domingo, 18 de agosto de 2019

Colônia Espiritual - uma hipótese plausível


Breve introito
1. O assunto dá um livro – já deu, e não apenas de nossos esforços, mas é tema de diversos tomos de vários autores, em sua maioria partindo em defesa da existência de localidades específicas para onde se dirige o Espírito após o seu desencarne. Por conseguinte, são obras de defesa flagrante dos seus autores espirituais e os médiuns que as psicografaram, em especial as figuras de André Luiz e Francisco Cândido Xavier. E a defesa dessas figuras se faz justamente pela razão de serem eles os principais expoentes do advento das Colônias Espirituais no seio do ilegítimo ‘movimento espírita brasileiro’. Obviamente, o presente trabalho não se destina aos renhidos adeptos desta agremiação, para quem lançar dúvidas ou execração a esta hipótese de uma erraticidade materialista, e aos seus autores, é um disparatado exercício de insânia, uma frontal falta de respeito e o sinal claro que denúncia a um ignorante da matéria. Objeto caro de nossos estudos, provaremos ao final desta que, não apenas somos versados na questão, como nossa hipótese para explicá-la é plausível, embora carente de provas empíricas. Neste tocante, aliás, os aderentes das Colônias Espirituais são menos capazes de apresentar suas provas, ou argumentos que as sustentem diante da Doutrina dos Espíritos codificada por Allan Kardec.

Uma questão outra
2. Para onde se vai após o desencarne? Esta é uma questão em aberto para muitas pessoas que, por conforto, não podem viver tendo em vista a iminência do fenômeno da morte que, à princípio, pode-se dar a qualquer instante para qualquer indivíduo. Já para aqueles que se supõem espíritas, o Espírito André Luiz é um luminar tão grande quanto o médium que escolheu para receber suas narrativas, Chico Xavier, e sua resposta para questão está a contento; a união dessas duas criaturas criou o arcabouço de um dogma, que reprova qualquer dúvida, resguardando-os na condição de ídolos religiosos, a quem se deve mais que respeito, adoração incondicional. A razão repudia a atitude e o dogma em si, além da deturpação que ambos empreenderam, um ativamente e o outro passivamente, do princípio doutrinário da erraticidade. Adentrar o mérito de certos argumentos em favor de ambos é exercício inútil; muitos dentre esses apenas se repetem na tentativa de encontrar um consenso que compatibilize o que está nas Obras Básicas e aquilo que saiu das mãos febris de Chico Xavier. Não são compatíveis, bem o sabemos por muitos anos de estudos devotados a cotejá-los, e as ilações surgidas daí serão enfeixadas em uma obra própria e a seu tempo. Outro argumento comum e que se repete exaustivamente professa que a Doutrina Espírita está incompleta, que Allan Kardec faleceu antes de poder concluí-la, que no obscuro século XIX sua mente imatura não poderia abarcar a revelação das Colônias Espirituais. Nosso artigo de 10 de agosto último, postado neste blog, desmente por completo parte dessas acusações – os princípios que sustentam a Doutrina dos Espíritos foram plenamente expostos, desde O Livro dos Espíritos. Todavia, para o suposto espírita que não vai além da leitura de O Evangelho Segundo o Espiritismo, uma das últimas questões de O Livro dos Espíritos pode bem ser desconhecida. Convém sua atenta leitura:

