1. Introito
“Via-lhe os traços fisionômicos de homem idoso, sentindo
minha alma envolvida na suavidade de sua presença, mas o que mais me
impressionava era que a generosa entidade se fazia visível para mim, dentro de
reflexos luminosos que tinham a forma de uma cruz.”
Essas palavras escritas de
próprio punho por Francisco Cândido Xavier constam de um sem número de obras,
reportagens, artigos e toda sorte de documento que busca reproduzir a ocasião
em que se deu o primeiro encontro do maior médium brasileiro de todos os tempos
com seu 'mentor' espiritual. Originalmente ela integra a introdução do
livro que leva o nome deste, Emmanuel. Este não é um nome qualquer – aparece em
duas ocasiões na Bíblia, ambas referindo-se a Jesus. A primeira consta do Velho
Testamento, em Isaías, capítulo 7, versículo 14, pode-se ler: “Portanto, o
mesmo Senhor vos dará um sinal: eis que a virgem conceberá, e dará à luz um
filho, e chamará o seu nome Emanuel”. A seguinte está no Evangelho de
Mateus, capítulo 1, versículo 23: “Eis que a virgem conceberá, e dará à luz
um filho, e chamá-lo-ão pelo nome de Emanuel, que traduzido é: Deus conosco”.
É um nome bíblico e profético, justamente porque integra as previsões acerca da
vinda de Jesus no seio do povo hebreu – que Espírito tem envergadura para
sustentar um nome com tal importância? O 'mentor' espiritual de Chico
Xavier, é apontado, frequentemente, como um luminar digno de alcunhar-se com
este nome. Contudo, o presente artigo apontará fatos objetivando ir a favor das
recomendações da Doutrina dos Espíritos, buscando identificar Emmanuel para
além da crença e da imprudente idolatria; é o Espírito desnudo que interessa
passar pelo crivo da razão e do Controle Universal dos Ensinamentos dos
Espíritos – como o afirmado por Allan Kardec em O Livro dos Médiuns:
“Julgam-se os Espíritos, como
os homens, pela sua linguagem.”
As ações de Emmanuel, ou
antes, aquelas que se podem arrolar na categoria de orientações diretas a Chico
Xavier, estas serão alvo de artigo futuro. Todavia, uma apenas dentre estas
deve figurar aqui no interesse de explicitar em parte, seu progresso; e pois,
por que justamente o fato se encontra na base, ou antes, no princípio da
relação ostensiva de ambos – o ato de haver surgido para este sob os reflexos
cruciformes de luz. O estudioso do Espiritismo, afeito e familiarizado com O
Livro dos Médiuns sabe que esta pantomima não é consequência do progresso
íntimo do Espírito, como pode ser levado a pensar um leitor menos apto diante
desta narrativa de ares fantásticos. Ao contrário, a manipulação fluídica que
permite esta espécie de efeito sinaliza para um Espírito inferior – o tomo à
pouco citado, em seu capítulo V, intitulado Das
Manifestações Físicas Espontâneas revela o seguinte:
“85. Dissemos atrás que as
manifestações físicas têm por fim chamar-nos a atenção para alguma coisa e
convencer-nos da presença de uma força superior ao homem. Também dissemos que
os Espíritos elevados não se ocupam com esta ordem de manifestações; que se
servem dos Espíritos inferiores para produzi-las, como nos utilizamos dos
nossos serviçais para os trabalhos pesados, (...). Alcançado esse fim, cessa a
manifestação material, por desnecessária.”
Assim sendo, pode-se
apontar que Emmanuel não é mais que um Espírito inferior a manipular as mais
intimas crenças, senão as fortes impressões religiosas que guardava Chico
Xavier. Porém, O Livro dos Médiuns ainda tem alguns acréscimos a serem
feitos para chegar-se a uma conclusão a contento quanto ao caso:
“19ª A visão dos Espíritos se produz no estado normal, ou
só estando o vidente num estado extático?
Pode produzir-se achando-se este em condições perfeitamente
normais. Entretanto, as pessoas que os vêem se encontram muito amiúde num
estado próximo do de êxtase, estado que lhes faculta uma espécie de dupla vista."
Quando teve a visão de Emmanuel por si descrita, Chico Xavier estava à beira de um açude, sob uma árvore para onde sempre acorria com o fito de afastar-se de dissabores da vida, fazendo suas rezas para angariar forças e serenidade. O fenômeno que descreveu pode tanto haver decorrido da ação direta do Espírito, quanto de sua disposição de alma, mais ou menos liberta por conta do estado mental originado das orações e do ambiente bucólico e aprazível, sendo resultado de um estado quase extático - ou que ambas hajam ocorrido em simultâneo, não é impossível, imagina-se. Qualquer que seja sua origem, todavia, impressionou o jovem Chico Xavier aquela figura sacerdotal imponente que, segundo afirmou, impôs-lhe rigorosa disciplina diante da tarefa, a princípio, de compor trinta obras, todas de autores desencarnados - tarefa cumprida sem ressalvas.
