias de Buffon das descobertas que vieram após, e que são detidamente abordadas por Allan Kardec no trecho aludido da obra, e que vieram descartar a Teoria da Projeção. Após 71 anos desde A Gênese, Emmanuel entrega ao mundo A Caminho da Luz, redimindo Buffon e descartando Allan Kardec e a Ciência, demonstrando os limites de seu conhecimento das obras espíritas, tanto quanto do progresso do conhecimento humano. Mais uma década se passaria e Edgard Armond faz publicar Exilados de Capela, livro em que retoma a Teoria da Projeção, ombreando Emmanuel, e assumindo o papel de contraditor do Espiritismo.

Este conjunto particular de questões levantadas acerca de Emmanuel, em suas obras aliás, formam a síntese pela qual se pode alcançar algumas conclusões primordiais – a princípio, o 'mentor' de Chico Xavier longe está de ter as luzes a si atribuídas; e os ilustrativos exemplos aqui aglutinados são o resumo da questão, revelando-lhe a ignorância quanto a conceitos geológicos e historiográficos que são, ainda que segmentados a seu meio, conhecidos, reconhecidos e comprovados. Após, conclui-se que Emmanuel demonstrou um conhecimento bastante superficial da Doutrina dos Espíritos, sendo-lhe ignorado conceitos básicos presentes nas obras da codificação – que espécie de Espírito chama a si uma autoridade que não possui, um conhecimento que não tem?

4. Conclusão
Allan Kardec traça um perfil bastante interessante em dois itens constantes do capítulo denominado Da Obsessão, presente em O Livro dos Médiuns:


"246. Há, Espíritos obsessores sem maldade, que alguma coisa mesmo denotam de bom, mas dominados pelo orgulho do falso saber. Têm suas idéias, seus sistemas sobre as ciências, a economia social, a moral, a religião, a filosofia, e querem fazer que suas opiniões prevaleçam. Para esse efeito, procuram médiuns bastante crédulos para os aceitar de olhos fechados e que eles fascinam, a fim de os impedir de discernirem o verdadeiro do falso. São os mais perigosos, porque os sofismas nada lhes custam e podem tornar cridas as mais ridículas utopias. Como conhecem o prestígio dos grandes nomes, não escrupulizam em se adornarem com um daqueles diante dos quais todos se inclinam, e não recuam sequer ante o sacrilégio de se dizerem Jesus, a Virgem Maria, ou um santo venerado. Procuram deslumbrar por meio de uma linguagem empolada, mais pretensiosa do que profunda, eriçada de termos técnicos e recheada das retumbantes palavras –– caridade e moral. Cuidadosamente evitarão dar um mau conselho, porque bem sabem que seriam repelidos. Daí vem que os que são por eles enganados os defendem, dizendo: Bem vedes que nada dizem de mau. A moral, porém, para esses Espíritos é simples passaporte, é o que menos os preocupa. O que querem, acima de tudo, é impor suas idéias por mais disparatadas que sejam.

"247. Os Espíritos dados a sistemas são geralmente escrevinhadores, pelo que buscam os médiuns que escrevem com facilidade e dos quais tratam de fazer instrumentos dóceis e, sobretudo, entusiastas, fascinando-os. São quase sempre verbosos, muito prolixos, procurando compensar a qualidade pela quantidade. Comprazem-se em ditar, aos seus intérpretes, volumosos escritos indigestos e freqüentemente pouco inteligíveis, que, felizmente, têm por antídoto a impossibilidade material de serem lidos pelas massas. Os Espíritos verdadeiramente superiores são sóbrios de palavras; dizem muita coisa em poucas frases. Segue-se que aquela fecundidade prodigiosa deve sempre ser suspeita. Nunca será demais toda a circunspecção, quando se trate de publicar semelhantes escritos. As utopias e as excentricidades, que neles por vezes abundam e chocam o bom-senso, produzem lamentável impressão nas pessoas ainda noviças na Doutrina, dando-lhes uma idéia falsa do Espiritismo, sem mesmo se levar em conta que são armas de que se servem seus inimigos, para ridicularizá-lo. Entre tais publicações, algumas há que, sem serem más e sem provirem de um obsessão, podem considerar-se imprudentes, intempestivas, ou desazadas."

Curioso perfil este, não? Ele não se adéqua ao Espírito em estudo? Houve no passado, como os há no presente e persistirão no futuro existindo os aderentes de Emmanuel, de Chico Xavier, de toda a mítica que os envolve e embala num gracioso pacote de tênue religiosidade, idolatria e fanatismo. Mas, nenhum fanático o é debilmente – a recusa diante dos fatos compra consciências, afaga egos, sustenta carreiras e faz da fé profissão muito bem paga; além de alimentar a raiva, a ignorância, os melindres e as dissensões descabidas.

Atingiremos melhores conclusões quando a relação de Chico Xavier e Emmanuel for algo de artigo futuro. Até lá, um exame atento do presente auxiliará nos estudos e na reflexão acerca da questão.


Off-topic

O Espiritismo é didático; precisa sê-lo - é, portanto, inescapável a composição de textos longos e complexos, ainda que não complicados. Para torná-los, aqui, mais palatáveis, seguiremos a sugestão de certo conhecido, e ilustraremos as postagens com imagens condizentes ao assunto abordado nas matérias. Quanto as postagens até aqui publicadas, também elas contarão com imagens no tempo devido.

sábado, 24 de agosto de 2019

"Fogo amigo" - o obscurantismo do meio

Está provado que o Espiritismo é mais entravado pelos que o compreendem mal do que pelos que não o compreendem absolutamente, e, mesmo, pelos inimigos declarados.” - Revista Espírita, novembro de 1864, O Espiritismo é uma Ciência Positiva.

A edição de março de 1999 da Revista Cristã de Espiritismo, tem na chamada de capa a manchete 'A Sútil Questão das Colônias Espirituais' – no miolo, o artigo composto por um tal Dr. Victor Ronaldo Costa, médico e homeopata oriundo de Brasília, e adepto da Apometria (prática terapêutica baseada na falaciosa premissa segundo a qual pode o Espírito adoecer), onde os trechos seguintes se destacam:

(...) muito embora, o célebre educador lionês (referindo-se a Allan Kardec) não dispusesse de condições para traduzir durante a etapa reencarnatório que lhe fora confiada tudo o que seria de se esperar, já que o próprio Jesus, o mais qualificado Espírito que se tem conhecimento, não pode, na sua época, nos falar de determinados assuntos, prometendo-nos, em consequência, a oportuna vinda do Consolador. (…) O Consolador Prometido, representado na atualidade pela Doutrina dos Espíritos, responsabilizou-se por uma determinada quantidade de informações variadas, logicamente sem a pretensão de tê-las esgotado. (…) Não obstante as informações prestadas por André Luiz e demais orientadores que se manifestam através de outros médiuns não menos respeitados, ainda existe quem duvide da existência das cidades espirituais. São criaturas que, embora se digam espíritas, não se desvincularam ainda de certos dogmas religiosos, alimentando um verdadeiro pavor da morte, em decorrência da concepção clericalista que defende a existência de um 'céu' e um 'inferno' eternos... (…) Como frisamos inicialmente, Jesus abordou uma parte da Verdade e Kardec não poderia comportar-se de forma diferente. A letra kardequiana nos reservou o básico, porém o restante, as filigranas de determinadas questões e as demais revelações ficariam por conta do desenvolvimento da Doutrina através dos tempos. É inconcebível admitir-se a possibilidade de um Espiritismo estanque, desprezando as demais informações mediúnicas coligidas fora daquilo que Kardec anotou em sua obra. (…) Além do mais, perguntaríamos, qual seria a nossa destinação após o decesso carnal e onde permaneceríamos, às vezes por séculos, até a próxima reencarnação? Perambulando a esmo pela erraticidade? O bom-senso, mais do que nunca, nos aponta para a realidade das cidades espirituais.

Fogo amigo – esse é um termo utilizado nos meios militares, especificamente em situação de combate, quando um ataque é desferido, atingindo inadvertidamente as próprias tropas ou tropas aliadas. Seria este o presente caso? Temos utilizado nas postagens que preenchem ao presente blog  expressões tais como 'sujeito espírita brasileiro', 'espírita', 'espiritismo', 'supostamente espírita' e que tais para nos referirmos a indivíduos como este senhor, autor do artigo de onde foram retirados os trechos acima. São expressões demeritórias? Alguns afirmarão positivamente, mas jamais nos arvoraremos desejar o poder, ou que este nos seja outorgado por outrem, para ofender a ninguém – quem assim se manifestar estará a nos emprestar uma importância desmedida. É no campo das ideias que estas devem ser discutidas, e a Doutrina dos Espíritos carece, mais do que jamais precisou, de bons articuladores de ideias; mas, mais do que isto, de estudantes exemplares. As expressões usadas aqui podem parecer demeritórias ou ofensivas, mas elas não encerram uma verdade? Posto que o movimento espírita nacional não pratica de fato o Espiritismo, porque dever-se-ia tratá-lo como algo legítimo? Acaso não prossegue desconhecendo a Doutrina codificada por Allan Kardec, aderindo sem discernimento e ressalva a qualquer mensagem ou obra mediúnica, indo contra as advertências deste? Não é o cenário atual, e já não o é há muitas décadas? Este blog se dirige a estudantes de Espiritismo; aos que supostamente se consideram espíritas, por certo que há outros sites e portais cujos articulistas e escritores lhes estejam mais ao gosto e ao pendor íntimo por seguir uma religião, ainda que ela não exista factualmente.