"1017. Alguns Espíritos disseram habitar o quarto, o quinto céu, etc. Que entendiam ele por isso?
Quando lhes perguntais que céu habitam, é porque tendes a ideia de vários céus, dispostos como os andares de uma casa; então, eles vos respondem, conforme a vossa linguagem; mas, para eles, estas palavras: quarto, quinto céu, exprimem diferentes graus de purificação e, por conseguinte, de felicidade. É exatamente como quando se pergunta a um Espírito se ele está no inferno; se for infeliz, dirá que sim, porque, para ele, inferno é sinônimo de sofrimento; mas, sabe muito bem que não é uma fornalha. Um pagão diria estar no Tártaro.
Acontece o mesmo com outras expressões análogas, assim como: cidade das flores, cidade dos eleitos, primeira, segunda ou terceira esfera, etc., que são apenas alegorias utilizadas por alguns Espíritos, quer como figuras, quer, algumas vezes, por ignorância da realidade das coisas e até das mais simples noções científicas. Conforme a ideia restrita que outrora se fazia dos lugares das penas e recompensas e, principalmente, a opinião de que a Terra era o centro do Universo, de que o céu formava uma abóbada e de que havia uma região das estrelas, colocava-se o céu no alto e o inferno embaixo; daí as expressões: subir ao céu, estar no mais alto dos céus, ser precipitado nos infernos. Hoje, tendo a Ciência demonstrado que a Terra é apenas um dos menores mundos, entre tantos milhões de outros, sem importância especial; que traçou a história de sua formação e descreveu sua constituição, provou que o espaço é infinito, que não há alto, nem baixo no Universo, teve-se que renunciar a situar o céu acima das nuvens e o inferno nos lugares inferiores. Quanto ao purgatório, nenhum lugar lhe havia sido indicado. Estava reservado ao Espiritismo dar, sobre todas essas coisas, a explicação mais racional, mais grandiosa e, ao mesmo tempo, mais consoladora para a Humanidade. Pode-se dizer, assim, que trazemos, em nós mesmos, nosso inferno e nosso paraíso; nosso purgatório, nós o encontramos na nossa encarnação, nas nossas vidas corporais ou físicas.

Não são por termos análogos a ‘cidade das flores’ ou ‘cidade dos eleitos’ pelas quais se batizam as Colônias Espirituais presentes em um sem número de livros que sucederam a Nosso Lar, obra seminal do Espírito André Luiz? Muitas delas, senão todas, são devedoras diretas desta e das demais obras atribuídas a esse escrevinhador de além-túmulo. O que prova a questão acima transcrita? Primeiramente que Allan Kardec tinha em sua posse mensagens psicografadas e, por certo, reproduções por escrito de psicofonias que davam conta da existência de tais locais; todavia, infere-se que estas deixaram entrever a ignorância daqueles que as vieram dar, de tal conta que jamais passaram pelo crivo racional do Codificador, menos ainda pelo Controle Universal dos Ensinamentos dos Espíritos; e como prova as conclusões de Allan Kardec presentes acima, não passam de analogias de Espíritos ignorantes. No contexto brasileiro da prática ilegítima do Espiritismo travestido de religião, pode-se somar a essa ignorância a vileza de buscar confundir, deturpar e destruir a Doutrina dos Espíritos, intento de muitos Espíritos pseudo-sábios que assombram médiuns desguarnecidos.

3. Que se prove que André Luiz não passa de um Espírito pseudo-sábio, é esta uma iniciativa desprovida de maiores dificuldades, e que está reservado a artigos futuros. Basta para o estudo presente que isto fique assim posto, e que muito embora se possa discutir o caráter e o papel de Chico Xavier na questão, se foi plágio consciente ou inconsciente de A Vida Além do Véu1 a concepção e composição de Nosso Lar, é esta, outrossim, questão acessória, mas candente, para futuros escritos deste blog. A título de responder à questão de para onde se vai após o decesso, alguns trechos das Obras Básicas são inteiramente necessários – sendo o Espiritismo uma doutrina cujo objeto de estudo é o Espírito, seria ilógico que, de pronto, não desse uma resposta clara a isto. Em O Livro dos Espíritos, item VI da Introdução tem-se:

Os Espíritos não-encarnados ou errantes não ocupam uma região determinada e circunscrita: eles estão por toda a parte, no Espaço e ao nosso lado, vendo-nos e esbarrando em nós incessantemente; é toda uma população invisível que se agita em torno de nós.

Ou, que tal, a questão de nº 87 da mesma obra?

87. Os Espíritos ocupam uma região determinada e circunscrita no espaço?
Os Espíritos estão por toda a parte; povoam os espaços sem fim, até o infinito. Estão, constantemente, ao vosso lado, vos observam e atuam sobre vós, sem que o percebais, pois os Espíritos são uma das potências da Natureza e os instrumentos de que Deus se serve para o cumprimento de seus desígnios providenciais. Porém, nem todos vão a toda parte, porquanto há regiões interditadas aos menos adiantados.