2. Uma atuação anômala
Quem pode afirmar, assim como Chico Xavier, conhecer seu benfeitor espiritual? Para ele, seu 'mentor'. O uso desta terminologia não corresponde ao Espiritismo, uma vez que um mentor é o guia do pensamento do sujeito, alguém a quem se consulta quando diante de uma decisão, alguém de grande experiência em determinado campo, e cujos conselhos costuma-se considerar e acatar. Essa relação prescreve uma ostensiva interação, o que não ocorre com o benfeitor ou guia espiritual, cuja ação oculta inspira mais que manda, oferta possibilidades mais do que indica a direção, insufla bom ânimo mais do que força a ação. Allan Kardec interessou-se vivamente pela atuação destes Espíritos, popularmente conhecidos como anjos guardiões, mas que são, espiriticamente falando, chamados por guias espirituais ou, para corresponder mais exatamente as suas funções, benfeitores espirituais. Em O Livro dos Espíritos, o Codificador assim questiona:
Quando teve a visão de Emmanuel por si descrita, Chico Xavier estava à beira de um açude, sob uma árvore para onde sempre acorria com o fito de afastar-se de dissabores da vida, fazendo suas rezas para angariar forças e serenidade. O fenômeno que descreveu pode tanto haver decorrido da ação direta do Espírito, quanto de sua disposição de alma, mais ou menos liberta por conta do estado mental originado das orações e do ambiente bucólico e aprazível, sendo resultado de um estado quase extático - ou que ambas hajam ocorrido em simultâneo, não é impossível, imagina-se. Qualquer que seja sua origem, todavia, impressionou o jovem Chico Xavier aquela figura sacerdotal imponente que, segundo afirmou, impôs-lhe rigorosa disciplina diante da tarefa, a princípio, de compor trinta obras, todas de autores desencarnados - tarefa cumprida sem ressalvas.
2. Uma atuação anômala
Quem pode afirmar, assim como Chico Xavier, conhecer seu benfeitor espiritual? Para ele, seu 'mentor'. O uso desta terminologia não corresponde ao Espiritismo, uma vez que um mentor é o guia do pensamento do sujeito, alguém a quem se consulta quando diante de uma decisão, alguém de grande experiência em determinado campo, e cujos conselhos costuma-se considerar e acatar. Essa relação prescreve uma ostensiva interação, o que não ocorre com o benfeitor ou guia espiritual, cuja ação oculta inspira mais que manda, oferta possibilidades mais do que indica a direção, insufla bom ânimo mais do que força a ação. Allan Kardec interessou-se vivamente pela atuação destes Espíritos, popularmente conhecidos como anjos guardiões, mas que são, espiriticamente falando, chamados por guias espirituais ou, para corresponder mais exatamente as suas funções, benfeitores espirituais. Em O Livro dos Espíritos, o Codificador assim questiona:
“501. Por que é oculta a ação dos
Espíritos sobre a nossa existência e por que, quando nos protegem, não o fazem
de modo ostensivo?
Se vos fosse dado contar sempre com a ação deles, não obraríeis por vós mesmos e o vosso Espírito não progrediria. Para que este possa adiantar-se, precisa de experiência, adquirindo-a frequentemente à sua custa. É necessário que exercite suas forças, sem o que, seria como a criança a quem não consentem que ande sozinha. A ação dos Espíritos que vos querem bem é sempre regulada de maneira que não vos tolha o livre-arbítrio, porquanto, se não tivésseis responsabilidade, não avançaríeis na senda que vos há de conduzir a Deus. Não vendo quem o ampara, o homem se confia às suas próprias forças. Sobre ele, entretanto, vela o seu guia e, de tempos a tempos, lhe brada, advertindo-o do perigo."
Se vos fosse dado contar sempre com a ação deles, não obraríeis por vós mesmos e o vosso Espírito não progrediria. Para que este possa adiantar-se, precisa de experiência, adquirindo-a frequentemente à sua custa. É necessário que exercite suas forças, sem o que, seria como a criança a quem não consentem que ande sozinha. A ação dos Espíritos que vos querem bem é sempre regulada de maneira que não vos tolha o livre-arbítrio, porquanto, se não tivésseis responsabilidade, não avançaríeis na senda que vos há de conduzir a Deus. Não vendo quem o ampara, o homem se confia às suas próprias forças. Sobre ele, entretanto, vela o seu guia e, de tempos a tempos, lhe brada, advertindo-o do perigo."