O Dr. Victor Ronaldo Costa é exemplar ao seguir a cartilha dos defensores das Colônias Espirituais neste seu artigo – principia por sustentar o mito do Espiritismo como doutrina inacabada, ponto já abordado em postagem anterior do presente blog. Sua argumentação, todavia, se sustenta num sofisma – Jesus não havendo tudo revelado, por que Allan Kardec o faria, já que ambos não estão em paridade de progresso espiritual? E por que isto importa, afinal? Tal ideia somente se sustenta na medida em que o Espiritismo é tomado como uma religião revelada, considerando, ipsis litteris, a ideia da Terceira Revelação; pior, se sustenta apenas por quem não leu as Obras Básicas. Este articulista demonstra ignorância quanto ao capítulo 1º de A Gênese, intitulado Caráter da Revelação Espírita. Está lá o seguinte:

O Espiritismo, dando-nos a conhecer o mundo invisível que nos cerca e no meio do qual vivíamos sem o suspeitarmos, assim como as leis que o regem, suas relações com o mundo visível, a natureza e o estado dos seres que o habitam e, por conseguinte, o destino do homem depois da morte, é uma verdadeira revelação, na acepção científica da palavra. (…) Numa palavra, o que caracteriza a revelação espírita é o ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem.

Considerando-se a dificuldade com a interpretação textual, uma palavra mais se faz necessária para explicar esta passagem em particular – ao homem, Allan Kardec, coube elaborar o que foi recebido dos Espíritos. Alguém que possa apontar um só trabalhador tão incansável quanto, tão racional e dotado de capacidade de síntese, didatismo e bom senso semelhante ao do Professor, e que tenha voltado forças a fim de colaborar para o enriquecimento da Doutrina dos Espíritos como este o fez, por favor, com muito gosto nos dispomos a conhecê-lo e parabenizá-lo. Mas, até que o silêncio não cesse de prosseguir gritando aos ouvidos dos estudantes que nenhum homem há que possa tê-lo igualado, senão dado de si muito mais do que fé cega em Espíritos romancistas, os horizontes do Espiritismo cessarão nas fronteiras dos escritos de Allan Kardec. Todavia, acreditar que um sujeito em particular abraçará uma missão no sentido de emprestar da autoridade do Codificador para dar continuidade ao Espiritismo é cair numa cilada flagrante – primeiramente por que se acreditará que a tarefa recairá a um sujeito em particular; isto não pode ser, e por mais que Allan Kardec em pessoa haja tentado desvincular sua imagem ao trabalho que desenvolveu, ambos acabaram unidos, principalmente tendo em vista toda a deturpação perpetrada a posteriori. Segundo, por que esta crença não leva em conta que Allan Kardec já deixou os meios pelos quais se pode dar contribuição a Doutrina dos Espíritos, identificando as inverdades, doutrinas anômalas, conceitos estranhos e toda sorte de invencionices cuja vanguarda levada inconsequentemente há de buscar atar a Doutrina. Este crime de lesa-cultura ocorreu, ocorre e prosseguirá ocorrendo ademais de quaisquer esforços para impedi-los. Recai a quem de fato se propõe ao estudo pesquisar, examinar, apontar os erros, denunciar os farsantes e as tentativas de deturpação; como, outrossim, dar prosseguimento as experimentações, buscando linhas de investigação próprias, exercitando os processos de instrução na criação de parâmetros de julgamento, que permitam balizar o Espiritismo para o futuro. Sendo o produto da coletividade dos Espíritos, e havendo necessitado de um Espírito missionário para codificá-la, a Doutrina dos Espíritos está, como anteriormente fora demonstrado, completa em todos os seus postulados, e desde O Livro dos Espíritos, de tal conta que não cabe deitar mais argumentos quanto a questão.

Num segundo momento, o articulista usa de um experiente tacanho, afrontando os descrentes das Colônias Espirituais pela suposição de que sejam incapazes de saber diferenciar o eterno do relativo, ou o perene do transitório. Quando Allan Kardec pontua em um sem número de passagens de toda sua obra espírita que não há local de pouso algum para os Espíritos, ele não o faz abordando a questão cronológica por que estes não ficarão alocados num espaço que determine, assim como um hotel ou pousada, a duração da estadia. Não há estadia, simplesmente. O tempo demandado entre uma encarnação e outra, chamada erraticidade por que justamente o Espírito erra sem fixar-se necessariamente a um local, decorre no tempo próprio deste – e o que faz ele nesse meio tempo? Ora, a erraticidade está toda ela apresentada em O Livro dos Espíritos, bastando ao interessado por olhos e esforços ao estudo. Mais, que o faça com igual afinco para o livro O Céu e o Inferno, que derroga argumentos quais este sustentado pelo Dr. Victor. Porém, como recomendado anteriormente em outra postagem, um zeloso exame se faz ao artigo de abril de 1859 da Revista Espírita intitulado Quadro da Vida Espírita; para os que desejam uma resposta sucinta e mais ligeira, é o texto perfeito de Allan Kardec acerca da questão. É de se imaginar se nosso articulista em exame tinha, então, conhecimento deste opúsculo em particular de Allan Kardec.

Ele encerra suas argumentações perpetrando o suicídio do próprio intelecto, incorrendo no mesmo amador erro dos que aderem de bom grado ao conceito das Colônias Espirituais, ao perguntar a destinação do Espírito após a morte. Ele não entendeu, como muitos aliás. Sua crença reside no fato de que deve habitar algum lugar, tendo um endereço fixo a exemplo de sua vida encarnada, revisitando a velha e boa casinha pastoril de cerquinha branca, jardim florido e janelas acortinadas – não lhe ocorre ir em busca de seu próprio progresso, mas que este lhe venha dado de bom grado por seu merecimento, por meio de bons Espíritos amigos que hão de visitá-lo e, de certo, conduzi-lo por museus de revelações ignoradas pelos encarnados, repartições e ministérios onde possa aprender e preparar sua nova encarnação. Todo o pacote esperado para si, incluindo a salvaguarda de seu períspirito, repleto de órgãos fluídicos que podem ser danificados pelo ataque de miasmas deletérios desferidos por hordas de invasores umbralinos, que urdem planos de invasão a colônia enquanto se aquartelam do lado de fora das muralhas magnéticas desta. Parece um passeio bem tranquilo por uma das atrações medievais do Beto Carrero World, faltando apenas um dragão cuspidor de fogo.

Realmente, é de insultar os esforços dispendidos em décadas de estudo contínuo da Doutrina dos Espíritos. Ao contrário do que o Dr. Victor pudesse imaginar (hoje, talvez possua ele uma ideia diversa da que sustentou em vida, uma vez que desencarnou em novembro de 2015 aos 72 anos), ou imaginam aderentes desta ideia das Colônias Espirituais, as obras mediúnicas dos Espíritos que vieram revelar tais ordens de conceitos não foram desprezadas. Pelo contrário, foram cotejadas as Obras Básicas, e demais escritos espíritas de Allan Kardec, tendo seu conteúdo detidamente examinado e passado pelo crivo racional do Controle Universal dos Ensinamentos dos Espíritos. O que se inferiu as pôs na condição do que se fato são - romances mediúnicos, literatura recreativa, distração mental e nada além. Para efeito de Doutrina dos Espíritos são inanes. Os livros que reportam a existência de tais paisagens formam, em seu conjunto, uma tentativa de enriquecimento por exploração da boa-fé e ignorância do ilegítimo 'movimento espírita', confeccionando imitações mais ou menos competentes de Nosso Lar e Violetas na Janela. Demandados quase 160 anos desde que Allan Kardec desferiu as palavras que compõem o frontispício desta postagem, elas nunca se mostraram tão atuais, infelizmente.


quarta-feira, 21 de agosto de 2019

André Luiz - Um Espírito pseudo-sábio à luz dos fatos I


Tratar de Chico Xavier demandaria muitas intervenções, dado o seu enorme legado e sua longeva existência. Apresentá-lo, outrossim, em não mais que meia dúzia de linhas e sentenças seria atentar contra o bom senso, mas, sinteticamente que se saiba que o moço de Pedro Leopoldo nascido em 2 de abril de 1910 e falecido a 30 de junho de 2003, foi, sem que subsistam dúvidas, uma das figuras mais extraordinárias a pisar o território nacional – tanto por sua atípica mediunidade quanto pelo modo com que lidou com ela. Tais ordens de fatos são do conhecimento de toda gente, visto que pouco mais de 16 anos transcorreram desde seu decesso.

No anedotário do 'sujeito espírita brasileiro', costuma-se afirmar que este não discute ao menos quatro assuntos – religião, futebol, política e... Chico Xavier! Para o homem racional, não há interdito assunto algum, sendo tudo passível de diálogo e discussão. Compreende-se a dificuldade de certas questões, e Chico Xavier não está longe de suscitar paixões desarrazoadas, ao contrário, é o objeto de idolatria desavergonhada, sendo sua vida e os muitos acontecimentos desta questão de dogma. Nenhum estudioso empenhado da Doutrina dos Espíritos poderia jamais aceitar o dogma e a atitude que o criou – mas, os aspectos componentes da extensa biografia do médium mineiro, que são e hão de prosseguir sendo o combustível de diversos autores mais ou menos comprometidos com a visão racionalista da vida, não caberiam nesta postagem, reservando-nos a analisar caso a caso, segundo o envolvimento mais ou menos ostensivo deste com o Espírito que passou a posteridade sob o nome de André Luiz.

Em As Vidas de Chico Xavier, Marcel Souto Maior assim descreve o processo de confecção de Nosso Lar, obra inaugural da parceria deste Espirito com Chico Xavier:

O protegido de Emmanuel tinha os poderes cada vez mais afiados. Em 1943, começou a colocar no papel seu Best-seller, Nosso Lar, assinado por um tal de André Luiz. O texto pegou o mineiro de surpresa. Era diferente de tudo o que ele já tinha escrito. (…) Era para ali, ou para comunidades parecidas como aquela, que muita gente ia após a morte. Nada de céu, de inferno, de purgatório. (…) O moço de Pedro Leopoldo, acostumado com carroças, charretes e bois, parecia ter se transformado, de repente, em autor de ficção científica. A trama renderia um bom videogame. (…) Chico Xavier suou para traduzir aquelas lições do outro mundo. Escutava as frases e titubeava com o lápis na mão, perplexo diante do mundo novo. Numa das noites de trabalho, em julho, ele se sentiu fora do corpo e, durante duas horas, ao lado de André Luiz e de Emmanuel, visitou uma faixa suburbana da cidade descrita por ele. Para Chico, a tal viagem, uma das maiores surpresas de sua vida, não ocorreu por merecimento, mas por necessidade: só assim ele conseguiria passar para o papel, sem trair a “realidade”, o clima descrito pelo espírito. (…) Logo após escrever Nosso Lar, seu décimo nono livro, o próprio Chico quis estudar Psicografia. Pediu a opinião de Emmanuel e foi atendido com uma metáfora bucólica: '— Se a laranjeira quisesse estudar o que se passa com ela na produção das laranjas, com certeza não produziria fruto algum. Vamos trabalhar como se amanhã já não fosse possível fazer nada. Para nós, o que interessa agora é trabalhar.