Obviamente que, para os aderentes, a questão da circunscrição precisa ser dissimulada, pouco clara, razão e motivo de interpretações sem termo. E a um bom termo não se chega, ou seja, a um consenso, senão porque não se pode recusar que os reveladores das Colônias Espirituais sejam Espíritos pseudo-sábios. Mas o são! Outro termo posto a este patamar, sempre e sempre trazido a discussão para nada se concluir, é espaço – Allan Kardec o utiliza em sua definição mais ampla, para não dizer completa, ou seja, não se refere unicamente ao vácuo que circunda os planetas e do qual parece ser composto todo o Cosmo, mas também daquele que envolve o ser, e que na Terra é delimitado por um oceano de gases denominado atmosfera. Não é exclusivamente aquele que se inicia desde a alguns centímetros a partir das cabeças da coletividade humana, mas aquele desde o rés do solo. Ou seja, os Espíritos ocupam toda a extensão dos espaços onde lhes convenha ficar, estando em direta relação com os encarnados; o termo errante não existe ao acaso – ele foi dado a Allan Kardec porque assim define a situação dos Espíritos, ou seja, sem local de pouso, deambulando constantemente, errando. E não há nada de equivocado nisto. Mas, claro, diante da inexistência de um simulacro de céu e inferno, o neófito vê-se exasperado e desfalecendo em sua fé; para tanto, recomendamos mui objetivamente o estudo atento e cuidadoso no número de abril de 1859 da Revista Espírita, em específico do artigo intitulado Quadro da Vida Espírita. Lá, o afoito que precisa de uma resposta rápida há de encontrá-la segundo os postulados autênticos do Espiritismo, e não das mentiras espargidas em romances mediúnicos. Embora, para se ter o pleno conhecimento da matéria, é necessário o estudo de O Céu e o Inferno.

4. Todavia, provar ou não a existência de Colônias Espirituais, ou ainda dar subsídios para levar o interessado a empreender um sério estudo acerca da erraticidade não é, no presente, a sua razão de ser. A questão é outra, e diz respeito a justaposição, ou ao uso da figura de uma cidade flutuante como morada dos mortos, e por que ela está diretamente relacionada ao Espiritismo. A utilização do recurso imaginativo de moradias aéreas é, por si, um aspecto universalmente presente na cultura humana. A terceira parte da obra Viagens de Gulliver, de Johathan Swift, em seu capítulo I revela ao leitor a existência de Laputa. A imagem é poderosa – uma massa rochosa flutuante percorre o espaço, e sobre seu solo toda uma civilização floresce; ou trata-se, tão somente, do refúgio de uma casta de escolhidos e sábios, ou o posto avançado de uma colônia de mineradores espaciais, ou não mais que parte da paisagem de um planeta alienígena. A silhueta desta massa contra o sol, que flaina como que por magia, alimenta a fantasia da humanidade desde sempre.


Acaso Swift soube captar pela sátira o encastelamento dos alienados homens da Ciência do seu tempo, ilustrando-a com Laputa, o advento de um escritor mais antigo, e até certo ponto, supostamente senil, imprimiu com força semelhante imagens mais espantosas. O Livro do Apocalipse, a obra que finda o Novo Testamento da Bíblia Sagrada, atribuído a João Evangelista, traz, graças ao seu estilo profético, símbolos e figuras impressionantes, dentre as quais a da Nova Jerusalém, ou Jerusalém Celeste. Esta é descrita como uma cidade murada, contendo aí portões correspondentes a cada uma das tribos de Israel, tendo sido erigida por Deus nos céus para dar abrigo aos fiéis, e sua luz a manterá num eterno dia ensolarado. Os saxões da Idade Média tinham sua própria cidade nas nuvens, bem menos metafísica segundo criam – Magônia era o lar de uma raça de piratas que navegavam em barcos voadores e, durante as tempestades desciam à terra para roubar as colheitas do povo da superfície. Para os gregos antigos, a morada dos deuses ficava no topo do Monte Olimpo, uma das maiores elevações topográficas da Grécia, e suas representações retratam templos gregos suntuosos e bem iluminados, comumente ornado com colunas colossais e pórticos detalhados. Essas e outras imagens são o alimento da moderna ficção-científica. Hugo Gernsback, criador da Amazing Stories, a primeira revista exclusivamente dedicada a ficção-científica, previu a criação de cidades flutuantes no futuro da humanidade. No planeta Mongo, onde habitava o ditador Ming, antagonista do herói Flash Gordon, havia Sky City, a cidade flutuante governada por Vultan. No segundo exemplar da saga cinematográfica Star Wars, cognominada O Império Contra-Ataca, o expectador é apresentado a Cloud City, que flutua na atmosfera do planeta Bespin. No filme Avatar há a formação geológica denominada Montanhas Aleluia, uma cadeia de ilhas rochosas flutuantes, onde se dá parte do clímax da história. Enfim, há uma inumerável quantidade de obras, romances, filmes e jogos de toda sorte onde as antigas referências da humanidade são amplamente utilizadas, reinventadas, adaptadas as necessidades do enredo, apresentando moradias flutuantes as mais inventivas e interessantes. Mas, afinal, por que a morada dos bons acima e o inferno abaixo? Guardamos uma hipótese, e é a esta que se destina este ensaio.