Em O Céu e o Inferno há uma
passagem interessante acerca destes:
“Quaisquer
que sejam a inferioridade e perversidade dos Espíritos, Deus
jamais os abandona. Todos têm seu anjo da guarda (guia)
que por eles vela, espreita-lhes os movimentos da alma, e se esforçam por
suscitar-lhes bons pensamentos, desejos de progredir, de reparar em uma nova
existência o mal que praticaram. Contudo, essa interferência do guia faz-se
quase sempre ocultamente e de modo a não haver pressão, pois que o Espírito
deve progredir por impulso da própria vontade,
nunca por qualquer sujeição.”
Emmanuel corresponde ao perfil do
guia espiritual? Para quem deveria, por princípio, ocultar-se, o 'mentor'
de Chico Xavier é bastante conhecido – em vidas passadas teria sido sacerdote
egípcio, senador romano, escravo hebreu, santo da Igreja Católica, padre
jesuíta em missão no novo mundo; o sacerdócio parece ter-lhe tocado mais vivamente
a alma, pois abraçara esta vida para si em outras experiências reencarnatórias
mais. Suas vidas passadas não foram reveladas a Chico Xavier no sigilo e
recolhimento do ambiente doméstico, como informes muito particulares a serem
mantidos ocultos à vista alheia – o Espírito compôs obras, narrativas
romanceadas dessas vidas, revelando-se por um veículo de massa popular ao maior
número possível dentre os aderentes de seu protegido, e do 'espiritismo'.
Não fosse de tal conta anômala esta atuação de Emmanuel, registradas ainda
foram suas pontuais intervenções junto ao médium mineiro, eventualmente
reproduzidas por este em um tom anedótico, extravagante; são o retrato
assinalado em artigos de uma relação disfuncional, que passou a posteridade
como o testemunho e o paradigma do que deveria ser a atuação de um Espírito
guia – esta é a visão geral do 'movimento espírita nacional'. Apontado
pela Doutrina dos Espíritos como oculta a ação destes, onde dispor Emmanuel?
Como considerá-lo? Abordada serão as possíveis respostas na conclusão do
presente artigo – assinala-se, contudo, que a ação de Emmanuel fora heterodoxa,
não correspondendo ao prescrito pelo Espiritismo, equivalendo ipsis litteris
esta a experiência humana geral, em que são raros os indivíduos ostensivamente
familiarizados a figura de seus benfeitores espirituais. De Emmanuel, tão
pródigo em ditar livros, são estes tais o elemento em estudo e foco do
interesse mais imediato.
3. Suas obras diante dos fatos
Em 1927 Emmanuel começou a ditar mensagens por meio de Chico
Xavier, em fazenda de amigos espíritas de seu pai, que, enfim vieram trazer as
explicações para as visões e vozes que o matuto de Pedro Leopoldo via e ouvia,
e prosseguiria ouvindo e vendo até o último de seus dias, mais de setenta anos
depois – mas, foi distante destes companheiros que, enfim, se veria diante do
Espírito, que lhe surgiu como narrado no início deste opúsculo, fato que se deu
em 1931. A partir de então, acostumado as pancadas e mandos da vida, para o
qual seu temperamento servil fez joguete sempre, passou o médium a arrolar, para além das
prosas, narrativas inteiras. A psicografia dos livros vinha cumprir um acordo
com Emmanuel, acordo que se renovaria mais tarde, até ser rompido por este de
modo abrupto, assunto pertinente para futuro artigo. Ele mesmo, seu 'mentor',
dera-se a narrar não apenas instruções ou mensagens de cunho moralizante, mas
romances de época, histórias de suas pregressas experiências na senda da carne
– todo o conjunto destas configura rico documento para a análise do estudioso,
um caso ímpar que merece exame atento e minucioso. Teria sido, Chico Xavier, um
protegido tão probo que não oferecera desafio a Emmanuel, a ponto deste ter
muito tempo livre para a literatura?
