sábado, 24 de agosto de 2019

"Fogo amigo" - o obscurantismo do meio

Está provado que o Espiritismo é mais entravado pelos que o compreendem mal do que pelos que não o compreendem absolutamente, e, mesmo, pelos inimigos declarados.” - Revista Espírita, novembro de 1864, O Espiritismo é uma Ciência Positiva.

A edição de março de 1999 da Revista Cristã de Espiritismo, tem na chamada de capa a manchete 'A Sútil Questão das Colônias Espirituais' – no miolo, o artigo composto por um tal Dr. Victor Ronaldo Costa, médico e homeopata oriundo de Brasília, e adepto da Apometria (prática terapêutica baseada na falaciosa premissa segundo a qual pode o Espírito adoecer), onde os trechos seguintes se destacam:

(...) muito embora, o célebre educador lionês (referindo-se a Allan Kardec) não dispusesse de condições para traduzir durante a etapa reencarnatório que lhe fora confiada tudo o que seria de se esperar, já que o próprio Jesus, o mais qualificado Espírito que se tem conhecimento, não pode, na sua época, nos falar de determinados assuntos, prometendo-nos, em consequência, a oportuna vinda do Consolador. (…) O Consolador Prometido, representado na atualidade pela Doutrina dos Espíritos, responsabilizou-se por uma determinada quantidade de informações variadas, logicamente sem a pretensão de tê-las esgotado. (…) Não obstante as informações prestadas por André Luiz e demais orientadores que se manifestam através de outros médiuns não menos respeitados, ainda existe quem duvide da existência das cidades espirituais. São criaturas que, embora se digam espíritas, não se desvincularam ainda de certos dogmas religiosos, alimentando um verdadeiro pavor da morte, em decorrência da concepção clericalista que defende a existência de um 'céu' e um 'inferno' eternos... (…) Como frisamos inicialmente, Jesus abordou uma parte da Verdade e Kardec não poderia comportar-se de forma diferente. A letra kardequiana nos reservou o básico, porém o restante, as filigranas de determinadas questões e as demais revelações ficariam por conta do desenvolvimento da Doutrina através dos tempos. É inconcebível admitir-se a possibilidade de um Espiritismo estanque, desprezando as demais informações mediúnicas coligidas fora daquilo que Kardec anotou em sua obra. (…) Além do mais, perguntaríamos, qual seria a nossa destinação após o decesso carnal e onde permaneceríamos, às vezes por séculos, até a próxima reencarnação? Perambulando a esmo pela erraticidade? O bom-senso, mais do que nunca, nos aponta para a realidade das cidades espirituais.

Fogo amigo – esse é um termo utilizado nos meios militares, especificamente em situação de combate, quando um ataque é desferido, atingindo inadvertidamente as próprias tropas ou tropas aliadas. Seria este o presente caso? Temos utilizado nas postagens que preenchem ao presente blog  expressões tais como 'sujeito espírita brasileiro', 'espírita', 'espiritismo', 'supostamente espírita' e que tais para nos referirmos a indivíduos como este senhor, autor do artigo de onde foram retirados os trechos acima. São expressões demeritórias? Alguns afirmarão positivamente, mas jamais nos arvoraremos desejar o poder, ou que este nos seja outorgado por outrem, para ofender a ninguém – quem assim se manifestar estará a nos emprestar uma importância desmedida. É no campo das ideias que estas devem ser discutidas, e a Doutrina dos Espíritos carece, mais do que jamais precisou, de bons articuladores de ideias; mas, mais do que isto, de estudantes exemplares. As expressões usadas aqui podem parecer demeritórias ou ofensivas, mas elas não encerram uma verdade? Posto que o movimento espírita nacional não pratica de fato o Espiritismo, porque dever-se-ia tratá-lo como algo legítimo? Acaso não prossegue desconhecendo a Doutrina codificada por Allan Kardec, aderindo sem discernimento e ressalva a qualquer mensagem ou obra mediúnica, indo contra as advertências deste? Não é o cenário atual, e já não o é há muitas décadas? Este blog se dirige a estudantes de Espiritismo; aos que supostamente se consideram espíritas, por certo que há outros sites e portais cujos articulistas e escritores lhes estejam mais ao gosto e ao pendor íntimo por seguir uma religião, ainda que ela não exista factualmente.