Uma forte impressão
5. Allan Kardec fundou sua Revista Espírita em 1858, e já em março o leitor fora apresentado a um artigo intitulado Júpiter e alguns outros Mundos. Nele, o Codificador tece um breve opúsculo acerca da condição manifesta da vida nos mundos componentes do sistema solar a que pertence a Terra, antes de adentrar propriamente ao cerne da questão, qual seja as revelações que recebera quanto a Júpiter. O professor assim se expressa:

De todos os planetas, o mais adiantado sob todos os aspectos é Júpiter. É o reino exclusivo do bem e da justiça, porquanto só tem Espíritos bons.

No número seguinte, de abril, o tema retorna em Conversas Familiares de Além-Túmulo, onde o Espírito de Bernard Palissy, célebre oleiro francês do século XVI, encarnado então em Júpiter, vem trazer notícias daquele mundo aos interessados da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, por meio de diálogo com Allan Kardec. Dentre tudo o que narrou, interessa por olhos no seguinte:

9. O quadro que os Antigos nos deram dos Campos Elísios resultaria do conhecimento intuitivo que possuíam de um mundo superior, tal como Júpiter, por exemplo?
R.: Do conhecimento positivo; a evocação permanecia nas mãos dos sacerdotes.

Os Campos Elísios e o Valhala, para os gregos e os nórdicos respectivamente, eram o lar dos escolhidos, dos privilegiados, dos que foram bons e valorosos em vida – como se vê, pelo que se infere da questão, não era simplesmente uma invenção, ou intuição, mas a descrição o mais precisa possível das narrações de Espíritos que, estando em Júpiter, ou algum mundo de mesmo nível de progresso, vieram manifestar-se aos antigos sacerdotes que praticavam a evocação espiritual. Aqui é preciso fazer um pequeno alerta – como não há qualquer espécie de narrativa outra acerca de mundos semelhantes a Júpiter, estando disponível para o espírita senão unicamente essas notícias recebidas pelo Codificador, e pelo fato deste mundo pertencer ao mesmo sistema solar que a Terra, por convenção consideraremos sua forte influência sobre alguns aspectos da cultura humana. E nisto se resume a hipótese para explicar a localização do lar dos mortos, e de sua relação com a equivocada doutrina das Colônias Espirituais. Allan Kardec aponta para a ideia da influência na pergunta feita a Palissy, acima transcrita; mas, que aspectos de Júpiter são importantes observar afinal? Para o espírita, seria não menos que necessário ler tudo quanto foi recebido acerca da questão, ofertando de boa fé a contrapartida de se instruir, cumprindo ao intento primeiro dos Espíritos que de lá vieram comunicar-se buscando inspirar o desejo humano pela própria melhoria.

Na edição de julho de 1860, recebendo espontaneamente uma série de longas comunicações de um Espírito que se identificou com o nome Charlet, a quem Allan Kardec considerou suficientemente probas e concordes com a Doutrina dos Espíritos para as publicar, ele dirige as seguintes questões:

3. Lembrais o desenho que foi feito dos animais de Júpiter. Nota-se uma analogia surpreendente com os sátiros da fábula. Essa ideia dos sátiros seria uma intuição da existência desses seres em outros mundos e, nesse caso, não seria uma explicação meramente fantástica?
R.: Quanto mais novo o mundo, mais ele se lembrava. O homem tinha a intuição de uma ordem de seres intermediários, quer mais atrasados que ele, quer mais adiantados. É o que ele chamava de deuses.

