sábado, 10 de agosto de 2019

O Espiritismo é uma Doutrina Incompleta?


A questão que dá título a esta postagem pode ser, com certa frequência, respondida com uma positiva interjeição por muitos daqueles que se consideram adeptos da Doutrina dos Espíritos. Por diversas vias essa crença sem fundamento se sustenta, unicamente para diminuir a importância do trabalho da Codificação empreendido por Allan Kardec – é a manifestação tácita das velhas vozes sussurrantes que sempre se opuseram ao Espiritismo, e que permanecem assediando e molestando as mentes mais sensíveis e impressionáveis. A esta mente predisposta alia-se a superficialidade instrucional que os alegados espíritas têm das Obras Básicas; e é esta superficialidade que dá vazão a toda sorte de hipóteses descabidas, dentre as quais que o Espiritismo é uma doutrina por ser acabada, incompleta, a quem carece mais. Porém, porque persiste este argumento? Pode-se apanhar, em realidade, diversos trechos das Obras Básicas onde Allan Kardec parece afirmar a isto – mas, o que está aparente, com certa frequência, não é o que está no fundo. No entanto, parte do problema, senão todo ele, está na capacidade, ou falta desta, de interpretar um texto do 'sujeito espírita brasileiro'. Senão vejamos os principais trechos onde o professor parece alegar para isto. Em artigo da Revista Espírita, edição de fevereiro de 1865, sob o título Perpetuidade do Espiritismo, tem-se os seguintes trechos publicados:

Mas, dirão, ao lado dos fatos (as manifestações espíritas) tendes uma teoria, uma doutrina; quem vos diz que essa teoria não sofrerá variações? Que em alguns anos a de hoje será a mesma? Sem dúvida ela pode sofrer modificações em seus detalhes, em consequência de novas observações; mas, uma vez adquirido, o princípio não pode variar e, menos ainda, ser anulado; eis o essencial. Desde Copérnico e Galileu tem-se calculado melhor o movimento da Terra e dos astros, mas o fato do movimento ficou com o princípio.

O Espiritismo está longe de haver dito a última palavra, quanto às suas consequências, mas é inquebrantável em sua base, porque esta base está assentada nos fatos.

Allan Kardec aqui explica, utilizando inclusive da analogia ao advento dos trabalhos de Copérnico e Galileu, que o princípio, este é invariável, não sendo possível anulá-lo; seus detalhes é que se poderão sofrer modificações, nada além. No segundo enxerto, veja-se que o trecho ‘quanto as suas consequências’ encontra-se delimitado por vírgulas, num caso claro de isolamento de termo explicativo. Ou seja, o Espiritismo pode não ter dito a última palavra quanto as suas consequências, mas sua base aí está, inquebrantável, e inquebrantável porque assentada em fatos. Outro trecho, deliberadamente interpretado ao sabor de partidárias necessidades, encontra-se em artigo publicado na Revista Espírita de julho de 1866, sob o título Visão Retrospectiva da Existência do Espírito, a propósito do Dr. Cailleux – a ele:
           
O Livro dos Espíritos não é um tratado completo do Espiritismo; não faz senão apresentar as bases e os pontos fundamentais, que se devem desenvolver sucessivamente pelo estudo e pela observação.

Ora, se o Livro dos Espíritosnão faz senão apresentar as bases e os pontos fundamentais' então, portanto, a Doutrina está completa. Todo espírita sabe que os demais livros que compõem as Obras Básicas são extensões das quatro partes componentes da primeira obra, qual seja O Livro dos Espíritos; o desenvolvimento destes pontos fundamentais, os desdobramentos e o estudo destes, são tratados posteriormente. Ignorará o 'sujeito espírita brasileiro' as bases do Espiritismo? Acaso lho fosse solicitado que enumerasse ao menos cinco desses fundamentos, ele o faria com segurança e desenvoltura, propriedade dos que estudam o Espiritismo? Obviamente, quem aqui defende este trecho suprime, criminosamente, outras tantas partes das obras kardecianas que lhes são contrários a tese da incompletude – por exemplo, no item 35 do capítulo III de O Livro dos Médiuns, intitulado Do Método, tem-se o seguinte:

O Livro dos Espíritos. Contém a doutrina completa, como a ditaram os próprios Espíritos, com toda a sua filosofia e todas as suas consequências morais.

Allan Kardec se contradisse? Ou será apenas questão de ler atentamente suas palavras? Na edição da Revista Espírita de dezembro de 1868, o professor escreve a Constituição Transitória do Espiritismo, em cujo item VI, sob o título Obras Fundamentais da Doutrina, relata que muitos dos seus correspondentes e conhecidos lamentam que as obras fundamentais do Espiritismo tenham para si um valor proibitivo à aquisição, sugerindo a confecção de ‘edições populares a baixo custo’, ao qual concorda. Todavia, ele se escusa por não fazer atendê-los, em vista dos custos materiais e do dispêndio que faria de seu parco tempo, uma vez que trabalhou não para as questões de ordem comercial relativas as obras fundamentais, pois, segundo suas próprias palavras - 'O que importava, antes de tudo, era que as obras fossem feitas e assentadas as bases da Doutrina.' Ou seja, uma vez mais, Allan Kardec deixa claro que as bases, os fundamentos da Doutrina, estão todos à vista, expostos, assentados, demonstrados, e à apreciação e estudo de todos. Porém, em tal mesmo artigo em exame, destaca-se:

Não será, pois, invariável o programa da Doutrina, senão com referência aos princípios que hoje tenham passado à condição de verdades comprovadas. Com relação aos outros, não os admitirá, como há feito sempre, senão a título de hipóteses, até que sejam confirmados. Se lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ela se modificará nesse ponto.

