A questão que dá título a esta postagem pode ser, com certa frequência, respondida com uma positiva interjeição por muitos daqueles que se consideram adeptos da Doutrina dos Espíritos. Por diversas vias essa crença sem fundamento se sustenta, unicamente para diminuir a importância do trabalho da Codificação empreendido por Allan Kardec – é a manifestação tácita das velhas vozes sussurrantes que sempre se opuseram ao Espiritismo, e que permanecem assediando e molestando as mentes mais sensíveis e impressionáveis. A esta mente predisposta alia-se a superficialidade instrucional que os alegados espíritas têm das Obras Básicas; e é esta superficialidade que dá vazão a toda sorte de hipóteses descabidas, dentre as quais que o Espiritismo é uma doutrina por ser acabada, incompleta, a quem carece mais. Porém, porque persiste este argumento? Pode-se apanhar, em realidade, diversos trechos das Obras Básicas onde Allan Kardec parece afirmar a isto – mas, o que está aparente, com certa frequência, não é o que está no fundo. No entanto, parte do problema, senão todo ele, está na capacidade, ou falta desta, de interpretar um texto do 'sujeito espírita brasileiro'. Senão vejamos os principais trechos onde o professor parece alegar para isto. Em artigo da Revista Espírita, edição de fevereiro de 1865, sob o título Perpetuidade do Espiritismo, tem-se os seguintes trechos publicados:
“Mas, dirão, ao lado dos fatos (as
manifestações espíritas) tendes uma teoria, uma doutrina; quem vos diz que essa
teoria não sofrerá variações? Que em alguns anos a de hoje será a mesma? Sem
dúvida ela pode sofrer modificações em seus detalhes, em consequência de novas
observações; mas, uma vez adquirido, o princípio não pode variar e, menos
ainda, ser anulado; eis o essencial. Desde Copérnico e Galileu tem-se calculado
melhor o movimento da Terra e dos astros, mas o fato do movimento ficou com o
princípio.”
“O Espiritismo está longe de haver dito a última palavra, quanto às suas
consequências, mas é inquebrantável em sua base, porque esta base está
assentada nos fatos.”
Allan Kardec aqui explica, utilizando
inclusive da analogia ao advento dos trabalhos de Copérnico e Galileu, que o
princípio, este é invariável, não sendo possível anulá-lo; seus detalhes é que
se poderão sofrer modificações, nada além. No segundo enxerto, veja-se que o
trecho ‘quanto as suas consequências’
encontra-se delimitado por vírgulas, num caso claro de isolamento de termo
explicativo. Ou seja, o Espiritismo pode não ter dito a última palavra quanto
as suas consequências, mas sua base aí está, inquebrantável, e inquebrantável
porque assentada em fatos. Outro trecho, deliberadamente interpretado ao sabor
de partidárias necessidades, encontra-se em artigo publicado na Revista Espírita de julho de 1866, sob o
título Visão Retrospectiva da Existência
do Espírito, a propósito do Dr. Cailleux – a ele:
“O Livro dos Espíritos não é um tratado
completo do Espiritismo; não faz senão apresentar as bases e os pontos
fundamentais, que se devem desenvolver sucessivamente pelo estudo e pela
observação.”
Ora, se o Livro dos Espíritos ‘não faz senão apresentar as bases e os pontos fundamentais' então,
portanto, a Doutrina está completa. Todo espírita sabe que os demais livros que
compõem as Obras Básicas são extensões das quatro partes componentes da
primeira obra, qual seja O Livro dos Espíritos; o desenvolvimento destes
pontos fundamentais, os desdobramentos e o estudo destes, são tratados
posteriormente. Ignorará o 'sujeito espírita brasileiro' as bases do
Espiritismo? Acaso lho fosse solicitado que enumerasse ao menos cinco desses
fundamentos, ele o faria com segurança e desenvoltura, propriedade dos que
estudam o Espiritismo? Obviamente, quem aqui defende este trecho suprime,
criminosamente, outras tantas partes das obras kardecianas que lhes são
contrários a tese da incompletude – por exemplo, no item 35 do capítulo III de O
Livro dos Médiuns, intitulado Do Método, tem-se o seguinte:
“O Livro dos Espíritos. Contém a doutrina completa, como a ditaram os
próprios Espíritos, com toda a sua filosofia e todas as suas consequências
morais.”
Allan Kardec se contradisse? Ou será apenas questão de ler
atentamente suas palavras? Na edição da Revista Espírita de dezembro de
1868, o professor escreve a Constituição Transitória do Espiritismo, em
cujo item VI, sob o título Obras Fundamentais da Doutrina, relata que
muitos dos seus correspondentes e conhecidos lamentam que as obras fundamentais
do Espiritismo tenham para si um valor proibitivo à aquisição, sugerindo a
confecção de ‘edições populares a baixo custo’, ao qual concorda.