4. Então admitis que as divindades mitológicas não era senão o que chamamos Espíritos?
R.: Sim.

Bernard Palissy não apenas trouxe suas narrativas, como por meio do médium, criou desenhos representando aspectos da vida em Júpiter, e é a estes que Allan Kardec se refere na questão inserida mais acima. Para os antigos sacerdotes, em suas cerimonias evocando a presença dos deuses, não lhes teria sido revelado estes tais mesmos aspectos jupterianos, considerados como caracteres comuns à morada de suas divindades? Voltemos a Palissy que acerca dos animais encarnados neste mundo troca a seguinte série de perguntas e respostas com Allan Kardec:

48. O corpo dos animais é mais material que o dos homens?
R.: Sim; o homem é o rei, o Deus terrestre.

49. Entre os animais há os que são carnívoros?
R.: Os animais não se estraçalham entre si; vivem todos submetidos ao homem, amando-se mutuamente.

50. Mas não haverá animais que escapem à ação do homem, como os insetos, os peixes, os pássaros?
R.: Não; todos lhe são úteis.

51. Disseram-nos que os animais são os servidores e os operários que executam os trabalhos materiais, constroem as habitações, etc; isso é verdade?
R.: Sim; o homem não se rebaixa mais para servir ao seu semelhante.

52. Os animais servidores estão ligados a uma pessoa ou a uma família, ou são tomados e trocados à vontade, como aqui?
R.: Todos se ligam a uma família particular; mudais mais, para achar um melhor.

53. Vivem os animais servidores em estado de escravidão ou liberdade? São uma propriedade ou podem mudar de dono à vontade?
R.: Eles lá se encontram em estado de submissão.

54. Os animais trabalhadores recebem uma remuneração qualquer por seus esforços?
R.: Não.

55. As faculdades dos animais desenvolvem-se por uma espécie de educação?
R.: Eles o fazem por si mesmos.

56. Os animais têm uma linguagem mais precisa e mais caracterizada que a dos animais terrestres?
R.: Certamente.

Allan Kardec já tratara destes em 1858 da seguinte maneira:

Os animais não estão excluídos desse estado progressivo, sem se aproximarem, contudo, daquele do homem; seu corpo, mais material, prende-se à terra, como os nossos. Sua inteligência é mais desenvolvida que a dos nossos animais; a estrutura de seus membros presta-se a todas as exigências do trabalho; são encarregados da execução de obras manuais; são os serviçais e os operários; as ocupações dos homens são puramente intelectuais. Para os animais o homem é uma divindade tutelar que jamais abusa do poder para os oprimir.

Porque, afinal os animais de Júpiter são importantes para o entendimento da questão? Uma olhada atenta ao restante do artigo, nos parágrafos seguintes, a luz necessária se fará:

Se designarmos pelo nome de animais os seres bizarros que ocupam a base da escala, é porque os próprios Espíritos o utilizaram e também em razão de nossa língua não dispor de melhor termo para nos oferecer. Essa designação os avilta bastante; chama-los, porém, de homens seria conceder-lhes muita honra; de fato, são Espíritos votados à animalidade (...)

Eu não os poderia melhor comparação senão aos faunos e aos sátiros da Fábula; o corpo, levemente peludo é, entretanto, aprumado como o nosso; entre alguns as patas desapareceram, dando lugar a certas pernas que ainda lembram a forma primitiva, os dois braços robustos, singularmente implantados e terminados por verdadeiras mãos, se levarmos em conta a oposição dos polegares. Coisa bizarra: a cabeça não é tão aperfeiçoada quanto o resto! Dessa forma, a fisionomia reflete bem alguma coisa de humano, mas o crânio, o maxilar e, sobretudo, a orelha não representam diferenças sensíveis em relação aos animais terrestres. É, pois, fácil distingui-los entre si: este é um cão, aquele é um leão.

Antes de ir para lá, esses Espíritos emigraram sucessivamente em nossos mundos inferiores, do corpo de um ao de outro animal, através de uma escala de aperfeiçoamento perfeitamente graduada. O estudo atento de nossos animais terrestres, seus costumes, suas características individuais, sua ferocidade longe do homem e sua domesticação lenta, mas sempre possível, tudo indica suficientemente a realidade dessa ascensão animal.

Eles (os animais que povoam Júpiter) se aperfeiçoaram ao mesmo tempo que nós, conosco e com o nosso auxílio. A lei é mais admirável ainda: faz tão bem de seu devotamento ao homem a primeira condição de sua ascensão planetária, que a vontade de um Espírito de Júpiter pode chamar a si todo animal que, numa de suas vidas anteriores, lhe haja dado provas de afeição. Essas simpatias, que lá no alto formam famílias de Espíritos, também agrupam em torno das famílias todo um cortejo de animais devotados. Em consequência, nosso apego neste mundo por um animal, o cuidado que tomamos de domesticá-lo e de humanizá-lo, tudo isso tem sua razão de ser, tudo será pago: é um bom ajudante que preparamos antecipadamente para um mundo melhor.