Para o momento, no mais, basta considerar aspectos os mais
ilustrativos de parte do que compusera o Espírito; na obra que leva seu nome,
encontram-se os seguintes trechos, por exemplo:
“QUEM SÃO OS MÉDIUNS NA SUA GENERALIDADE
Os médiuns, em sua
generalidade, não são missionários na acepção comum do termo; são almas que
fracassaram desastradamente, que contrariaram, sobremaneira, o curso das leis
divinas, e que resgatam, sob o peso de severos compromissos e ilimitadas
responsabilidades, o passado obscuro e delituoso. O seu pretérito, muitas vezes,
se encontra enodoado de graves deslizes e de erros clamorosos. Quase sempre,
são Espíritos que tombaram dos cumes sociais, pelos abusos do poder, da
autoridade, da fortuna e da inteligência, e que regressam ao orbe terráqueo
para se sacrificarem em favor do grande número de almas que desviaram das
sendas luminosas da fé, da caridade e da virtude. São almas arrependidas que
procuram arrebanhar todas as felicidades que perderam, reorganizando, com
sacrifícios, tudo quanto esfacelaram nos seus instantes de criminosas
arbitrariedades e de condenável insânia.”
“AS OPORTUNIDADES DO SOFRIMENTO
As existências dos médiuns,
em geral, têm constituído romances dolorosos, vidas de amargurosas
dificuldades, em razão da necessidade do sofrimento reparador; suas estradas,
no mundo, estão repletas de provações, de continências e desventuras. Faz-se,
porém, necessário que reconheçam o ascetismo e o padecer, como belas
oportunidades que a magnanimidade da Providência lhes oferece, para que
restabeleçam a saúde dos seus organismos espirituais, combalidos nos excessos
de vidas mal orientadas, nas quais se embriagaram à saciedade com os vinhos
sinistros do vicio e do despotismo. Humilhados e incompreendidos, faz-se mister
que reconheçam todos os benefícios emanantes das dores que purificam e
regeneram, trabalhando para que representem, de fato, o exemplo da abnegação e
do desinteresse, reconquistando a felicidade perdida.”
“NECESSIDADE DA EXEMPLIFICAÇÃO
Todos os médiuns, para
realizarem dignamente a tarefa a que foram chamados a desempenhar no planeta,
necessitam identificar-se com o ideal de Jesus, buscando para alicerce de suas
vidas o ensinamento evangélico, em sua divina pureza; a eficácia de sua ação
depende do seu desprendimento e da sua caridade, necessitando compreender, em
toda a amplitude, a verdade contida na afirmação do Mestre: “Dai de graça o que
de graça receberdes.” Devendo evitar, na sociedade, os ambientes nocivos e
viciosos, podem perfeitamente cumprir seus deveres em qualquer posição social a
que forem conduzidos, sendo uma de suas precípuas obrigações melhorar o seu
meio ambiente com o exemplo mais puro de verdadeira assimilação da doutrina de
que são pregoeiros. Não deverão encarar a mediunidade como um dom ou como um
privilégio, sim como bendita possibilidade de reparar seus erros de antanho,
submetendo-se, dessa forma, com humildade, aos alvitres e conselhos da Verdade,
cujo ensinamento está, freqûentemente, numa inteligência iluminada que se nos
dirige, mas que se encontra igualmente numa provação que, humilhando, esclarece
ao mesmo tempo o espírito, enchendo-lhe o íntimo com as claridades da
experiência.”
Esta tríade de pequenos textos guarda características de uma profissão
de fé, uma declaração que se impôs como receita para a vida de muitos médiuns,
em especial o que as psicografou. Seu autor afirma que os médiuns são, em sua
generalidade, desastrosos fracassados – a generalização, porém, resulta em
adotar absolutamente uma concepção acerca de algo, sem lhe considerar as partes
ou os pormenores. Ela é a base de muitos preconceitos, ou ideias previas acerca
de algo desconhecido ou conhecido apenas em parte – ninguém arriscaria apontar
que todos os médiuns, sem exceção, são indivíduos cujas experiências de vidas
passadas se mostraram fracassadas. O que diz o bom senso? Emmanuel precisaria
conhecer a totalidade da experiência humana para afirmar algo de tal natureza
sem o risco de parecer ridículo; sua mão pesada se impõe em um texto afeito a
uma sentença de condenação. Contudo, mais adiante ele se contradiz ao adotar
expressões menos absolutas, quando afirma que ‘muitas vezes’ têm eles passados plenos de erros, ou ‘quase sempre’ são indivíduos que
abusaram da autoridade, ou poder. Ainda assim, afirmá-lo é denunciar um certo
espírito precipitado, uma certa opressão que tende a ostentar uma superioridade
de per si – não poucos, por certo, hão de crer que Emmanuel é sim possuidor de
um conhecimento tal da alma humana, e das experiências pelas quais a
coletividade terrestre passou, que positivamente tem autoridade para sustentar
tais ordens de afirmações. Considerar, porém, a prescrição de Emmanuel é
preconceber, é partir de uma falsa premissa com base numa amostragem limitada,
ou antes desconhecida, de indivíduos.