Este pequeno enxerto dá a chave de diversas conclusões mui interessantes e pertinentes – como o Espiritismo explicaria este fato ocorrido com Chico Xavier? Sendo a erraticidade um fundamento da Doutrina, e sabendo-se pelo estudo desta que Colônias Espirituais não existem, para onde o médium foi levado? Fato é que, mesmo após a jornada, Chico Xavier não ficou satisfeito, pois uma vez instalada a dúvida, quis ele estudar a medianimidade da psicografia – algo transcorrera de modo a perturbá-lo, por certo. Pode-se conjecturar que, prático nos fenômenos comuns as suas muitas medianimidades, e sendo o sonambulismo uma delas, lhe era comum deslocar-se conscientemente ao largo de onde jazia seu corpo físico, de tal conta que o que se passara consigo por intermédio de Emmanuel e André Luiz não correspondia ao que empiricamente conhecia. O que ocorrera então? O Espiritismo oferece uma explicação plausível; em O Livro dos Espíritos, a questão de nº 443 oferta o seguinte:
           
443. Há coisas que o extático imagina ver e que são, evidentemente, o produto de uma imaginação marcada pelas crenças e os preconceitos terrestres. Nem tudo o que ele vê é, portanto, real?
O que vê é real para ele; porém, como seu Espírito está sempre sob a influência das idéias terrestres, ele pode ver à sua maneira, ou, melhor dizendo, exprimi-lo numa linguagem adaptada aos seus preconceitos e às idéias com as quais se nutriu, ou, aos vossos, a fim de melhor fazer-se compreender; é neste sentido, sobretudo, que ele pode errar.

Ao que Allan Kardec completa, em O Livro dos Médiuns, e após, em O Céu e o Inferno:

Médiuns extáticos: os que, em estado de êxtase, recebem revelações da parte dos Espíritos. Muitos extáticos são joguetes da própria imaginação e de Espíritos zombeteiros que se aproveitam da exaltação deles. São raríssimos os que mereçam inteira confiança.

(...) o êxtase é a mais incerta de todas as revelações, porquanto o estado de sobre-excitação nem sempre importa um desprendimento de alma tão completo que se imponha à crença absoluta, denotando muitas vezes o reflexo de preocupações da véspera. As ideias com que o Espírito se nutre e das quais o cérebro, ou antes o invólucro perispiritual correspondente a este, conserva a forma ou a estampa, se reproduzem amplificadas como em uma miragem, sob formas vaporosas que se cruzam, se confundem e compõem um todo extravagante. Os extáticos de todos os cultos sempre viram coisas em relação com a fé de que se presumem penetrados, não sendo, pois, extraordinário que Santa Teresa e outros, tal qual ela saturados de ideias infernais pelas descrições, verbais ou escritas, hajam tido visões, que não são, propriamente falando, mais que reproduções por efeito de um pesadelo.

Naturalmente é aceitável que Chico Xavier manifestasse, também, o êxtase mediúnico – mas, tão difícil provar positivamente esta hipótese, é reprová-la categoricamente. Todavia, o que se pode pelo primeiro enxerto constatar, é que o médium mineiro longe estava de possuir as luzes intelectuais que a ele são atribuídas pela crença geral. Do contrário, no pleno uso da sua razão, já seria de seu conhecimento os processos fluídicos desencadeadores da mediunidade. Outrossim, não teria dirigido seu intento a aprovação ou censura de Emmanuel, afinal, como escreveu Allan Kardec em O Céu e o Inferno, 'Que méritos teríamos nós se, para tudo saber, apenas bastasse interrogar os Espíritos? Por esse preço, todo imbecil poderia tornar-se sábio.' – sem haver empreendido estudar a mediunidade, como denunciando-se a si próprio, Chico lega a posteridade que fora muito menos do que lho fizeram ao vesti-lo com a roupa nova do imperador, sendo sequer espírita. Sem conhecimento dos fundamentos da Doutrina dos Espíritos não pode haver espíritas, afinal eles, por princípio lógico e racional, não se fazem pela adesão a crença na reencarnação ou na mediunidade. É preciso conhecimento para sustentar a crença – eis o que norteia a fé raciocinada, e o que de fato faz espíritas. Por essas e muitas outras passagens da vida de Chico Xavier inferimos pela constatação de que o maior médium brasileiro até então jamais fora espírita - contrariando, por sinal, a prudência no lido com os Espíritos, sua ação, ou omissão, minaram a prática espírita, contribuindo em muito para o processo iniciado pela FEB algumas décadas antes, erigindo no seio da sociedade um Espiritismo feito religião. Os fatos que podem fundamentar tal argumento serão expostos e explicados em artigos futuros, bastando para o momento que o autor espiritual de Nosso Lar seja desnudo à luz do Espiritismo, tendo pontos essenciais de seus escritos cotejados às Obras Básicas.

Antes, todavia, um aparte interessante e necessário - parte da mítica envolvendo André Luiz diz respeito a sua identidade; quando de sua primeira aparição nos aposentos de Chico Xavier, o qual dividia com um de seus irmãos, o Espirito para este apontou e, em resposta ao médium, disse que seu nome era o mesmo do imoto adormecido. A partir de então, mais de uma dúzia de livros apresentaram a epígrafe do Espírito, seja como autor, seja como colaborador. E sua identidade passou a fazer parte das rodas de conversas de seus recém-adquiridos fãs; as pistas haviam sido dadas em Nosso Lar, e os entusiastas buscaram nos nomes celebrados da academia de ciência fluminense o portentoso médico que, morto, viera narrar suas impressões do 'plano espiritual'. Miguel Couto, Oswaldo Cruz e Carlos Chagas são os nomes mais lembrados, e pelo qual seus aderentes garantem como positiva a identidade do escrevinhador graduado. Faustino Monteiro Espozel, por outro lado, é o azarão na casa de apostas – praticamente desconhecido, o neurologista carioca teve seu nome divulgado na internet pelo jornalista Luciano dos Anjos em 2004, que após pesquisar pelos nomes de 286 médicos desencarnados de 1926 a 1936, chegou a ele. Todo o trabalho detetivesco realizado é digno de nota, respeito e exemplo para aqueles que alardeiam inverdades ou conceitos infundadamente. Todavia, embora para si e para muitos a identidade de André Luiz seja assunto sério, ele apenas o é se se considerado para efeito de importância dada a este e ao médium que lhe traduziu as ideias. Para efeito doutrinário, a obra de André Luiz não passa de um apanhado de romances que não tange ao Controle Universal dos Ensinamentos dos Espíritos. Diante disto, sua aclamação é superlativa e descabida.

Faustino Espozel, por conseguinte, deu uma contribuição bastante interessante ao Espiritismo que, não se sabe se fora de conhecimento de Luciano dos Anjos, falecido em 2014 sem ter lançado o livro em que exporia toda sua pesquisa na busca pela identidade de André Luiz. Em 1927, a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro promoveu um inquérito sobre os perigos do Espiritismo, tendo em vista lançar oposição aos médiuns receitadores da FEB e de outras instituições espíritas, que expediam prescrições homeopáticas aos que atendiam. Desta sindicância se originou o livro O Espiritismo no Brasil, lançado em 1931 e organizado por Leonídio Ribeiro e Murilo Campos. A investigação elaborou algumas questões, enviadas a 12 profissionais – 1 engenheiro, 4 psiquiatras, 1 patologista, 1 legista, 3 sanitaristas e 2 neurologistas. Dentre estes dois últimos, um era justamente Faustino Monteiro Espozel, que sustentou que a frequência as sessões mediúnicas levariam a loucura. O que se poderia esperar deste, contudo? É um equívoco comum atribuir autoridade e conhecimento de causa a quem não é mais do que versado, ou laureado em uma disciplina apenas do vasto conhecimento humano – o que sabe um médico acerca da Doutrina dos Espíritos? Ele não vê o Espírito quando abre o tórax de seus pacientes, ele não o encontra quando diante de uma chapa sensibilizada por raios-X revelando um crânio, sequer o vislumbra diante dos resultados de uma tomografia computadorizada. Assim como foi preciso estudar a medicina para ser um médico, o mesmo se dá com o Espiritismo, e até onde apurou Luciano dos Anjos, Espozel fora católico devoto, partícipe de uma doutrina religiosa frontalmente contrária aos postulados que embasam o Espiritismo.

No tocante a sua formação profissional, o Espírito que deveria, por força desta pender mais para os aspectos racionais da vida, uma vez desencarnado revela-se um poeta emotivo, capaz de compor trechos especialmente líricos e, quiçá, constrangedores em seus romances. Um exemplo bastante ilustrativo em que o homem de jaleco desaparece dando vazão ao versejador se encontra em Missionários da Luz, no capítulo 13, intitulado Reencarnação, onde se pode ler as seguintes impressões suas acerca do mais corriqueiro dos fenômenos ligados a reprodução – o instante da concepção:

Através dos condutos naturais, corriam os elementos sexuais masculinos, em busca do óvulo, como se estivessem preparados de antemão para uma prova eliminatória, em corrida de três milímetros, aproximadamente, por minuto. Surpreendido, reconheci que o número deles se contava por milhões e que seguiam, em massa, para frente, em impulso instintivo, na sagrada competição. (…) o elemento vitorioso prosseguiu a marcha, depois de atravessar a periferia do óvulo, gastando pouco mais de quatro minutos para alcançar o seu núcleo. Ambas as forças, masculina e feminina, formavam agora uma só, convertendo-se ao meu olhar em tenuíssimo foco de luz. (…) Estava boquiaberto, diante do que me fora dado observar.