Numa tomada de vista apriorística se pode dar fé que esta passagem é parte das muitas hipotéticas afirmações que Allan Kardec faz acerca da incompletude do Espiritismo. Todavia, será preciso explicá-la, por certo – o Codificador afirma que variará o Espiritismo em seus princípios, princípios estes já comprovados como verdades. A qualquer outra doutrina ou ideologia que se queira atar a Doutrina dos Espíritos, será tomada por hipótese até que sejam confirmadas. O que alimenta os adeptos da incompletude doutrinária é a afirmação que principia a frase, a da variação dos princípios espíritas. Mas Kardec não afirma que estes variarão segundo qualquer mensagem mediúnica, ou seja, não será pela pena dos romancistas de além-túmulo e seus médiuns fascinados que se verá caírem ou alterarem os princípios espíritas. A título de demonstrar que a visão só enxerga o que se quer, neste mesmo artigo, há ainda as seguintes e pertinentes passagens:

É de notar-se que os vários sistemas divergentes, surgidos na origem do Espiritismo, sobre a maneira de explicarem-se os fatos, foram desaparecendo à medida que a Doutrina se completou por meio da observação e de uma teoria racional.

Apoiada tão só nas leis da Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas, se uma nova lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com essa lei. Não lhe cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias de sua perpetuidade.

No primeiro trecho, Allan Kardec uma vez mais afirma que a ‘Doutrina se completou’! – para, no segundo, deixar claro que o Espiritismo caminhará de par com o progresso; contudo, ainda é preciso questionar – este progresso se encontrará em romances mediúnicos? Um exame atento destas obras, procedimento pouco comum ao ilegítimo ‘meio espírita’, se infere pela negativa. Em O Livro dos Médiuns, capítulo IV, Dos Sistemas, expressa-se do seguinte modo Allan Kardec:

À medida que os fatos se completam e vão sendo mais bem observados, as idéias prematuras se apagam e a unidade se estabelece, pelo menos com relação aos pontos fundamentais, senão a todos os pormenores. Foi o que se deu com o Espiritismo, que não podia fugir à lei comum e tinha mesmo, por sua natureza, que se prestar, mais do que qualquer outro assunto, à diversidade das interpretações.

Em A Gênese, capítulo 1, sob o título Caráter da Revelação Espírita, tem-se:

Decorre esse fato de ser inumerável a multidão de Espíritos que, por vontade de Deus, se manifestaram simultaneamente, trazendo cada um o contingente de seus conhecimentos. Resultou daí que todas as partes da Doutrina, em vez de serem elaboradas sucessivamente durante vários séculos, o foram quase ao mesmo tempo, em alguns anos apenas, e que bastou reuni-las para que estruturassem um todo.

Ao quarto livro da codificação espírita, O Céu e o Inferno, na primeira parte, capítulo III, O Céu, item 19, tem-se as seguintes palavras do professor:

A revelação limitada foi suficiente a certo período da humanidade, e Deus a proporciona gradativamente ao progresso e às forças do Espírito. Os que recebem hoje uma revelação mais completa são os mesmos Espíritos que tiveram dela uma partícula em outros tempos e que de então por diante se engrandeceram em inteligência.

Ainda, há que fazer notar para uma teoria interessante, de como se pode ter surgido em parte esta ideia segundo a qual o Espiritismo é uma doutrina incompleta ou inacabada. É curioso notá-la em Obras Póstumas, em diálogo travado de Allan Kardec para com o Espírito da Verdade, datado de 10 de junho de 1860, um domingo:

Não permanecerás longo tempo entre nós. Terás que volver à Terra para concluir a tua missão, que não podes terminar nesta existência. Se fosse possível, absolutamente não sairias daí; mas, é preciso que se cumpra a lei da Natureza. Ausentar-te-ás por alguns anos e, quando voltares, será em condições que te permitam trabalhar desde cedo. Entretanto, há trabalhos que convém os acabes antes de partires; por isso, dar-te-emos o tempo que for necessário a concluí-los.
NOTA — Calculando aproximadamente a duração dos trabalhos que ainda tenho de fazer e levando em conta o tempo da minha ausência e os anos da infância e da juventude, até à idade em que um homem pode desempenhar no mundo um papel, a minha volta deverá ser forçosamente no fim deste século ou no princípio do outro.

Há ainda outro extrato, da mesma obra, este datado de 17 de janeiro de 1857, um sábado:

Mas, ah! a verdade não será conhecida de todos, nem crida, senão daqui a muito tempo! Nessa existência não verás mais do que a aurora do êxito da tua obra. Terás que voltar, reencarnado noutro corpo, para completar o que houveres começado e, então, dada te será a satisfação de ver em plena frutificação a semente que houveres espalhado pela Terra.