Porém, o problema maior, ainda mais grave que a generalização, é o
Espírito sustentar uma ideia equivocada do que seja a mediunidade – nota-se
isto ao tomá-la, senão como dom ou missão, mas como seu oposto, ou seja, uma
espécie de maldição, uma sina que se abate sobre o indivíduo como oportunidade de
sanar as dívidas pregressas de que faz referência constante. Em O Livro dos Médiuns, capítulo XIV, Allan
Kardec define assim ao médium:
“Todo aquele que sente, num grau
qualquer, a influência dos Espíritos é, por esse fato, médium. Essa faculdade é
inerente ao homem; não constitui, portanto, um privilégio exclusivo. Por isso
mesmo, raras são as pessoas que dela não possuam alguns rudimentos. Pode, pois,
dizer-se que todos são, mais ou menos, médiuns.”
Acaso não fossem todos médiuns, de modo mais ou menos ostensivo, por
quais meios receber-se-iam as instruções, bons conselhos e bons ânimos dos
benfeitores espirituais? Não saber distinguir a ação destes, porém, não anula
que seus pensamentos se confundem ao de seus guiados, perfazendo assim o limite
de sua ação, oculta e sigilosa, mas sempre presente. A mediunidade é uma
faculdade, portanto, e sua ação, permitindo a comunicação ostensiva entre seres
em instâncias distintas de existência, assemelha-se a fala humana - considerar
o escrito por Emmanuel, seria o mesmo que afirmar que nascer com dois braços é
sinal de falência moral de vidas passadas. Ou seja, a mediunidade é
constitutiva do ser encarnado, característica essencial deste. Por considerá-la
como fenômeno fantástico, sobrenatural, forçosamente a fantasia exige que seja
tida como a definiu este – contrária, portanto, ao que prega e demonstra o
Espiritismo. Que sabe este Espírito da mediunidade e dos médiuns? Emmanuel faz
retroceder a mediunidade a um fadário, acrescendo a ela um ascetismo místico,
evocando a condição do pecado original católico, envolvendo o leitor na
atmosfera da tradição da mortificação na própria carne, na autoflagelação como
forma de purificação espiritual. Parece que o 'mentor' de Chico Xavier
dá eco a Roustaing e seu Docetismo, cuja origem remonta ao gnosticismo que
prega que o mundo material é mau e corrompido – eis um fato, aliás, pouco
conhecido acerca de Emmanuel. Seu roustainguismo está expresso, por exemplo, no
prefácio que compôs para a obra Vida de
Jesus, livro de Antônio Lima, onde defende os princípios contidos em Os Quatro Evangelhos. Chico Xavier fora
orientado por um Espírito aderente de Roustaing? Deste autor e sua obra, o
artigo datado de 3 de agosto de 2019 os toma como objeto de exame.
Outro livro de Emmanuel cujo conteúdo é do interesse do
presente é O Consolador. Por si só, a obra constitui uma anomalia, visto
que, composto no sistema de perguntas e respostas, é dividido em três partes,
cada qual respectivamente correspondente ao assim chamado tríplice aspecto do qual
se supõe que o Espiritismo seja constituído, qual seja a Ciência, a Filosofia e
a Religião – este sofisma enganou a muitos, alguns bastante capacitados. As
questões do livro são dirigidas senão ao próprio Emmanuel, que convertido em
expoente do saber cósmico, inadvertidamente ombreia-se a Ramatis e outros tais,
vertendo para a assistência fascinada um manancial de conceitos particulares,
como se fossem a expressão da verdade absoluta. Obviamente tal exercício
convertido em livro não está em adequação ao Controle Universal dos
Ensinamentos dos Espíritos prescrito por Allan Kardec, bastando senão como
curiosidade, jamais para efeito de Doutrina. A questão de nº 323 deste, por
exemplo, brinda o leitor com o seguinte:
“323 – Será uma verdade a teoria
das almas gêmeas?
– No sagrado mistério da
vida, cada coração possui no Infinito a alma gêmea da sua, companheira divina
para a viagem à gloriosa imortalidade. Criadas umas para as outras, as almas
gêmeas se buscam, sempre que separadas. A união perene é-lhes a aspiração
suprema e indefinível. Milhares de seres, se transviados no crime ou na
inconsciência, experimentaram a separação das almas que os sustentam, como a
provação mais ríspida e dolorosa, e no drama das existências mais obscuras
vemos sempre a atração eterna das almas que se amam mais intimamente,
envolvendo umas para as outras num turbilhão de ansiedades angustiosas; atração
que é superior a todas as expressões convencionais da vida terrestre. Quando se
encontram no acervo real para os seus corações – o da ventura de sua união pela
qual não trocariam todos os impérios do mundo, e a única amargura que lhes
empana a alegria é a perspectiva de uma nova separação pela morte, perspectiva
essa que a luz da Nova Revelação veio dissipar, descerrando para todos os
Espíritos amantes do bem e da verdade os horizontes eternos da vida.”