6. Deduz-se portanto, que o Espírito que na Terra animou as espécies animais por um período de tempo, ao atingir certo ponto de progresso próprio, é chamado a estagiar numa forma intermediária em Júpiter, forma esta que podemos identificar atualmente a de um humanoide primitivo, semelhante aos faunos, aos cinocéfalos e a outras raças bestiais das lendas, ou mesmo àquelas dos primeiros primatas que resultaram no gênero Homo. Pode-se especular que, a partir de então, expostos a vidas sucessivas no maior planeta do sistema solar, hajam se adiantado a ponto de poderem retornar a um mundo mais primitivo, a Terra, onde se encarnariam na condição dos primeiros ancestrais da humanidade, e a partir de então, se tornarem homens de fato. Encadeando-se na sucessão das vidas, esse Espírito alcançará, a bom termo, retornar a Júpiter, já na condição dos mesmos Espíritos avançados de lá, não mais na animalidade que deixara há muito. A progressão espiritual é uma lei natural, uma ação irrefreável do fenômeno da vida – e a ação desta lei transforma a matéria até o superlativo das formas, para espanto da mente humana. Mas, muito mais espantoso, contudo racional, são os caminhos do Espírito, desde o átomo até o Arcanjo. Esse exercício especulativo, lidando com os dados fornecidos pelas deduções de Allan Kardec podem explicar alguns aspectos da cultura humana cuja origem se desconhece, e parece pertencer ao campo da fantasia, mas também e no pormenor da morada dos escolhidos residir nos céus – e é a este que recai nosso mais imediato interesse.

Reminiscências e atavismos
7. Bernard Palissy deixou claro que aspectos culturais dos povos da Antiguidade resultaram da intervenção direta de Espíritos que, como ele, vieram de Júpiter relatar sua existência num mundo mais adiantado – antes e ao tempo de Allan Kardec com um só objetivo, inspirar a melhoria da humanidade, pela antevisão da felicidade e do enorme estado de progresso que aguarda a todos. Esses Espíritos foram considerados deuses, e suas vidas em um mundo melhor, a felicidade destinada ao homem virtuoso no seio da divindade. Mas, porque no céu? Em agosto de 1858, a pretexto de um novo artigo acerca de Júpiter e seus relatos, Allan Kardec começa assim:

Se há um fato que gera perplexidade entre certas pessoas convencidas da existência dos Espíritos – não nos ocuparemos aqui das outras – é seguramente a existência de habitações em suas cidades, tal como ocorre entre nós. Não me pouparam de críticas: ‘Casas de Espíritos em Júpiter!... Que gozação!...” – Que seja, nada tenho a ver com isso. (...)

E prossegue explicando:

Desde que o Espírito se encarna num mundo submetido, como o nosso, a uma dupla revolução, isto é, à alternativa de dias e noites e ao retorno periódico das estações; desde que tenha um corpo, por mais frágil seja esse envoltório material, não reclama apenas alimentação e vestuário, mas, também, um abrigo ou, pelo menos, um local de repouso, consequentemente uma casa. Com efeito, foi exatamente isso que nos disseram. Como nós, e melhor que nós, os habitantes de Júpiter têm seus lares comuns e suas famílias, grupos harmoniosos de Espíritos simpáticos, unidos no triunfo depois de o haverem sido na luta. Daí as moradias tão espaçosas, que podemos chamar, merecidamente, de palácios. Como nós, ainda, esses Espíritos têm suas festas, suas cerimônias, suas reuniões públicas, o que explica a existência de edifícios especialmente destinados a essas finalidades. Finalmente, devemos encontrar nessas regiões superiores toda uma Humanidade, ativa e laboriosa como a nossa, como nós submetida a leis, necessidades e deveres, com a só diferença de que o progresso, rebelde aos nossos esforços, torna-se conquista fácil para os Espíritos que já se despojaram de nossos vícios terrestres.