Todavia, ele se escusa por não fazer atendê-los, em vista dos custos materiais
e do dispêndio que faria de seu parco tempo, uma vez que trabalhou não para as
questões de ordem comercial relativas as obras fundamentais, pois, segundo suas
próprias palavras - 'O que importava,
antes de tudo, era que as obras fossem feitas e assentadas as bases da
Doutrina.' Ou seja, uma vez mais, Allan Kardec deixa claro que as bases, os
fundamentos da Doutrina, estão todos à vista, expostos, assentados,
demonstrados, e à apreciação e estudo de todos. Porém, em tal mesmo artigo em
exame, destaca-se:
“Não será, pois, invariável o
programa da Doutrina, senão com referência aos princípios que hoje tenham
passado à condição de verdades comprovadas. Com relação aos outros, não os
admitirá, como há feito sempre, senão a título de hipóteses, até que sejam
confirmados. Se lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ela se
modificará nesse ponto.”
Numa
tomada de vista apriorística se pode dar fé que esta passagem é parte das
muitas hipotéticas afirmações que Allan Kardec faz acerca da incompletude do
Espiritismo. Todavia, será preciso explicá-la, por certo – o Codificador afirma
que variará o Espiritismo em seus princípios, princípios estes já comprovados
como verdades. A qualquer outra doutrina ou ideologia que se queira atar a
Doutrina dos Espíritos, será tomada por hipótese até que sejam confirmadas. O
que alimenta os adeptos da incompletude doutrinária é a afirmação que principia
a frase, a da variação dos princípios espíritas. Mas Kardec não afirma que
estes variarão segundo qualquer mensagem mediúnica, ou seja, não será pela pena
dos romancistas de além-túmulo e seus médiuns fascinados que se verá caírem ou
alterarem os princípios espíritas. A título de demonstrar que a visão só
enxerga o que se quer, neste mesmo artigo, há ainda as seguintes e pertinentes
passagens:
“É de notar-se que os vários sistemas divergentes, surgidos na origem do
Espiritismo, sobre a maneira de explicarem-se os fatos, foram desaparecendo à
medida que a Doutrina se completou por meio da observação e de uma teoria
racional.”
“Apoiada
tão só nas leis da Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas, se
uma nova lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com essa lei. Não lhe
cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando
todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas
ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das
principais garantias de sua perpetuidade.”
No
primeiro trecho, Allan Kardec uma vez mais afirma que a ‘Doutrina se completou’! – para, no segundo, deixar claro que o
Espiritismo caminhará de par com o progresso; contudo, ainda é preciso
questionar – este progresso se encontrará em romances mediúnicos? Um exame
atento destas obras, procedimento pouco comum ao ilegítimo ‘meio espírita’, se infere pela negativa.
Em O Livro dos Médiuns, capítulo IV, Dos Sistemas, expressa-se do seguinte
modo Allan Kardec:
“À medida
que os fatos se completam e vão sendo mais bem observados, as idéias prematuras
se apagam e a unidade se estabelece, pelo menos com relação aos pontos
fundamentais, senão a todos os pormenores. Foi o que se deu com o Espiritismo,
que não podia fugir à lei comum e tinha mesmo, por sua natureza, que se
prestar, mais do que qualquer outro assunto, à diversidade das interpretações.”
Em A Gênese, capítulo 1, sob o título Caráter da Revelação Espírita, tem-se:
“Decorre esse fato de
ser inumerável a multidão de Espíritos que, por vontade de Deus, se
manifestaram simultaneamente, trazendo cada um o contingente de seus
conhecimentos. Resultou daí que todas as partes da Doutrina, em vez de serem
elaboradas sucessivamente durante vários séculos, o foram quase ao mesmo tempo,
em alguns anos apenas, e que bastou reuni-las para que estruturassem um todo.”
Ao
quarto livro da codificação espírita, O
Céu e o Inferno, na primeira parte, capítulo III, O Céu, item 19, tem-se as seguintes palavras do professor:
“A revelação limitada foi
suficiente a certo período da humanidade, e Deus a proporciona gradativamente
ao progresso e às forças do Espírito. Os que recebem hoje uma revelação mais
completa são os mesmos Espíritos que tiveram dela uma
partícula em outros tempos e que de então por diante se engrandeceram em
inteligência.”
Ainda,
há que fazer notar para uma teoria interessante, de como se pode ter surgido em
parte esta ideia segundo a qual o Espiritismo é uma doutrina incompleta ou
inacabada. É curioso notá-la em Obras
Póstumas, em diálogo travado de Allan Kardec para com o Espírito da
Verdade, datado de 10 de
junho de 1860, um domingo:
“Não permanecerás longo tempo entre
nós. Terás que volver à Terra para concluir a tua missão, que não podes
terminar nesta existência. Se fosse possível, absolutamente não sairias daí;
mas, é preciso que se cumpra a lei da Natureza. Ausentar-te-ás por alguns anos
e, quando voltares, será em condições que te permitam trabalhar desde cedo.
Entretanto, há trabalhos que convém os acabes antes de partires; por isso,
dar-te-emos o tempo que for necessário a concluí-los.