O estudioso tem em mente já as questões iniciadas em O Livro dos Espíritos, a partir da de
número 298 e seguintes, acerca das metades eternas, ou almas gêmeas – a
resposta dos Espíritos Superiores da Codificação é flagrantemente contrária ao
que defende Emmanuel. Mas, prossegue este Espírito em sua obra:
“243 – Todos os Espíritos que
passaram pela Terra tiveram as mesmas características evolutivas, no que se
refere ao problema da dor?
– Todas as entidades
espirituais encarnadas no orbe terrestre são Espíritos que se resgatam ou
aprendem nas experiências humanas, após as quedas do passado, com exceção de
Jesus Cristo, fundamento de toda a verdade neste mundo, cuja evolução se
verificou em linha reta para Deus, e em cujas mãos angélicas repousa o governo
espiritual do planeta, desde os seus primórdios.”
Como provar que Jesus progrediu em ‘linha
reta para Deus’? O comentário de Allan Kardec a questão 127 de O Livro dos Espíritos é de imediato
evocado, trazendo a compreensão segundo a qual, por mais benévolo haja sido um
Espírito em particular, todos ‘precisam
adquirir a experiência e os conhecimentos indispensáveis para alcançar a
perfeição’. São afirmações desta natureza que transtornam a fé dos
neófitos, desnudam o Espírito para os estudiosos, e sedimentam o engodo nos
círculos afeitos ao Espiritismo, legítimos ou não. Emmanuel guardava, então,
algum conhecimento acerca das Obras Básicas que compõem a Doutrina dos
Espíritos? Observemos outra de suas obras, talvez a mais famosa dentre elas – Há
2000 Anos.
Esta narrativa de época apresenta uma de suas experiências passadas,
tendo nesta sido um senador romano de nome Públio Lêntulo Cornélio Sura, que,
contemporâneo de Jesus, teria visto a este em sua passagem pela Palestina.
Públio fora senador romano, bisneto do primeiro Públio seu homônimo,
conspirador ao lado de Lúcio Sérgio Catilina, que buscou derribar a República
Romana, particularmente o poder oligárquico do senado. Não existem quaisquer
provas de que este, executado em 63 a.C., tenha deixado descendentes; seus
despojos foram reclamados por Marco Antônio, tarefa cuja burocracia exigia
caber a seus filhos ou descendentes diretos. Este descendente de Sura
conspirador, suposto bisneto, e suposta identidade passada de Emmanuel, diz-se
no texto do livro, possuía uma filha, de nome Flávia Lentúlia, o que cria uma
anomalia onomástica – seu nome deveria ser Cornélia, por ser filha de um
Cornélio; poucas opções de nome caberiam a filha de Sura, mas nenhuma que fosse
a adotada na obra.
Há que considerar, igualmente, outros equívocos presentes na obra – por
exemplo, o imbróglio administrativo causado pela presença de um senador romano
na Palestina àquele tempo – “(...) mas
não conhecia Jerusalém, onde o esperavam como legado do Imperador, para a
solução de vários problemas administrativos de que fora incumbido junto ao
governo da Palestina.” A província da Judéia estava sob a supervisão da
Síria e, acaso houvesse a necessidade de uma missão para a solução de problemas
administrativos, há duas possibilidades de ação de parte das autoridades
romanas. Primeiramente, o legado propretoriano da Síria mandaria alguém de seu
séquito, por certo um cavaleiro para lidar com a questão junto ao prefeito /
procurador da Judéia ou, num segundo momento, se mais grave fosse o caso, o
legado da Síria convocaria o prefeito / procurador da Judéia a Antióquia para
se explicar, e se não fosse satisfeito, iria suspender a este de suas funções,
enviando-o a Roma para que se explicasse, pessoalmente, ao Imperador. Este
jamais enviaria um legado de nível senatorial a Judéia, posto que isto criaria
uma série de problemas. Segundo a psicografia, Lêntulo Sura fora um senador,
enquanto Pôncio Pilatos era um cavaleiro, inferior ao primeiro, social e
hierarquicamente. Pondo os pés na Judéia, Lêntulo daria ordens a Pilatos, nunca
o tratando como semelhante, proceder adotado pelo primeiro frente ao segundo
conforme alega o texto de Emmanuel, equivocadamente.