Será preciso a todo médico que realiza inseminações in vitro enxugar suas lágrimas, ou tapar a própria boca diante de um tão extraordinário fenômeno natural, neste caso em particular, executado artificialmente? Toda esta pantomima ornamentada, este fraseado construído com o fito de emocionar não pode, nem se propõe a ser, a exposição dos princípios de uma doutrina – não passa de uma obra de ficção destinada a leitura recreativa; é de supor que quem o estuda a sério padeça de alguma espécie de dano cognitivo. Esta obra em particular tem passagens diametralmente contrárias a Doutrina dos Espíritos. Por exemplo:

“_Você não ignora que o corpo humano tem as suas atividades propriamente vegetativas, mas talvez ainda não saiba que o corpo perispiritual, que dá forma aos elementos celulares, está fortemente radicado no sangue. Na organização fetal, o patrimônio sanguíneo é uma dádiva do organismo materno. Logo após o renascimento, inicia-se o período de assimilação diferente das energias orgânicas, em que o “eu” reencarnado ensaia a consolidação de suas novas experiências e, somente aos sete anos de vida comum, começa a presidir, por si mesmo, ao processo de formação do sangue, elemento básico de equilíbrio ao corpo perispirítico ou forma preexistente, no novo serviço iniciado. O sangue, portanto, é como se fora o fluido divino que nos fixa as atividades no campo material e em seu fluxo e refluxo incessante, na organização fisiológica, nos fornece o símbolo do eterno movimento das forças sublimes da Criação Infinita.

O 'sujeito espírita brasileiro' talvez não saiba de onde surgiu a ideia, mas a alardeia sem pesar as consequências, afirmando o que acima está escrito, segundo a qual a reencarnação se consolida apenas e tão somente aos sete anos de idade – eis deste autor, o enxerto que sustenta esta falaciosa afirmação. Mas, ainda mais grave, é afirmar que o períspirito está radicado no sangue. As ligações moleculares que o unem ao corpo físico estão em toda a extensão deste, não mais aqui que acolá. Um pequeno trecho de A Gênese (Capítulo XI) trará alguma luz a este interessante pormenor, não apenas refutando este fragmento de André Luiz, como acabando de vez com qualquer ministério ou equipe espiritual responsável pelo processo de reencarnação que haja se originado da sua fértil imaginação:

18. Quando o Espírito tem de encarnar num corpo humano em vias de formação, um laço fluídico, que mais não é do que uma expansão do seu períspirito, o liga ao gérmen que o atrai por uma força irresistível, desde o momento da concepção. À medida que o gérmen se desenvolve, o laço se encurta. Sob a influência do princípio vital e material do gérmen, o períspirito, que possui certas propriedades da matéria, se une, molécula a molécula, ao corpo em formação, donde o poder dizer-se que o Espírito, por intermédio do seu períspirito, se enraíza, de certa maneira, nesse gérmen, como uma planta na terra. Quando o gérmen chega ao seu pleno desenvolvimento, completa é a união; nasce então o ser para a vida exterior.

Uma vez completa a união quando pleno o seu desenvolvimento, o que se dá no período assinalada pela natureza em aproximadamente 38 semanas de gestação no caso do humanidade, consolidada está a reencarnação, permitindo o nascimento. Por mais que tenhamos empregado esforços no sentido de deslindar a questão deste período em particular de tempo apontado por André Luiz, não foi encontrado o que o possa justificar. Por que apenas aos 7 anos de vida? Permanece o mistério. Todavia, o que não se mostrou tão difícil para responder foram os apontamentos seus no tocante ao sangue e ao períspirito. Para tanto, fora preciso retirar o pó do Antigo Testamento bíblico e ir buscar, em Levítico, capítulo 17, versículo 11, o seguinte:

Porque a vida da carne está no sangue; pelo que vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pelas vossas almas; porquanto é o sangue que fará expiação pela alma.”

A vida da carne está no sangue - em vista disto, os judeus consomem carne a partir do abate ritualístico, levado a efeito por um shochet, uma espécie de clérigo açougueiro que, de acordo com os preceitos da religião judaica, executa aves e reses, buscando deixar o mínimo de sangue possível. O animal é degolado e seu sangue é drenado segundo a shechitá - após o ato, o shochet examina o corpo do animal, certificando-se de que a goela e a traqueia tenham sido seccionadas; o coração e pulmões são extraídos em sequência. Depois de examinados e sem que haja qualquer anormalidade, o abdome é aberto para que as entranhas passem pelo mesmo procedimento - enfermidades e anomalias tornam a carne trefá, ou seja, imprópria para o consumo; caso contrário, é uma carne casher, apta a ser consumida sem quaisquer ressalvas. Seria André Luiz judeu? Não para tanto, menos ainda considerando-se a identidade de Faustino Espozel, mas o Espírito parece dar crédito a citação bíblica, interpretando-a a seu modo. Quanto ao judaísmo, o patriarca Moisés é sempre recordado pelos espíritas como o que proibiu a evocação dos mortos - mas também proibiu o consumo de sangue nas refeições, uma prática comum entre os povos do oriente à época. Ainda hoje, o sangue é ingrediente na preparação de alimentos das culinárias de diversas culturas e países. André Luiz teria trazido esta reminiscência, a expressando à sua maneira na obra, contrariando em consequência a Doutrina dos Espíritos? Ou foi uma 'revelação'? O médico não parece ter tido os meios de contestar o que lhe chegava em novidades bastante estranhas, embora nem tão novas como se pode notar. Faz lembrar, cada qual a seu modo e tempo, o mesmo proceder de Roustaing que retomou o Docetimso herético em Os Quatro Evangelhos - acerca deste a postagem do presente blog datada de 3 de agosto de 2019 trata da questão.

André Luiz - Um Espírito pseudo-sábio à luz dos fatos II


Ia a década de 1940 e a II Grande Guerra Mundial monopolizava as atenções de um mundo em tensão e expectativa – Chico Xavier passava ao largo do fato, possuía preocupações próprias. Tivera um acesso de uremia, depois viu-se obrigado a internar uma cunhada num hospício, e preso a rotina sacerdotal, lidava com Espíritos de toda sorte e a todo instante, desejoso apenas de cumprir o que combinara com Emmanuel – volumes e mais volumes, sem descanso ou distrações. Sua visão piorava, e antes que o escândalo decorrente do processo movido pela viúva de Humberto de Campos o colocasse sob os holofotes da nação uma vez mais, o médium mineiro recebeu Nosso Lar, obra de um Espírito acanhado o suficiente para rivalizar em humildade a ele mesmo, pois se escondia sob o nome de seu irmão André Luiz. Ledo engano – sem cerimônia, o escritor de além-túmulo que se alegava médico de origem carioca entrou de supetão na vida do médium e do ilegítimo 'movimento espírita brasileiro'. Não poucos supostos espíritas puseram senões a obra, mas o apoio de figuras consagradas no meio, como José Herculano Pires, e a mão tentacular da FEB, arrefeceram as críticas e as suscetibilidades em contrário.

Tendo comercializado mais de 1,5 milhões de exemplares, tornou-se um fenômeno editorial que só encontrou paralelo décadas mais tarde, com o advento de Violetas na Janela, de autoria de um Espírito que atende pelo nome Patricia, e que diversamente do médico, ditou não mais que 4 obras, desaparecendo logo após. Antes disto, contudo, as editoras 'espíritas' iniciaram uma espécie de corrida em busca de autores que pudessem emular o estilo e a narrativa de Nosso Lar, com vistas a estas tão superlativas vendas da obra psicografada por Chico Xavier. Diversos exemplares tratando da existência no pós-vida surgiram, e o sucesso posterior de Violetas na Janela apenas acentuou a tendência deste filão, cuspindo fora todo bom senso, com a edição despudorada de obras cujo conteúdo se opõe ao Espiritismo. Nosso Lar não foi diferente – mas afinal, do que trata a obra? Decorrência direta de haver surgido pela primeira vez há exatos 75 anos, e ter sido tão amplamente aceita, Nosso Lar tornou-se um livro arrolado a condição de cânone. E embora seja conhecido pela generalidade dos supostos espíritas, o é apenas superficialmente, estando seus detalhes sob o escrutínio dos estudiosos mais tenazes. Claro, o filme equivocadamente realizado com base neste deu-lhe sobrevida; lançado há cerca de uma década, suas principais passagens foram adaptadas a linguagem cinematográfica, ficando algumas das que suscitam polêmicas resguardadas aos leitores. Acerca das minúcias da obra focaremos esforços, usando a razão e o Espiritismo como ferramentas para deslindar o caráter real desta e de seu autor; para tanto, enumeraremos em itens por assunto as passagens que dão conta de tais obscuros pontos.