Não poucos desavisados levaram essas e as demais descrições de Júpiter, tomadas à priori, como a confirmação da existência de Colônias Espirituais, em particular neste mundo – mas o Codificador utiliza aqui o termo Espírito, assim como nós mesmos o utilizamos na condicional de referir-se ao ser principal, já que os habitantes de Júpiter não poderiam ser considerados homens como os da Terra; sua humanidade é outra, suas características físicas e espirituais, principalmente, os difere por completo da humanidade terrestre. Allan Kardec os descreve pelos seguintes termos:

O corpo desses Espíritos, como aliás o de todos os que habitam Júpiter, é de uma densidade tão leve que só encontra termo de comparação nos fluidos imponderáveis: um pouco maior do que o nosso, do qual reproduz exatamente a forma, embora mais pura e mais bela, ele se nos apresentaria sob a aparência de um vapor, termo que emprego a contragosto, por designar uma substância ainda muito grosseira; de um vapor, dizia eu, impalpável e luminoso... luminoso sobretudo nos contornos do rosto e da cabeça, porquanto ali a inteligência e a vida irradiam-se como um foco muito ardente. E é justamente esse brilho magnético, entrevisto pelos visionários cristãos, que nossos pintores traduziram pelo nimbo ou auréola dos santos.

Mas, para os que, por quaisquer razões encontram dificuldade para interpretar o lido, Allan Kardec, na edição de fevereiro de 1861 da Revista Espírita, em questões dirigidas a São Luís, também ele encarnado em Júpiter, tem a resposta:

Então os Espíritos que habitam Júpiter e que se comunicaram conosco encontravam-se mergulhados em sono?
R.: Certamente. Naquele mundo, sendo o Espírito muito mais elevado, melhor compreende Deus e o Universo; mas o seu passado se apaga por enquanto, sem o que se obscureceria a sua inteligência. Ele mesmo não se compreenderia; seria o homem da África, o da Europa ou da América? O da Terra, de Marte ou de Vênus? Não se recordando mais, é ele mesmo, o homem de Júpiter, inteligente, superior, compreendendo a Deus; eis tudo.

Uma vez encarnados e, vindo revelar sua situação de existência em Júpiter durante o sono, os Espíritos de Bernard Palissy e São Luís fizeram mais do que apenas atiçar o desejo humano pela própria melhoria, foram coparticipes dos trabalhos da Codificação espírita; este último, em particular, teve presença ativa nas Obras Básicas, ficando seu nome listado nos Prolegômenos de O Livro dos Espíritos. E o que guarda de mais surpreendente as descrições da vida em Júpiter e que dizem respeito ao presente artigo? Oleiro que na Terra viveu de 1510 a 1589, na região de Saint-Genis-de-Saintonge, comuna francesa na região administrativa da Nova Aquitânia, Bernard Palissy descreve Júpiter pelos seguintes dizeres:

“É a cidade terrestre que descrevo aqui, de certo modo material, a cidade das ocupações planetárias, a que chamamos enfim, de Cidade baixa. Tem suas ruas ou, melhor dizendo, seus caminhos traçados para o serviço interno; tem suas praças públicas, seus pórticos e suas pontos lançadas sobre canais para a passagem dos serviçais. Mas a cidade inteligente, a cidade espiritual, a verdadeira Julnius, finalmente, não se encontra na Terra: é preciso que se a procure no ar.

Nosso dia tem a duração de cinco horas, e nossa noite igualmente dura o mesmo tempo; mas tudo é relativo e, para seres aptos a pensar e a agir como o fazemos, para Espíritos que se compreendem pela linguagem dos olhos e que sabem comunicar-se magneticamente a distância, nosso dia de cinco horas já igualaria uma de vossas semanas. Em nossa opinião era ainda muito pouco; e a imobilidade da morada, o ponto fixo do lar era um entrave para todas as nossas grandes obras. Hoje, pelo deslocamento rápido dessas moradas de pássaros, pela possibilidade de nos transportarmos, bem como os nossos, a tal ou qual endereço do planeta à hora do dia que nos apraza, nossa existência pelo menos dobrou e, com ela, tudo quanto se possa conceber de útil e de grandioso.

Em determinadas épocas do ano – aduz o Espírito – em certas festas; por exemplo, verás aqui o céu obscurecido pela nuvem de habitações que nos vem de todos os pontos do horizonte. É um curioso agregado de moradias esbeltas, graciosas, leves, de todas as formas, de todas as cores, equilibradas em diferentes alturas e continuamente em marcha, da cidade baixa para a cidade celeste: alguns dias depois, faz-se o vácuo pouco a pouco e todos esses pássaros desaparecem.