O Dr. Victor Ronaldo Costa é exemplar ao seguir a cartilha dos defensores das Colônias Espirituais neste seu artigo – principia por sustentar o mito do Espiritismo como doutrina inacabada, ponto já abordado em postagem anterior do presente blog. Sua argumentação, todavia, se sustenta num sofisma – Jesus não havendo tudo revelado, por que Allan Kardec o faria, já que ambos não estão em paridade de progresso espiritual? E por que isto importa, afinal? Tal ideia somente se sustenta na medida em que o Espiritismo é tomado como uma religião revelada, considerando, ipsis litteris, a ideia da Terceira Revelação; pior, se sustenta apenas por quem não leu as Obras Básicas. Este articulista demonstra ignorância quanto ao capítulo 1º de A Gênese, intitulado Caráter da Revelação Espírita. Está lá o seguinte:

O Espiritismo, dando-nos a conhecer o mundo invisível que nos cerca e no meio do qual vivíamos sem o suspeitarmos, assim como as leis que o regem, suas relações com o mundo visível, a natureza e o estado dos seres que o habitam e, por conseguinte, o destino do homem depois da morte, é uma verdadeira revelação, na acepção científica da palavra. (…) Numa palavra, o que caracteriza a revelação espírita é o ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem.

Considerando-se a dificuldade com a interpretação textual, uma palavra mais se faz necessária para explicar esta passagem em particular – ao homem, Allan Kardec, coube elaborar o que foi recebido dos Espíritos. Alguém que possa apontar um só trabalhador tão incansável quanto, tão racional e dotado de capacidade de síntese, didatismo e bom senso semelhante ao do Professor, e que tenha voltado forças a fim de colaborar para o enriquecimento da Doutrina dos Espíritos como este o fez, por favor, com muito gosto nos dispomos a conhecê-lo e parabenizá-lo. Mas, até que o silêncio não cesse de prosseguir gritando aos ouvidos dos estudantes que nenhum homem há que possa tê-lo igualado, senão dado de si muito mais do que fé cega em Espíritos romancistas, os horizontes do Espiritismo cessarão nas fronteiras dos escritos de Allan Kardec. Todavia, acreditar que um sujeito em particular abraçará uma missão no sentido de emprestar da autoridade do Codificador para dar continuidade ao Espiritismo é cair numa cilada flagrante – primeiramente por que se acreditará que a tarefa recairá a um sujeito em particular; isto não pode ser, e por mais que Allan Kardec em pessoa haja tentado desvincular sua imagem ao trabalho que desenvolveu, ambos acabaram unidos, principalmente tendo em vista toda a deturpação perpetrada a posteriori. Segundo, por que esta crença não leva em conta que Allan Kardec já deixou os meios pelos quais se pode dar contribuição a Doutrina dos Espíritos, identificando as inverdades, doutrinas anômalas, conceitos estranhos e toda sorte de invencionices cuja vanguarda levada inconsequentemente há de buscar atar a Doutrina. Este crime de lesa-cultura ocorreu, ocorre e prosseguirá ocorrendo ademais de quaisquer esforços para impedi-los. Recai a quem de fato se propõe ao estudo pesquisar, examinar, apontar os erros, denunciar os farsantes e as tentativas de deturpação; como, outrossim, dar prosseguimento as experimentações, buscando linhas de investigação próprias, exercitando os processos de instrução na criação de parâmetros de julgamento, que permitam balizar o Espiritismo para o futuro. Sendo o produto da coletividade dos Espíritos, e havendo necessitado de um Espírito missionário para codificá-la, a Doutrina dos Espíritos está, como anteriormente fora demonstrado, completa em todos os seus postulados, e desde O Livro dos Espíritos, de tal conta que não cabe deitar mais argumentos quanto a questão.