1. Para onde se vai após o desencarne?

_Estamos nas esferas espirituais vizinhas da Terra, e o Sol que nos ilumina neste momento é o mesmo que nos vivificava o corpo físico.” – cap.3 ‘A Oração Coletiva’

Há regiões múltiplas para os desencarnados, como existem planos inúmeros e surpreendentes para as criaturas envolvidas de carne terrestre.” – cap.7 ‘Explicações de Lísias

Nosso Lar, portanto, como cidade espiritual de transição, é uma bênção a nós concedida por "acréscimo de misericórdia", para que alguns poucos se preparem à ascensão e para que a maioria volte à Terra em serviços redentores.” – cap. 37 ‘A Preleção da Ministra’

_O Umbral - continuou ele, solícito - começa na crosta terrestre. É a zona obscura de quantos no mundo não se resolveram a atravessar as portas dos deveres sagrados, a fim de cumpri-los, demorando-se no vale da indecisão ou no pântano dos erros numerosos. (...) O Umbral funciona, portanto, como região destinada a esgotamento de resíduos mentais; uma espécie de zona purgatorial, onde se queima a prestações o material deteriorado das ilusões que a criatura adquiriu por atacado, menosprezando o sublime ensejo de uma existência terrena. (...) Concentra-se, aí, tudo o que não tem finalidade para a vida superior. E note você que a Providência Divina agiu sabiamente, permitindo se criasse tal departamento em torno do planeta. Há legiões compactas de almas irresolutas e ignorantes, que não são suficientemente perversas para serem enviadas a colônias de reparação mais dolorosa, nem bastante nobres para serem conduzidas a planos de elevação. Representam fileiras de habitantes do Umbral, companheiros imediatos dos homens encarnados, separados deles apenas por leis vibratórias. (...) Lá vivem, agrupam-se, os revoltados de toda espécie. (...) É zona de verdugos e vítimas, de exploradores e explorados. (...) Cada espírito lá permanece o tempo que se faça necessário. Para isso, meu amigo, permitiu o Senhor se erigissem muitas colônias como esta, consagradas ao trabalho e ao socorro espiritual.” – cap. 12 ‘O Umbral’

_Contudo, Lísias, poderá você dar-me uma idéia da localização dessa zona de Trevas? Se o Umbral está ligado à mente humana, onde ficará semelhante lugar de sofrimento e pavor? (...) _Naturalmente, como aconteceu a nós outros, você situou como região de existência, além da morte do corpo, apenas os círculos a se iniciarem da superfície do globo para cima, esquecido do nível para baixo. (...) _Qual acontece a nós outros, que trazemos em nosso íntimo o superior e o inferior, também o planeta traz em si expressões altas e baixas, com que corrige o culpado e dá passagem ao triunfador para a vida eterna. Você sabe, como médico humano, que há elementos no cérebro do homem que lhe presidem o senso diretivo. Hoje, porém, reconhece que esses elementos não são propriamente físicos e sim espirituais, na essência.” – cap. 44 ‘As Trevas’

Ao leitor é ofertada uma profusão de termos e expressões que se repetem a todo instante, com o fim de localizar o cenário da história; ‘plano(s)’, por exemplo, está presente 41 vezes na obra, assim como ‘esfera(s)’, que surge 66 vezes, ou ‘círculo(s)’, que aparece 44 vezes. Para as personagens da Colônia, e posteriormente para André Luiz que a vem integrar, é fato da existência que, desde o interior do planeta, ou seja, em meio às camadas geológicas da Terra, até os mais altos extratos da atmosfera, da mais densa a mais rarefeita, o pós-vida se divide em círculos, ora identificados por planos, ou esferas. Essa terminologia é bastante pertinente, pois se adéqua perfeitamente a resposta que os Espíritos deram a Allan Kardec em O Livro dos Espíritos, na questão de nº 1017 (em algumas traduções pode ser a de nº 1016). Embora tenha sido transcrita em postagem anterior, em 18 de agosto de 2019, para deixar patente o cotejamento e as inferências que por ele se pode alcançar, se faz necessário enxertá-la uma vez mais:

1017. Alguns Espíritos disseram habitar o quarto, o quinto céu, etc. Que entendiam eles por isso?
Quando lhes perguntais que céu habitam, é porque tendes a idéia de vários céus, dispostos como os andares de uma casa; então, eles vos respondem, conforme a vossa linguagem; mas, para eles, estas palavras: quarto, quinto céu, exprimem diferentes graus de purificação e, por conseguinte, de felicidade. É exatamente como quando se pergunta a um Espírito se ele está no inferno; se for infeliz, dirá que sim, porque, para ele, inferno é sinônimo de sofrimento; mas, sabe muito bem que não é uma fornalha. Um pagão diria estar no Tártaro.
Acontece o mesmo com outras expressões análogas, assim como: cidade das flores, cidade dos eleitos, primeira, segunda ou terceira esfera, etc., que são apenas alegorias utilizadas por alguns Espíritos, quer como figuras, quer, algumas vezes, por ignorância da realidade das coisas e até das mais simples noções científicas. Conforme a idéia restrita que outrora se fazia dos lugares das penas e recompensas e, principalmente, a opinião de que a Terra era o centro do Universo, de que o céu formava uma abóbada e de que havia uma região das estrelas, colocava-se o céu no alto e o inferno embaixo; daí as expressões: subir ao céu, estar no mais alto dos céus, ser precipitado nos infernos. Hoje, tendo a Ciência demonstrado que a Terra é apenas um dos menores mundos, entre tantos milhões de outros, sem importância especial; que traçou a história de sua formação e descreveu sua constituição, provou que o espaço é infinito, que não há alto, nem baixo no Universo, teve-se que renunciar a situar o céu acima das nuvens e o inferno nos lugares inferiores. Quanto ao purgatório, nenhum lugar lhe havia sido indicado. Estava reservado ao Espiritismo dar, sobre todas essas coisas, a explicação mais racional, mais grandiosa e, ao mesmo tempo, mais consoladora para a Humanidade. Pode-se dizer, assim, que trazemos, em nós mesmos, nosso inferno e nosso paraíso; nosso purgatório, nós o encontramos na nossa encarnação, nas nossas vidas corporais ou físicas.

Constata-se que Allan Kardec não apenas conhecia tais espécies de mensagens que atribuíam um local de morada para os Espíritos em erraticidade, como sua profusão, fosse qual fosse, não estava em concordância com o Controle Universal dos Ensinamentos dos Espíritos. A isso, os Espíritos da Codificação responderam de pronto, negando a existência de tais locais, reiterando tudo quanto se propuseram a revelar acerca do estado de erraticidade em que permanecem os Espíritos entre uma encarnação e outra. Não se bastasse este processo de planificação fantasiosa do mundo espiritual, alguns entusiastas da obra se propuseram a dar sua contribuição. Heigorina Cunha fora sobrinha de Eurípedes Barsanulfo, e apesar de portadora de sequelas decorrentes da paralisia infantil, dedicara-se a mediunidade e a trabalhos de benemerência, tendo em Chico Xavier, seu conterrâneo, o exemplo de existência sacerdotal ascética que adotou para si – e assim como este, desencarnou nonagenária. Em 1979, segundo se alega, teria, por meio de ‘desdobramentos’ (ver médiuns sonambúlicos no capítulo XIV de O Livro dos Médiuns) e, guiada por um Espírito de nome Lúcios, visitado a colônia de Nosso Lar, tendo registrado tais experiências em desenhos, que acabaram por ser encartados em sua obra Cidade no Além. Imagina-se que teve a alegria de ver seus trabalhos servirem de guia para o desenho de produção feito para o filme Nosso Lar. Heigorina Cunha faleceu em 2013. Não há de representar dificuldade para o leitor adquirir um exemplar desta obra a fim de examinar por si mesmo os desenhos, mapas e planos representados, de próprio punho pela médium. Em vida, Heigorina se escusou pela qualidade técnica destes, não imaginando que isto é de somenos importância, levando-se em conta o representado. A um deles:



Curiosamente, a médium não representou as esferas internas do planeta, aquelas pertencentes aos abismos e trevas narrados em Nosso Lar. Destarte, como coube a ela ilustrar as descrições de André Luiz, a um amigo de Chico Xavier ficou a tarefa de explorar o que não estava nos desenhos. Rafael Américo Ranieri, delegado de polícia, e prefeito de Guaratinguetá em 1968, eleito deputado estadual em 1974, além de invulgar entusiasta de materializações de Espíritos. Também ele, em ‘desdobramento’, visitou as regiões abismais do planeta, cujas impressões deram em descrições tão ou mais fantásticas que as contidas em Nosso Lar, de tal conta que muitos dos mais ferrenhos fãs de André Luiz têm dificuldade em aceitar suas obras, sendo rejeitadas como apócrifas. Livros como O Abismo, Sexo Além da Morte, Aglon e os Espíritos do Mar, A Segunda Morte são exemplos desta fase obscura de André Luiz, caso tenha de fato trabalhado para guiar as 'revelações' dadas ao delegado acerca do pós-vida. Mas, que não se engane o leitor – se André Luiz é, por Chico Xavier já um desafio a razão, em Ranieri ele não obstrui o autor para narrar algumas das passagens mais fantásticas que qualquer 'espírita' há de por seus olhos. Rafael Ranieri desencarnou em 1989, aos 70 anos, em Guaratinguetá, de acidente vascular cerebral.

2. A Materialidade da vida após a vida

Estava convicto de não mais pertencer ao número dos encarnados no mundo e, no entanto, meus pulmões respiravam a longos haustos.” – cap. 1 ‘Nas Zonas Inferiores’

Tinha a impressão de sorver a alegria da vida, a longos haustos.” – cap. 4 ‘O Médico Espiritual’

_ Não posso negar que esteja melhor; entretanto, sofro intensamente. Muitas dores na zona intestinal, estranhas sensações de angústia no coração. Nunca supus fosse capaz de tamanha resistência, meu amigo. Ah! como tem sido pesada a minha cruz!... Agora que posso concatenar idéias, creio que a dor me aniquilou todas as forças disponíveis...” – cap. 6 ‘Precioso Aviso’

Torturava-me a fome, a sede me escaldava. Comezinhos fenômenos da experiência material patenteavam-se-me aos olhos. Crescera-me a barba, a roupa começava a romper-se com os esforços da resistência, na região desconhecida.” – cap. 2 ‘Clarêncio’

Respirei a longos haustos, sentindo que ondas de energia nova me penetravam o ser.” – cap. 23 ‘Saber Ouvir’

Último adeus à dedicada mãe de Lísias e me vi só, respirando o ar de outros tempos, a longos haustos.” – cap. 49 ‘Regressando a Casa’

São estes os exemplos de um Espírito bastante materializado, com o uso constante de expressões que indicam a existência de pulmões, intestinos, olhos e toda sorte de órgãos que não existem mais. A palavra ‘pranto(s)’ aparece 16 vezes em Nosso Lar, mas esta quantidade não dá conta de exprimir que, no decurso de 50 capítulos, seu protagonista verte lágrimas em 49 deles – de tristeza, alegria, dor, revolta, o que o leitor se propuser a imaginar, ou conferir pela leitura do mesmo; o choro copioso tem por fim criar um vínculo emocional – é tanto uma técnica quanto um vício literário, dada sua repetição constante, demonstrando as limitações estilísticas de André Luiz. Outro exemplo neste tocante, é que ele sempre respira ‘a longos haustos’, como se nota pelos trechos acima. Nunca é um suspiro, uma respiração ofegante, ou algo da mesma espécie. O pós-vida descrito em Nosso Lar é todo humano, materialmente e fisicamente. A protagonista é sentimento e emoção, despojado do racionalismo esperado para um médico. Assim, cada nova descoberta não suscita o exame e a descrição fria, mas um inesgotável deslumbramento expresso por um fraseado emotivo.