Concebamos o seguinte cenário com base no apresentado até aqui – o animal alcança meio de progresso próprio que o habilite a estagiar em Júpiter; lá, tem um corpo humanoide, mãos hábeis e uma linguagem articulada. Sua razão de ser é a realização do trabalho braçal, com este adquirindo mais e mais experiências e conhecimentos; seu amo, a figura vaporosa que habita as casas que flutuam nos céus, é a quem dedica afeição e obediência sincera, e por quem realiza de bom grado as tarefas que lhes são dadas. Sucessivas encarnações em tal conjuntura o põe as portas da condição humana, impelindo-o a viver num planeta apto ao seu progresso. De retorno à Terra, por exemplo, encontra-se numa forma limítrofe, ainda não plenamente humana, simiesca, mas, que o permite manifestar-se como até então o fazia. Todavia, seu amo não está mais lá – ou, talvez não – tal qual Palissy e São Luís, estando em repouso, os bons Espíritos de Júpiter vieram acompanhar o progresso daqueles seres por quem desenvolveram afeto e carinho, e para esses apareceram sob a forma espiritual, os inspirando e incentivando, numa interação que pode, muito bem, ter prosseguido ao longo de milênios. Neste ponto, o proto-humano já feito homem, interagia com seu amo por meio da ostensiva mediunidade, e deles recolhia as impressões de uma vida mais feliz num mundo idílico. As casas flutuantes de Júpiter não eram apenas a morada dos ‘deuses’, mas a promessa daqueles que em vida fossem virtuosos e bons, tão bons que para lá seriam levados – e é o que de fato há de ocorrer pela progressão do Espírito. Tanto a lembrança atávica de tais estruturas que flutuavam na atmosfera mais acima, quanto o relato dos habitantes destas colhidos por meio da mediunidade ostensiva não poderiam ter-se traduzido, pela fortíssima impressão que deixaram na alma desses animais convertidos em homens, na ideia da morada celeste para os eleitos? Não seria o céu uma reminiscência das casas flutuantes de Júpiter, ou mesmo de mundos semelhantes em progresso? É uma hipótese que positivamente defendemos.

8. A localização, ou circunscrição de um local destinado a conter Espíritos após o fenômeno da morte física é apenas, e tão somente a evolução interpretativa, culturalmente falando, desta lembrança ancestral, bem como das comunicações dos ‘deuses’, os habitantes de Júpiter que vieram acompanhar o desabrochar de seus animais a condição humana – e os ajudar, claro! O que não significa que esteja correto, espiriticamente falando; a Doutrina dos Espíritos veio revelar a condição plena do Espírito em erraticidade, impelido por seu livre-arbítrio, cujos impeditivos estão por conta de sua condição particular de progresso. Não há Colônias Espirituais, ou umbral, sequer abismos ou outras invencionices próprias da imaginação de Espíritos ignorantes, ou mal-intencionados que veem espalhar a confusão e a discórdia.

Esta doutrina conforta o Espírito que não sabe lidar com a liberdade, que não se atém ao próprio livre-arbítrio, para quem uma casinha de tijolos vermelhos com um belo jardim e uma cerquinha branca, como as antigas habitações interioranas, muitas das quais ainda existentes e em pleno uso nos rincões perdidos do país, exortam uma época inocente que apraz, que remonta a uma visão pastoril ideal de existência. O "wanderlust", ou seja, a ideia do prazer em viajar, em deambular, em explorar a existência não alcançou tais Espíritos – o bucolismo de uma vida passada em rotina quase sacerdotal, sem sobressaltos e o inerente receio que estes causam, é lhes mais atrativo e pelo qual lutam e anseiam, e aguardam na vida espiritual. Todavia, a lei do progresso impele a mudança, e quem resiste a ela acaba arrastado.

O Espiritismo revela o progresso, a evolução espiritual, desde o átomo ao Arcanjo - que ideia de pós vida aguarda o sujeito? A erraticidade espírita que exorta a liberdade e respeita o livre-arbítrio do ser, ou as Colônias Espirituais de André Luiz, com sua burocracia, ministérios, sistema monetário e feição feudal?






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1_ A Vida Além do Véu - obra mediúnica do reverendo anglicano inglês George Vale Owen, que a recebeu por inspiração de Espíritos que se identificaram por diversos nomes, e que trata da vida após a morte, guardando intrigante similaridade de conceitos e vocabulário empregado pelo Espírito André Luiz a partir de sua obra Nosso Lar.

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