NOTA — Calculando
aproximadamente a duração dos trabalhos que ainda tenho de fazer e levando em
conta o tempo da minha ausência e os anos da infância e da juventude, até à
idade em que um homem pode desempenhar no mundo um papel, a minha volta deverá
ser forçosamente no fim deste século ou no princípio do outro.”
Há
ainda outro extrato, da mesma obra, este datado de 17 de janeiro de 1857, um
sábado:
“Mas, ah! a verdade não será
conhecida de todos, nem crida, senão daqui a muito tempo! Nessa existência não
verás mais do que a aurora do êxito da tua obra. Terás que voltar, reencarnado
noutro corpo, para completar o que houveres
começado e, então, dada te será a satisfação de ver em plena frutificação a
semente que houveres espalhado pela Terra.”
Todavia, em outro ponto da obra, em opúsculo datado de 24 de
janeiro de 1860, uma terça-feira, tem-se o seguinte:
“Achei-me,
pois, muito surpreendido, ao receber de um dos meus correspondentes de Limoges
uma comunicação dada espontaneamente, em que o Espírito, falando de meus
trabalhos, dizia que dez anos se passariam antes que eu os terminasse.”
“NOTA — (Escrita em
dezembro de 1866) — Tenho publicado quatro volumes
substanciosos, sem falar de coisas acessórias. Os Espíritos instam para que eu
publique A Gênese em
1867, antes das perturbações. Durante o período da grande perturbação terei de
trabalhar nos livros complementares da Doutrina, que não poderão aparecer senão
depois da forte tormenta e para os quais me são precisos de três a quatro anos.
Isso nos leva, o mais cedo, a 1870, isto é, em torno de 10 anos.”
Esta
nota anexa foi escrita em 1866 e, como pode-se concluir, faltava ainda A Gênese por ser publicada, ao fim do
qual Allan Kardec expressou seu desejo por trabalhar, por cerca de quatro anos
nos 'livros complementares da Doutrina' – para que haja complemento é
necessário que a Doutrina esteja já toda apresentada, presente, finda e
publicada, fato que se daria, dali há um ano para além do prazo aventado por
Kardec com a chegada de A Gênese. Uma
doutrina é um conjunto de ideias fundamentais contidas num sistema filosófico,
político, religioso, científico, econômico, etc. Há algo que falte ao que está
presente nas cinco Obras Básicas espíritas, nos fundamentos ali apresentados?
Para os de sensibilidade exacerbada, afeitos as novidades, toda sorte de
parvalhices surgidas no horizonte se presta a integrar o Espiritismo. Como
engolir, diante do Controle Universal dos Ensinamentos dos Espíritos essas
ideologias que propalam uma erraticidade materialista, um períspirito
fisiológico, múltiplos corpos formadores do ser, métodos terapêuticos por meio
de cristalterapia, reiki, apometria, a adoção da crença em crianças índigo,
cristal, etc.? Os 'sujeitos espíritas
brasileiros' que afirmam que são espíritas estas práticas e crenças, depõem
contra o Espiritismo como nenhum detrator fora capaz de fazê-lo; e são os
mesmos que dão como certo o Espiritismo como doutrina inacabada, incompleta.
Mas, se a Doutrina Espírita fora completamente exposta nas cinco Obras Básicas, a missão de Allan Kardec estava terminada – parte dela sim, como o atestado nos enxertos. A que se prestaria a continuidade da missão deste em outra existência? Não se sabe, e é material para especulações infindas – dentre as quais, afirmar que Chico Xavier fora Allan Kardec reencarnado. Basta que o curioso leia Obras Póstumas, nos pontos onde, travando contato com o Espírito da Verdade, o professor Rivail é noticiado de sua missão. O modo como esta se lhe é apresentada como opção, e jamais como uma imposição, respeitando-lhe seu livre-arbítrio, vai na contramão da intimidação sofrida por Chico Xavier por parte de Emmanuel – teria um homem cerebral e racional regredido a condição de um iletrado servil, vítima dos caprichos e da coação de um obsessor? O Espiritismo prega a progressão do ser, e não o contrário.
Claramente
o tema é amplo, a tanto que há muitas passagens mais que poderiam, e o são, erroneamente
interpretadas, ou lidas de modo acrítico, das Obras Básicas, apontadas ad
aeternum como afirmações de Allan Kardec para a incompletude do
Espiritismo. Passar-se-iam muitas páginas mais demonstrando como devem ser
lidas corretamente tais passagens sem que, contudo, se dobrassem as opiniões em
contrário. Mas a letra está lá, nas obras fundamentais do Espiritismo – basta
serem lidas e estudadas. A fim de encerrar-se este pequeno opúsculo que, apenas
e tão somente faz notar o óbvio, tanto mais explicando, e por isso mesmo,
honrando o legado pedagógico do professor Rivail, quanto tangendo em ponto
polêmico, porém nevrálgico ao entendimento do que seja o Espiritismo para os
que afirmam serem seus adeptos, destaca-se um trecho que, por ocasião do
lançamento de O Céu e o Inferno,
Allan Kardec transcreve parte do seu prefácio na Revista Espírita de setembro de 1865, onde, uma vez mais afirma o
já sabido:
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