Tanto este parece desconhecer os meandros internos da administração romana que, a altura tanta do livro, há registrado que Lêtulo Sura servira um ano na administração da cidade de Esmirna (terceira maior cidade da Turquia, atualmente), com o fito de melhor integrar-se nos mecanismos dos trabalhos do Estado. Esmirna era cidade da província da Ásia (província senatorial de nível consular), e possuía um governo municipal autônomo, com um magistrado ornado com o título de ‘coroado’, além de sede de um conventus juridici, quer dizer, local onde o procônsul realizava audiências, uma vez ao ano. Não era, portanto, um local para onde se enviavam funcionários romanos, muito menos um que atuasse como administrador – jamais poderia ser como Emmanuel narra, simplesmente porque não condiz com a realidade histórica.
Um último exemplo do desconhecimento de Emmanuel acerca do que ele
afirma ser sua existência passada - por ocasião da Páscoa do ano 33, o texto
informa: “As autoridades romanas, por sua
vez, concentravam-se, igualmente, em Jerusalém, na mesma ocasião, reunindo-se
na cidade quase todos os centuriões e legionários, destacados a serviço do
Império, nas paragens mais remotas da província.”. Bem, antes da revolta do
ano 66 d.C., jamais puseram os pés na Judéia nenhuma legião romana, sendo a
guarnição da província feita por corpos auxiliares de infantaria, tanto quanto
de cavalaria. Ao que parece, o senador Cornélio Sura, de quem não se tem
registro histórico algum, deveria ter ideias bastante arejadas e avançadas ao
seu tempo para, entre dar um nome gentio a própria filha e permitir-se uma
visitinha a Palestina de antão, voltar seu interesse para um agitador judeu
condenado, dele compondo um documento, o enviando a seus colegas de assembleia.
A este suposto bisneto de Lêtulo Sura conspirador, atribui-se esta carta, uma
declaração que teria sido escrita com a descrição da aparência física de Jesus
de Nazaré. Historiadores do Vaticano desde há muito identificaram este registro
como uma fraude datada do século XIII. Cabe a Emmanuel dar explicações acerca
destes problemas identificados em sua narrativa? Conviria evocá-lo?
Em A Caminho da Luz, Emmanuel mete-se a defender uma teoria
relativamente antiga acerca da formação do planeta Terra:
“A primeira, verificou-se quando o orbe terrestre se desprendia da
nebulosa solar, a fim de que se lançassem, no Tempo e no Espaço, as balizas do
nosso sistema cosmogônico e os pródromos da vida na matéria em ignição, do
planeta, e a segunda, quando se decidia a vinda do Senhor à face da Terra,
trazendo à família humana a lição imortal do seu Evangelho de amor e redenção.”
Não é propriamente um ensaio
acerca da questão, mas será preciso atentar para a afirmação segundo a qual o
planeta originou-se a partir do Sol. Esta é uma teoria conhecida e reconhecida
pela Ciência, chamada de Teoria da Projeção, primeiramente defendida por
Georges-Louis Leclerc, ou apenas Conde de Buffon. Naturalista, matemático e
escritor francês, foi um intelectual muito afamado em seu tempo, cujas teorias
e ideias refletir-se-iam em figuras como Darwin e Lamarck. Allan Kardec, acerca
da Teoria da Projeção do Conde de Buffon, discorre em A Gênese:
“De todas as teorias concernentes à origem da Terra, a que alcançou
maior voga, (...) é a de Buffon, quer pela posição que ele desfrutava no mundo sábio,
quer pela razão de não se saber mais do que ele disse naquela época. (...)
sendo o Sol uma massa incandescente em fusão, um cometa se haja chocado com ele
e, raspando-lhe a superfície, tenha destacado desta uma porção que, projetada
no espaço pela violência do choque, se dividiu em muitos fragmentos, formando
esses fragmentos os planetas, que continuaram a mover-se circularmente, pela
combinação das forças centrífuga e centrípeta, no sentido dado pela direção do
choque primitivo, isto é, no plano da eclíptica.”
Prossegue o Codificador, em seguida, elencando em cinco itens as razões
pelas quais a teoria de Buffon, a Teoria da Projeção, tornara-se obsoleta. A
sucessão de detalhes ali expostos é para o leitor um convite ao estudo – mas,
vale recordar, ou revelar alguns pontos importantes. A Gênese foi lançada em 1868. O Conde de Buffon desencarnara em
1788. Ou seja, cerca de 80 anos separam as ideias de Buffon das descobertas que
vieram após, e que são detidamente abordadas por Allan Kardec no trecho aludido
da obra, e que vieram descartar a Teoria da Projeção. Após 71 anos desde A Gênese, Emmanuel entrega ao mundo A Caminho da Luz, redimindo Buffon e
descartando Allan Kardec e a Ciência, demonstrando os limites de seu
conhecimento das obras espíritas, tanto quanto do progresso do conhecimento
humano. Mais uma década se passaria e Edgard Armond faz publicar Exilados de Capela, livro em que retoma
a Teoria da Projeção, ombreando Emmanuel, e assumindo o papel de contraditor do
Espiritismo.