Todavia, em outro ponto da obra, em opúsculo datado de 24 de janeiro de 1860, uma terça-feira, tem-se o seguinte:

Achei-me, pois, muito surpreendido, ao receber de um dos meus correspondentes de Limoges uma comunicação dada espontaneamente, em que o Espírito, falando de meus trabalhos, dizia que dez anos se passariam antes que eu os terminasse.
NOTA — (Escrita em dezembro de 1866) — Tenho publicado quatro volumes substanciosos, sem falar de coisas acessórias. Os Espíritos instam para que eu publique A Gênese em 1867, antes das perturbações. Durante o período da grande perturbação terei de trabalhar nos livros complementares da Doutrina, que não poderão aparecer senão depois da forte tormenta e para os quais me são precisos de três a quatro anos. Isso nos leva, o mais cedo, a 1870, isto é, em torno de 10 anos.

Esta nota anexa foi escrita em 1866 e, como pode-se concluir, faltava ainda A Gênese por ser publicada, ao fim do qual Allan Kardec expressou seu desejo por trabalhar, por cerca de quatro anos nos 'livros complementares da Doutrina' – para que haja complemento é necessário que a Doutrina esteja já toda apresentada, presente, finda e publicada, fato que se daria, dali há um ano para além do prazo aventado por Kardec com a chegada de A Gênese. Uma doutrina é um conjunto de ideias fundamentais contidas num sistema filosófico, político, religioso, científico, econômico, etc. Há algo que falte ao que está presente nas cinco Obras Básicas espíritas, nos fundamentos ali apresentados? Para os de sensibilidade exacerbada, afeitos as novidades, toda sorte de parvalhices surgidas no horizonte se presta a integrar o Espiritismo. Como engolir, diante do Controle Universal dos Ensinamentos dos Espíritos essas ideologias que propalam uma erraticidade materialista, um períspirito fisiológico, múltiplos corpos formadores do ser, métodos terapêuticos por meio de cristalterapia, reiki, apometria, a adoção da crença em crianças índigo, cristal, etc.? Os 'sujeitos espíritas brasileiros' que afirmam que são espíritas estas práticas e crenças, depõem contra o Espiritismo como nenhum detrator fora capaz de fazê-lo; e são os mesmos que dão como certo o Espiritismo como doutrina inacabada, incompleta.


Mas, se a Doutrina Espírita fora completamente exposta nas cinco Obras Básicas, a missão de Allan Kardec estava terminada – parte dela sim, como o atestado nos enxertos. A que se prestaria a continuidade da missão deste em outra existência? Não se sabe, e é material para especulações infindas – dentre as quais, afirmar que Chico Xavier fora Allan Kardec reencarnado. Basta que o curioso leia Obras Póstumas, nos pontos onde, travando contato com o Espírito da Verdade, o professor Rivail é noticiado de sua missão. O modo como esta se lhe é apresentada como opção, e jamais como uma imposição, respeitando-lhe seu livre-arbítrio, vai na contramão da intimidação sofrida por Chico Xavier por parte de Emmanuel – teria um homem cerebral e racional regredido a condição de um iletrado servil, vítima dos caprichos e da coação de um obsessor? O Espiritismo prega a progressão do ser, e não o contrário.

Claramente o tema é amplo, a tanto que há muitas passagens mais que poderiam, e o são, erroneamente interpretadas, ou lidas de modo acrítico, das Obras Básicas, apontadas ad aeternum como afirmações de Allan Kardec para a incompletude do Espiritismo. Passar-se-iam muitas páginas mais demonstrando como devem ser lidas corretamente tais passagens sem que, contudo, se dobrassem as opiniões em contrário. Mas a letra está lá, nas obras fundamentais do Espiritismo – basta serem lidas e estudadas. A fim de encerrar-se este pequeno opúsculo que, apenas e tão somente faz notar o óbvio, tanto mais explicando, e por isso mesmo, honrando o legado pedagógico do professor Rivail, quanto tangendo em ponto polêmico, porém nevrálgico ao entendimento do que seja o Espiritismo para os que afirmam serem seus adeptos, destaca-se um trecho que, por ocasião do lançamento de O Céu e o Inferno, Allan Kardec transcreve parte do seu prefácio na Revista Espírita de setembro de 1865, onde, uma vez mais afirma o já sabido:

O Livro dos Espíritos contém as bases fundamentais do Espiritismo; é a pedra angular do edifício; todos os princípios da doutrina aí estão expostos, até os que devem constituir o seu coroamento; mas era necessário lhe dar desenvolvimentos, deduzir-lhe todas as consequências e todas as aplicações, à medida que se desdobravam pelo ensino complementar dos Espíritos e por novas observações. Foi o que fizemos em O Livro dos Médiuns e em O Evangelho segundo o Espiritismo, em pontos de vista especiais; é o que fazemos nesta obra sob um outro ponto de vista, e é o que faremos sucessivamente nas que nos restam publicar, e que virão a seu tempo.

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