O Espiritismo revela que a erraticidade é um vagar, um mover-se, é um não ter local de pouso, um deambular constante. Sustenta-se na lógica mais básica acerca deste ponto, aliás, um argumento de fundo bastante competente a desafiar o ideário de André Luiz – qual a razão de ser de uma casa? De uma moradia? Sendo o corpo físico um frágil, ainda que adequado instrumento das experiências materiais pelas quais o Espírito precisa passar a fim de progredir, compreende-se a razão de preservá-lo, resguardando-o da ação perniciosa dos elementos naturais como chuva e sol, variações extremas ou bruscas de temperatura, além da ação direta e perniciosa de animais e outros indivíduos, bem como o abrigo de objetos de uso cotidiano, necessários as tarefas comuns do Espírito. Não é uma Colônia Espiritual uma cidade, e não é uma cidade um amontoado de casas e edificações? Muitos já sustentaram que Espíritos inferiores precisam de uma casa, de alimentos, de local para banhar-se e obrar. O item 257 de O Livro dos Espíritos, contudo, sustenta algo diverso:

O corpo é o instrumento da dor; se não é a causa primeira, é, pelo menos, a causa imediata. A alma tem a percepção dessa dor: esta percepção é o efeito. A lembrança que dela conserva pode ser muito penosa, mas não pode ter ação física. Com efeito, nem o frio, nem o calor podem desorganizar os tecidos da alma; a alma não pode enregelar-se, nem queimar-se. Não vemos, todos os dias, a recordação ou a apreensão de um mal físico produzirem o efeito real? Ocasionar até a morte? Todo mundo sabe que as pessoas amputadas sentem dor no membro que não existe mais. Certamente, não está, nesse membro, a sede, nem mesmo o ponto de partida da dor; foi o cérebro que conservou-lhe a impressão, apenas isto. Pode-se, portanto, admitir que haja alguma coisa análoga nos sofrimentos do Espírito, após a morte.

O perispírito é o elo que une o Espírito à matéria do corpo; ele é haurido do meio ambiente, do fluido universal; (…) Poder-se-ia dizer que é a quintessência da matéria; é o princípio da vida orgânica, mas não o é da vida intelectual: a vida intelectual está no Espírito. É, além disso, o agente das sensações exteriores. No corpo, a recepção destas sensações localiza-se nos órgãos que lhes servem de canais. Destruído o corpo, as sensações tornam-se gerais. Eis por que o Espírito não diz que sofre mais da cabeça do que dos pés. É preciso, ainda, evitar confundir as sensações do perispírito, que se tornou independente, com as do corpo: só podemos tomar estas últimas como termo de comparação e, não, como analogia. Liberto do corpo, o Espírito pode sofrer; este sofrimento, porém, não é o do corpo.

Durante a vida, o corpo recebe as impressões exteriores e as transmite ao Espírito por intermédio do perispírito, (...) Estando morto o corpo, nada mais sente, porque nele não há mais Espírito, nem perispírito. O perispírito, liberto do corpo, experimenta a sensação; porém, como ela não lhe chega mais através de um canal limitado, torna-se geral. Ora, como o perispírito é apenas um agente de transmissão, visto que é o Espírito que possui a consciência, daí resulta que, se pudesse existir um perispírito sem Espírito, ele não sentiria mais do que o corpo quando está morto; da mesma forma que, se o Espírito não tivesse perispírito, seria inacessível a qualquer sensação penosa; é o que acontece com os Espíritos completamente purificados. Sabemos que, quanto mais eles se depuram, mais etérea se torna a essência do perispírito; donde se conclui que a influência material diminui, à medida que o Espírito progride, isto é, à medida que o próprio perispírito se torna menos grosseiro.

Sabemos que no Espírito há percepção, sensação, audição, visão; que essas faculdades são atributos do ser todo e não, como no homem, de uma parte apenas do ser; mas, de que modo ele as tem? Ignoramo-lo. (...) Pode-se dizer que, neles, as vibrações moleculares se fazem sentir em todo o ser e lhes chegam assim ao sensorium commune, que é o próprio Espírito, embora de modo diverso e talvez, também, dando uma impressão diferente, o que modifica a percepção. (...) Pelo que concerne à vista, essa, para o Espírito, independe da luz, qual a temos. A faculdade de ver é um atributo essencial da alma, para quem a obscuridade não existe. É, contudo, mais extensa, mais penetrante nas mais purificadas. A alma, ou o Espírito, tem, pois, em si mesma, a faculdade de todas as percepções. Estas, na vida corpórea, se obliteram pela grosseria dos órgãos do corpo; na vida extracorpórea se vão desanuviando, à proporção que o invólucro semimaterial se eteriza.

Literalmente, o perispírito é matéria, mas nem para o examinador menos apto ele há de suscitar ser confundido com o corpo físico. O perispírito tem propriedades que, nem de longe, são observáveis neste – ele é expansível, retrátil, maleável e penetrante. Para Allan Kardec, ele é sempre tratado como um envoltório, justamente por cumprir a função de envolver materialmente o Espirito, dando-lhe assim unidade e cumprindo a função de ligá-lo a matéria do corpo físico. Em diversas de suas obras, André Luiz indica a existência de outros corpos constitutivos do ser, sustentando assim um ideário próprio acerca da questão – sua classificação guarda profunda semelhança com aquela dada pela Teosofia, prescrevendo o ser constituído por cinco corpos - corpo físico ou soma, duplo etérico ou biossoma, psicossoma, corpo mental e espírito. O autor espiritual dedica-se a estes em Evolução em Dois Mundos, Nos Domínios da Mediunidade e em Nosso Lar. O exame atento de seus escritos revela uma colcha de retalhos de diversas vertentes e doutrinas, de ideias hauridas tanto no cânone ocidental religioso, quanto nos herméticos tomos de sociedades exotéricas. Há Espiritismo em André Luiz?

3. Objetos do além

_ Se possível, estimaria recebê-lo em nossa casa, enquanto perdurar o curso de observações (...)” – cap. 17 ‘Em Casa de Lísias’

_Guarde este documento – disse-me o atencioso Ministro do Auxílio, entregando-me pequena caderneta –, com ele, poderá ingressar nos Ministérios da Regeneração, do Auxílio, da Comunicação e do Esclarecimento, durante um ano.” – cap. 17 ‘Em Casa de Lísias’

Passados minutos, eis-nos à porta de graciosa construção, cercada de colorido jardim.” – cap. 17 ‘Em Casa de Lísias’

Sentamo-nos, silenciosos, em torno de grande mesa. Ligado um grande aparelho, fez-se ouvir música suave. Era o louvor do momento crepuscular.” – cap. 17 ‘Em Casa de Lísias’

Lísias se aproximou de pequeno aparelho postado na sala, à maneira de nossos receptores radiofônicos.” – cap. 17 ‘Em Casa de Lísias’

No centro, funciona enorme aparelho destinado a demonstrações pela imagem, à maneira do cinematógrafo terrestre, com o qual é possível levar a efeito cinco projeções variadas, simultaneamente.” – cap. 32 ‘Notícias de Veneranda’

A distância de quatro metros, aproximadamente, havia um grande globo cristalino, da altura de dois metros presumíveis, envolvido, na parte inferior, em longa série de fios que se ligavam a pequeno aparelho, idêntico aos nossos alto-falantes.” – cap. 48 ‘Culto Familiar’

Acaso fosse possível aglutinar uma plateia de indivíduos sem relação uns com os outros, como aquelas reunidas em espetáculos ou palestras, e se lhes fosse pedido que imaginasse cada qual uma flor e, ainda possível registrar o que se lhes ia ao pensamento numa única foto, o que se veria? Um jardim? Possivelmente não! A capacidade humana de imaginar é limitada a sua memória, e é praticamente impossível que alguém imagine um objeto, ou uma flor, sem que ele esteja inserido num contexto. Nosso Lar está repleto de objetos, máquinas, veículos, aparelhos estranhos, além de casas, jardins e animais próprios de qualquer cidade do mundo físico. Em O Livro dos Médiuns no capítulo VIII, intitulado Laboratório do Mundo Invisível, tem-se o seguinte:

Os objetos que o Espírito forma, têm existência temporária, subordinada à sua vontade, ou a uma necessidade que ele experimenta. Pode fazê-los e desfazê-los livremente. Em certos casos, esses objetos, aos olhos de pessoas vivas, podem apresentar todas as aparências da realidade, isto é, tornarem-se momentaneamente visíveis e até mesmo tangíveis. Há formação; porém, não criação, atento que do nada o Espírito nada pode tirar.

Ou ainda:

16ª O Espírito tem sempre o conhecimento exato do modo por que compõe suas vestes, ou os objetos cuja aparência ele faz visível?
Não; muitas vezes concorre para a formação de todas essas coisas, praticando um ato instintivo, que ele próprio não compreende, se já não estiver bastante esclarecido para isso.