Este conjunto particular de questões levantadas acerca de Emmanuel, em
suas obras aliás, formam a síntese pela qual se pode alcançar algumas
conclusões primordiais – a princípio, o 'mentor' de Chico Xavier longe
está de ter as luzes a si atribuídas; e os ilustrativos exemplos aqui
aglutinados são o resumo da questão, revelando-lhe a ignorância quanto a
conceitos geológicos e historiográficos que são, ainda que segmentados a seu
meio, conhecidos, reconhecidos e comprovados. Após, conclui-se que Emmanuel
demonstrou um conhecimento bastante superficial da Doutrina dos Espíritos,
sendo-lhe ignorado conceitos básicos presentes nas obras da codificação – que
espécie de Espírito chama a si uma autoridade que não possui, um conhecimento
que não tem?
4. Conclusão
Allan Kardec traça um perfil bastante interessante em dois
itens constantes do capítulo denominado Da Obsessão, presente em O
Livro dos Médiuns:
"246. Há, Espíritos obsessores sem maldade, que alguma coisa mesmo denotam de bom, mas dominados pelo orgulho do falso saber. Têm suas idéias, seus sistemas sobre as ciências, a economia social, a moral, a religião, a filosofia, e querem fazer que suas opiniões prevaleçam. Para esse efeito, procuram médiuns bastante crédulos para os aceitar de olhos fechados e que eles fascinam, a fim de os impedir de discernirem o verdadeiro do falso. São os mais perigosos, porque os sofismas nada lhes custam e podem tornar cridas as mais ridículas utopias. Como conhecem o prestígio dos grandes nomes, não escrupulizam em se adornarem com um daqueles diante dos quais todos se inclinam, e não recuam sequer ante o sacrilégio de se dizerem Jesus, a Virgem Maria, ou um santo venerado. Procuram deslumbrar por meio de uma linguagem empolada, mais pretensiosa do que profunda, eriçada de termos técnicos e recheada das retumbantes palavras –– caridade e moral. Cuidadosamente evitarão dar um mau conselho, porque bem sabem que seriam repelidos. Daí vem que os que são por eles enganados os defendem, dizendo: Bem vedes que nada dizem de mau. A moral, porém, para esses Espíritos é simples passaporte, é o que menos os preocupa. O que querem, acima de tudo, é impor suas idéias por mais disparatadas que sejam.”
"247. Os Espíritos dados a sistemas são geralmente escrevinhadores, pelo que buscam os médiuns que escrevem com facilidade e dos quais tratam de fazer instrumentos dóceis e, sobretudo, entusiastas, fascinando-os. São quase sempre verbosos, muito prolixos, procurando compensar a qualidade pela quantidade. Comprazem-se em ditar, aos seus intérpretes, volumosos escritos indigestos e freqüentemente pouco inteligíveis, que, felizmente, têm por antídoto a impossibilidade material de serem lidos pelas massas. Os Espíritos verdadeiramente superiores são sóbrios de palavras; dizem muita coisa em poucas frases. Segue-se que aquela fecundidade prodigiosa deve sempre ser suspeita. Nunca será demais toda a circunspecção, quando se trate de publicar semelhantes escritos. As utopias e as excentricidades, que neles por vezes abundam e chocam o bom-senso, produzem lamentável impressão nas pessoas ainda noviças na Doutrina, dando-lhes uma idéia falsa do Espiritismo, sem mesmo se levar em conta que são armas de que se servem seus inimigos, para ridicularizá-lo. Entre tais publicações, algumas há que, sem serem más e sem provirem de um obsessão, podem considerar-se imprudentes, intempestivas, ou desazadas."
Curioso perfil este, não? Ele não se adéqua ao Espírito em
estudo? Houve no passado, como os há no presente e persistirão no futuro
existindo os aderentes de Emmanuel, de Chico Xavier, de toda a mítica que os
envolve e embala num gracioso pacote de tênue religiosidade, idolatria e
fanatismo. Mas, nenhum fanático o é debilmente – a recusa diante dos fatos
compra consciências, afaga egos, sustenta carreiras e faz da fé profissão muito
bem paga; além de alimentar a raiva, a ignorância, os melindres e as dissensões
descabidas.