Num segundo momento, o articulista usa de um experiente tacanho, afrontando os descrentes das Colônias Espirituais pela suposição de que sejam incapazes de saber diferenciar o eterno do relativo, ou o perene do transitório. Quando Allan Kardec pontua em um sem número de passagens de toda sua obra espírita que não há local de pouso algum para os Espíritos, ele não o faz abordando a questão cronológica por que estes não ficarão alocados num espaço que determine, assim como um hotel ou pousada, a duração da estadia. Não há estadia, simplesmente. O tempo demandado entre uma encarnação e outra, chamada erraticidade por que justamente o Espírito erra sem fixar-se necessariamente a um local, decorre no tempo próprio deste – e o que faz ele nesse meio tempo? Ora, a erraticidade está toda ela apresentada em O Livro dos Espíritos, bastando ao interessado por olhos e esforços ao estudo. Mais, que o faça com igual afinco para o livro O Céu e o Inferno, que derroga argumentos quais este sustentado pelo Dr. Victor. Porém, como recomendado anteriormente em outra postagem, um zeloso exame se faz ao artigo de abril de 1859 da Revista Espírita intitulado Quadro da Vida Espírita; para os que desejam uma resposta sucinta e mais ligeira, é o texto perfeito de Allan Kardec acerca da questão. É de se imaginar se nosso articulista em exame tinha, então, conhecimento deste opúsculo em particular de Allan Kardec.

Ele encerra suas argumentações perpetrando o suicídio do próprio intelecto, incorrendo no mesmo amador erro dos que aderem de bom grado ao conceito das Colônias Espirituais, ao perguntar a destinação do Espírito após a morte. Ele não entendeu, como muitos aliás. Sua crença reside no fato de que deve habitar algum lugar, tendo um endereço fixo a exemplo de sua vida encarnada, revisitando a velha e boa casinha pastoril de cerquinha branca, jardim florido e janelas acortinadas – não lhe ocorre ir em busca de seu próprio progresso, mas que este lhe venha dado de bom grado por seu merecimento, por meio de bons Espíritos amigos que hão de visitá-lo e, de certo, conduzi-lo por museus de revelações ignoradas pelos encarnados, repartições e ministérios onde possa aprender e preparar sua nova encarnação. Todo o pacote esperado para si, incluindo a salvaguarda de seu períspirito, repleto de órgãos fluídicos que podem ser danificados pelo ataque de miasmas deletérios desferidos por hordas de invasores umbralinos, que urdem planos de invasão a colônia enquanto se aquartelam do lado de fora das muralhas magnéticas desta. Parece um passeio bem tranquilo por uma das atrações medievais do Beto Carrero World, faltando apenas um dragão cuspidor de fogo.

Realmente, é de insultar os esforços dispendidos em décadas de estudo contínuo da Doutrina dos Espíritos. Ao contrário do que o Dr. Victor pudesse imaginar (hoje, talvez possua ele uma ideia diversa da que sustentou em vida, uma vez que desencarnou em novembro de 2015 aos 72 anos), ou imaginam aderentes desta ideia das Colônias Espirituais, as obras mediúnicas dos Espíritos que vieram revelar tais ordens de conceitos não foram desprezadas. Pelo contrário, foram cotejadas as Obras Básicas, e demais escritos espíritas de Allan Kardec, tendo seu conteúdo detidamente examinado e passado pelo crivo racional do Controle Universal dos Ensinamentos dos Espíritos. O que se inferiu as pôs na condição do que se fato são - romances mediúnicos, literatura recreativa, distração mental e nada além. Para efeito de Doutrina dos Espíritos são inanes. Os livros que reportam a existência de tais paisagens formam, em seu conjunto, uma tentativa de enriquecimento por exploração da boa-fé e ignorância do ilegítimo 'movimento espírita', confeccionando imitações mais ou menos competentes de Nosso Lar e Violetas na Janela. Demandados quase 160 anos desde que Allan Kardec desferiu as palavras que compõem o frontispício desta postagem, elas nunca se mostraram tão atuais, infelizmente.


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