Imaginemos uma gaveta de um móvel qualquer sendo aberta, e de seu interior seja apanhado um objeto ali depositado – um gabinete, uma escrivaninha ou armário possui a organização singular de seu proprietário; aberrante seria não encontrar este objeto, que se espera que esteja naquela específica gaveta. Para o Espírito errante, o objeto sempre estará lá, porque ele será composto, formado, de modo instintivo, por sua necessidade, expectativa, desejo, prazer, enfim. Este exemplo é meramente ilustrativo. Acaso fosse possível ter acesso a esta hipotética gaveta sem a presença ou conhecimento deste hipotético Espírito, nada haveria em seu interior – ‘Os objetos que o Espírito forma, têm existência temporária (...)’. Não seria pela união conjunta de muitos Espíritos que se poderia sustentar uma colônia? Por certo que, assim como seria impossível obter uma foto de um jardim na medida em que uma plateia o imaginasse cada indivíduo desta, uma flor, não seria possível que a perfeita união do pensamento de Espíritos criasse uma cidade; cada casa estaria inserida num contexto, e seus detalhes e móveis seriam tão temporários quanto a necessidade mais imediata deste ou daquele Espírito. É impossível concentrar o pensamento indefinidamente num foco apenas. O senso comum, e o 'sujeito espírita brasileiro' a ele não escapa, imagina os Espíritos superiores e puros como demandando muito de seu tempo a mais alta capacidade reflexiva, ao ato de pensar longos períodos nos mais elevados temas de interesse universal – mas isto é um engano. Demorar-se em reflexões e meditações é próprio de Espíritos meridianos como o humano. Quão mais elevado o Espírito, mais conhecimento adquire, e mais rápido vai seu pensamento; suas opiniões são justas e certas, sem hesitações, e suas decisões são assertivas e de imediato, sem titubeios. Apenas pelo exercício da fantasia imaginativa se poderia sustentar que Nosso Lar, se não é produto da mentalidade coletiva de seus habitantes, o é por conta de um, ou mais de um Espírito superior, que, mais corretamente ainda não agiria para conter Espíritos em uma cidade flutuante, como procedem certos experimentos científicos que arrolam cobaias em labirintos.

4. O ir e vir

Mal me refazia da surpresa, quando surgiu grande carro, suspenso do solo a uma altura de cinco metros mais ou menos e repleto de passageiros. Ao descer até nós, à maneira de um elevador terrestre, examinei-o com atenção. Não era máquina conhecida na Terra. Constituída de material muito flexível, tinha enorme comprimento, parecendo ligada a fios invisíveis, em virtude do grande número de antenas na tolda. Mais tarde, confirmei minhas suposições, visitando as grandes oficinas do Serviço de Trânsito e Transporte.” – cap. 10 ‘No Bosque das Águas’

_Em "Nosso Lar", grande parte dos companheiros poderia dispensar o aeróbus e transportar-se, à vontade, nas áreas de nosso domínio vibratório; mas, visto a maioria não ter adquirido essa faculdade, todos se abstêm de exercê-la em nossas vias públicas.

Por quais meios se locomove o Espírito? Pronuncia-se O Livro dos Espíritos:

89.Os Espíritos gastam algum tempo para percorrer o espaço?
Sim, mas fazem-no com a rapidez do pensamento.

89a. O pensamento não é a própria alma que se transporta?
Quando o pensamento está em alguma parte, a alma também aí está, pois que é a alma quem pensa. O pensamento é um atributo.

90.O Espírito que se transporta de um lugar a outro tem consciência da distância que percorre e dos espaços que atravessa, ou é subitamente transportado ao lugar onde quer ir?
Dá-se uma e outra coisa. O Espírito pode perfeitamente, se o quiser, inteirar-se da distância que percorre, mas também essa distância pode desaparecer completamente, dependendo isso da sua vontade, bem como da sua natureza mais ou menos depurada.

A questão levantada pela descrição de veículos recaí forçosamente ao item anterior – não havendo como sustentar uma cidade fluídica, seus objetos e demais aspectos móveis não subsistem. Mas, pela lógica de André Luiz expressa na narrativa, transportar-se pelo pensamento parece ser um habilidade que está sujeita a aquisição, e não um aspecto inerente do Espírito. A experiência mediúnica, todavia, permite concluir que os Espíritos que ignoram por quais meios se pode ir de um ponto a outro, o fazem enfileirando-se dentre os encarnados, tomando coletivos públicos, aviões, táxis e toda sorte de transportes para poderem locomover-se com a rapidez que não sabem possuir. Muitos dentre estes, aliás, tomam-se surpresos por não poderem explicar por quais meios se deslocaram, de onde estavam para o local em que as sessões de experimentação mediúnica estão ocorrendo. É a prova de que se encontram por se acotovelarem em meio aos encarnados, assim como, desde o princípio prescreve o Espiritismo.

5. Suspensão de Incredulidade

Obedecendo a processos adiantados de televisão, surgiu o cenário de templo maravilhoso. Sentado em lugar de destaque, um ancião coroado de luz fixava o Alto, em atitude de prece, envergando alva túnica de irradiações resplandecentes. Em plano inferior, setenta e duas figuras pareciam acompanhá-lo em respeitoso silêncio. Altamente surpreendido, reparei Clarêncio participando da assembleia, entre os que cercavam o velhinho refulgente.” – cap. 3 ‘A Oração Coletiva’

Qualquer leitor de Nosso Lar pressupõe um exercício de suspensão da incredulidade, afinal se trata desde então da narração das experiências reais pelas quais passou o autor André Luiz. Ou assim supõe este – cabe ao espírita familiarizado ao tema examinar a obra por meio de leitura crítica, expondo-a como um romance contrário ao Espiritismo. Todavia, esta suspensão é exigida em demasia quando diante de certos pontos anômalos – o exemplo acima enxertado dá conta desta questão, pois que se pode atribuir a André Luiz a habilidade de poder contar num lance de olhos 72 pessoas, assim como o fazem alguns indivíduos pertencentes ao espectro autista, os portadores da Síndrome de Savant. Ou, por se estender de modo moroso e sonolento, a oração coletiva demandou tempo suficiente para que pudessem ser contabilizados o número exato das figuras observadas, numa informação absolutamente inútil para o leitor, que motiva a suspeição quanto a veracidade do romance.

6. Matrioska

O sonho não era propriamente qual se verifica na Terra. Eu sabia, perfeitamente, que deixara o veículo inferior no apartamento das Câmaras de Retificação, em "Nosso Lar", e tinha absoluta consciência daquela movimentação em plano diverso. Minhas noções de espaço e tempo eram exatas.” – Cap. 36 ‘O Sonho’

Em item anterior foi demonstrado que André Luiz aponta a existência de cinco corpos constituintes do ser, em contraponto aos três identificados pelo Espiritismo. Esta passagem é a primeira, dentre todas existentes em suas obras, onde aborda a questão - e ela se refere a essa experiência que com ele se deu, de haver adormecido em Nosso Lar para ir visitar sua mãe em 'esferas superiores'; como isso é possível? Que 'veículo inferior' teria sido momentaneamente abandonado? O Espiritismo prescreve que o sono é um ensaio para a erraticidade, já que o Espírito, revestido pelo perispírito, abandona o corpo físico a fim de deambular e viver experiências neste período do dia. André Luiz desafia esta lógica espírita tão simples, aproximando sua narrativa a Teosofia, que prega serem sete os corpos constitutivos do ser – esta, por conseguinte, busca fazer uma síntese das ideias presentes tanto em filosofias orientais quanto ocidentais, sendo a base do pensamento esotérico ocidental. Com o que está comprometido André Luiz? Para quem se aventurar em textos ocultistas, subsistirá uma dificuldade inerente em entender a razão de ser de cada um desses sete corpos, que fazem do ser humano uma espécie de Matrioska. A proposta espírita para a questão é mais simples, lógica e racional.

7. Machista

André Luiz deixa entrever, na passagem abaixo, um indisfarçável machismo, algo que em 1944, ano em que foi lançado Nosso Lar, pode ter passado sem maior alarde. Parte da definição dada a Espíritos pseudo-sábios pelo Espiritismo versa que “(...) a linguagem deles possui um caráter sério, que pode enganar sobre suas capacidades e suas luzes; mas, em geral, isto não passa de um reflexo dos preconceitos e das idéias sistemáticas da vida terrestre; é uma mistura de algumas verdades a erros os mais absurdos, por entre os quais manifestam-se a presunção, o orgulho, o ciúme e a teimosia de que não puderam despojar-se.” Preconceito, irmão das mais rasteiras formas de machismo manifestos na sociedade, ao qual se verifica refletido na obra do médico carioca, filho do século XIX, em todas as suas mais demeritórias expressões:

A mulher não pode ir ao duelo com os homens, através de escritórios e gabinetes, onde se reserva atividade justa ao espírito masculino. Nossa colônia, porém, ensina que existem nobres serviços de extensão do lar, para as mulheres. A enfermagem, o ensino, a indústria do fio, a informação, os serviços de paciência, representam atividades assaz expressivas. O homem deve aprender a carrear para o ambiente doméstico a riqueza de suas experiências, e a mulher precisa conduzir a doçura do lar para os labores ásperos do homem.” – cap. 20 ‘Noções de Lar’

8. Contradição

Instantes depois, divisei ao longe dois vultos enormes que me impressionaram vivamente. Pareciam dois homens de substância indefinível, semiluminosa. Dos pés e dos braços pendiam filamentos estranhos, e da cabeça como que se escapava um longo fio de singulares proporções. Tive a impressão de identificar dois autênticos fantasmas. Não suportei. Cabelos eriçados, voltei apressadamente ao interior. Inquieto e amedrontado, expus a Narcisa a ocorrência, notando que ela mal continha o riso. _Ora essa, meu amigo – disse, por fim, mostrando bom humor –, não reconheceu aquelas personagens? Fundamente desapontado, nada consegui responder, mas Narcisa continuou: _Também eu, por minha vez, experimentei a mesma surpresa, em outros tempos. Aqueles são os nossos próprios irmãos da Terra. Trata-se de poderosos espíritos que vivem na carne em missão redentora e podem, como nobres iniciados da Eterna Sabedoria, abandonar o veículo corpóreo, transitando livremente em nossos planos. Os filamentos e fios que observou são singularidades que os diferenciam de nós outros. Não se arreceie, portanto. Os encarnados, que conseguem atingir estas paragens, são criaturas extraordinariamente espiritualizadas, apesar de obscuras ou humildes na Terra.” – cap. 33 ‘Curiosas Observações’

Nosso Lar está repleto de passagens de tal natureza – com que critérios inferi-la? O fato de estar envolto na carne não parece ser impedimento a Espíritos missionários, extraordinariamente progredidos, abandonarem seus corpos a fim de empreender uma jornada as regiões mais elevadas da atmosfera, onde está localizada a colônia Nosso Lar, que mantém Espíritos da qualidade de um André Luiz, ex-médico carioca, estigmatizado como suicida pelos abusos que cometeu em vida. É no mínimo bizarro - o corpo físico é sinal de materialidade suficiente para que qualquer encarnado esteja abaixo de um desencarnado? O progresso próprio do Espírito está, então, diretamente relacionado ao fato de estar ou não encarnado? André Luiz, portanto, dada sua condição de Espírito errante, divide terreno com Espíritos que lhe são superiores em progresso? Por este raciocínio, Jesus de Nazaré seria inferior a qualquer desencarnado durante o período em que esteve entre a humanidade? As questões muitas suscitadas por esta passagem de Nosso Lar parecem exigir uma lógica complexa demais para que o leitor possa ter pleno o seu entendimento. Assim, como em todo o restante da obra, o que pode vir a explicar esta passagem não é a Doutrina dos Espíritos, mas uma doutrina pessoal autônoma, originada apenas e tão simplesmente do pensamento de André Luiz; resiste, contudo, a suspeita de o autor estar aqui evocando o gnosticismo para quem o mundo material é corrompido e mau.

Muitas outras passagens mais podem ser evocadas pelo estudioso, sob pena de compor uma obra duas ou três vezes mais volumosa que o próprio Nosso Lar, exclusivamente com o fito de revelar se tratar da obra de um Espírito pseudo-sábio, produto de uma mente imaginativa, afeita ao romance. O compromisso de André Luiz, pode-se especular, não é outro que não o de qualquer romancista, ou seja, apenas entreter – neste aspecto, sua obra deixa muito a desejar; ela, em realidade, enfileira-se a tradição de obras como A Divina Comédia, encontrando um forte parentesco com A Vida Além do Véu, de autoria do Rev. George Vale Owen. Esta, por conseguinte, é apontada como aquela que teria inspirado Nosso Lar, enquanto que, para outros estudiosos, ela foi plenamente copiada por André Luiz, ou Chico Xavier, num flagrante caso de plágio; tal questão há de encontrar melhor espaço em futuras postagens. Nosso Lar, enquanto literatura, é uma obra incapaz de figurar entre as grandes experiências de um leitor obstinado – sua expressiva vendagem deixa entrever a razão exata de sua existência, e do contexto que a viu surgir. O médium que a pôs no papel não foi escolhido ao acaso, ou por que fosse o melhor tradutor das ideias do Espirito desencarnado, mas por que era o único capaz de fazê-lo; mas não pelas razões positivas que se pode imaginar. Não seria o nome do Espírito, um desconhecido a chamar a atenção do público, mas do seu psicógrafo, o homem que emprestava sua vida humilde, seu passado sofrido e seu caráter servil a divulgação da mensagem, e não propriamente do Espiritismo, falecido este desde que os 'místicos' suplantaram os 'científicos' no início do século XX (ver publicação deste blog de 3 de agosto de 2019).

Muita lógica mercadológica foi posta em prática em derredor de Chico Xavier, sempre tão afogado em compromissos que nenhuma reação esboçou, ou talvez, não tenha desejado esboçar; e a mítica imposta ao médium, a custa de uma existência estoica, quase ascética, num mediunato, tornou-o o líder improvável de um movimento ilegítimo. A figura frágil e servil de um aleijão amorável, um matuto vertido em sábio, o maior escritor brasileiro frente ao qual nenhuma crítica ou oposição resistiu, era e foi o simplório perfeito para dar voz a André Luiz, e a outros tantos que nenhuma contribuição deram ao Espiritismo; ao contrário, desferiram duros golpes na tentativa de muitos que buscaram instruir-se, perpetrando o engano, fomentando o engodo. Chico, por exemplo, afirmou certa feita o seguinte: “Creio que sim. Conservo para mim a certeza de que ele, Emmanuel, terá participado da equipe que colaborou na estrutura da codificação da Doutrina Espírita. A mensagem intitulada ‘O Egoísmo’, (...) em que se faz referência a Pilatos, é de autoria de nosso benfeitor espiritual, não tenho dúvidas a este respeito.” – quando, em realidade, a mensagem referida, contida em O Evangelho Segundo o Espiritismo, é de Emmanuel Swedenborg, polímata sueco que realmente participou do processo da Codificação espírita. Essa e outras contribuições saídas da boca e da pena de Chico Xavier ganharam o mundo, com a força proporcional a importância dada a ele – suas palavras se fizeram leis, seus livros e sua vida se tornaram o guia existencial de um sem número de pessoas que, erroneamente, se consideram espíritas.

Adentrar tais meandros do modo de ser, das ações e palavras de Chico Xavier serão o mote para o porvir. Quanto a André Luiz, como assim expresso foi, muito mais há que apontar em suas obras em passagens estranhas e insólitas; sequer foram abordados os trechos que descrevem a existência de animais na Colônia, especificamente uma ave chamada Íbis Viajores, cuja razão de ser é se alimentar das formas mentais odiosas que pululam nos céus obumbrados do Umbral – uma invencionice teratológica que rivaliza com aquelas existentes na série escrita por R. A. Ranieri, como apontado anteriormente. A questão animal já fora detidamente abordada em postagem datada de 14 de agosto de 2019. Mas, uma pergunta mais resta e, ao que consta, jamais fora abordada anteriormente, que diz respeito ao paradeiro do benfeitor espiritual de André Luiz. Onde estaria ele? Porque não integrou a equipe de socorro que o foi resgatar no Umbral? Não estando lá, porque não o encontrou posteriormente na Colônia? Não saberia o autor acerca dos guias espirituais, também chamadas benfeitores, ou popularmente conhecidos por anjos guardiões? Acerca deste O Livro dos Espíritos revela:

“506. Na vida espírita, reconheceremos o Espírito nosso protetor?
Decerto, pois não é raro que o tenhais conhecido antes de encarnardes.

O que terá acontecido a ele? André Luiz não pareceu muito interessado na questão; por ignorância? Ou por esquecimento? Talvez, tenha sido um personagem difícil de alocar na trama, já que mais de um dentre aqueles que o autor encontrou ao longo de toda narrativa conheciam-lhe a vida e a história, como se transparente fosse. Uma conveniente e oportuna maneira de explorar os aspectos existenciais da protagonista, suprimindo, todavia, a presença do benfeitor espiritual; uma ausência pouco sentida, ou sequer percebida – não para todos.
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Em notícia relativamente recente, Chico Xavier e André Luiz, foram alvo do escrutínio de uma revista científica europeia, a Neuroendocrinology Letters, que no seu exemplar de nº 8, do volume 34, publicou artigo de autoria de Giancarlo Lucchetti, Jorge C. Daher Jr., Decio Iandoli Jr., Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, que realizaram estudo comparativo entre as 'revelações' de André Luiz acerca da glândula pineal contidas em Missionários da Luz frente as recentes descobertas médicas relativas a este órgão. Claro, por tratar-se de pesquisa e estudo urdido a partir da AME (Associação Médico-Espírita do Brasil), não seria aberrante encontrar os mesmos equívocos comuns ao ilegítimo 'movimento espírita brasileiro', e eles de fato lá estão, como afirmar que o Espiritismo é uma religião, por exemplo. Mas, na medida em que ainda não traduzimos por completo o artigo, não atendo às minúcias do estudo, facilmente encontrável no site mantido pela revista, seria imprudente lançar qualquer análise. Pressupondo, porém, pela comprovação positiva dos informes de André Luiz na obra, isto nada altera das conclusões aqui alcançadas acerca de se tratar de um amiúde Espírito pseudo-sábio. Aliás, o comprova como tal! Tais ordens de Espíritos são descritos da seguinte maneira por Allan Kardec em O Livro dos Espíritos.

“Oitava classe. Espíritos Pseudo-sábios. — Seus conhecimentos são bastante extensos, porém, acreditam saber mais do que realmente sabem. Tendo realizado alguns progressos sob diversos pontos de vista, a linguagem deles possui um caráter sério, que pode enganar sobre suas capacidades e suas luzes; mas, em geral, isto não passa de um reflexo dos preconceitos e das idéias sistemáticas da vida terrestre; é uma mistura de algumas verdades a erros os mais absurdos, por entre os quais manifestam-se a presunção, o orgulho, o ciúme e a teimosia de que não puderam despojar-se.

Portanto, como se pode notar, são uma classe de Espíritos hábeis em mixar mentiras e verdades, escamoteando estas em meio àquelas - pior, se se provar positivamente como apontado pelo estudo, vem revelar aos encarnados um conhecimento que estes devem alcançar por seus próprios esforços. Por tratar-se de uma literatura segmentada, seu conteúdo é conhecido senão dos aderentes de Chico Xavier, e do 'espiritismo', não tendo influído em nada nos estudos levados a efeito pelos meios científicos ao longo das décadas, tendo por alvo a glândula pineal. Futuramente trataremos oportunamente deste estudo em particular.