quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Os cães vão para o 'céu'?

O estudo do percurso humano ao longo das eras dá a chave para o entendimento de uma série de fenômenos erroneamente considerados anômalos, ou inéditos. Civilizações que colapsaram apresentaram sinais de turbulência social nos anos que antecederam a iminência do fim; a história bíblica das cidades de Sodoma e Gomorra é uma parábola de tais acontecimentos, bem como a queda da Atlântida – e um sem número de outros casos presentes nas culturas do mundo registram cidades, reinos, povos e civilizações que deixaram de existir, e o fizeram por degeneração moral e social, por haverem adotado comportamentos que degradaram aos deuses. Em entrevista ao programa Roda Viva da Tv Cultura de São Paulo, a intelectual americana Camille Paglia relata o seguinte, em resposta a uma pregunta que lhe foi dirigida a respeito de como ela vê a questão da transgeneralidade no mundo:

“Descobri, em meu estudo, que a História é cíclica. Em qualquer lugar do mundo você encontra um padrão, em períodos antigos que, quando uma cultura começa seu declínio, você tem o surgimento do fenômeno transgênero. Isso é um sintoma de colapso de uma cultura. (...) Acredito que com a mudança das culturas, sim, existem definições distintas de homens e mulheres. Em culturas mais sofisticadas os sexos se unem, mas então há um grande colapso e recomeçamos a história humana, e existe a separação dos sexos.”

Embora se possa discordar da História humana como um ciclo, as mudanças se darão apenas quando os padrões se tornarem obsoletos. E acaso isto seja real para o Espírito que, após se enfastiar de uma paixão ou hábito, altera seu comportamento, para a coletividade humana o mesmo parece se dar, ainda que estudiosos como Camille Paglia apontem padrões de comportamento que, adotados pela coletividade, pareçam repetir-se ao longo da História. Mas, esta questão acessória, que há de interessar em muitos outros artigos, e pode servir de incentivo ao estudioso que deseja conhecer melhor o comportamento humano ao longo de sua trajetória milenar, há de convir para a questão presente no pormenor do que subsiste no seio do Espírito, de seu pensamento, da sua história pessoal e de sua relação com o mundo; em particular com os animais. Considerando que o comportamento há de repetir-se até a obsolescência e, enfim gerar a mudança, o Espírito traz em si um modo de ser, de portar-se e um arcabouço de crenças e paixões que sobrevive ao fenômeno da morte, e da reencarnação. Mesmo o inerente esquecimento do passado não pode apagar o que na criança se manifesta em comportamentos inatos, em ideias atavicamente presentes e que fascinam familiares, educadores e observadores domésticos.

Hanuman, o deus macaco hindu possui um templo dedicado a si chamado Sankat Mochan, que fica em Varanasi, situado às margens do rio Assi. Esse templo é mundialmente conhecido por abrigar macacos, centenas deles, que recebem afoitos os visitantes em busca de alimento fácil, ao que os devotos ofertam com tal mesma avidez, ficando os turistas perplexos com essa dinâmica. Mas, em termos de causar admiração, o templo de Karni Mata que fica em Dashnoke no Rajastão, é ainda mais espantoso. E espantoso por conta de seus milhares de ratos, que são alimentados pelos devotos com leite. Karni Mata teria sido uma asceta do século XIV que, em vida fora considerada reencarnação da deusa Durga. Conta-se que dentre seus muitos poderes sobrenaturais, fora capaz de ressuscitar seu enteado, sob a forma de um rato, contudo. Antes de morrer, Karni Mata teria decretado que todos os seus descendentes reencarnariam como ratos a partir de então. O templo é consequência desta crença – e nenhum devoto lança dúvidas quanto a esta e outras histórias relacionadas a sua figura de adoração. As manifestações da fé hindu têm diversos exemplos de deuses a avatares que, se não são diretamente relacionados a animais, são eles próprios meio animais, como Ganesha, para citar outro afamado exemplo.

As bases das manifestações religiosas hindus são extremamente antigas; mas em tais termos, a fé que os egípcios antigos professavam era ainda mais primordial, e seu panteão de deuses é a constatação disto – Bastet a deusa gata, Sobek o deus crocodilo, Rá o deus falcão, Anúbis o deus com cabeça de chacal, e os exemplos são incontáveis. Imagina-se quanto transcorreu para que a fé dos Espíritos que se reencarnaram naquele país e período histórico fosse abandonada, ou alterada para a adoração a uma divindade com a figura humana. No tocante a adoração propriamente dita, os que a manifestam com ardor e fervor perene, parece pouco importar a figura, mas a o que ela está ligada ou relacionada. As manifestações marianas são incontáveis no mundo cristão atual, e cada uma delas está diretamente associada a solução de algum problema, ou a adoração a um específico aspecto da fé cristã; e o mesmo se aplica a todos os demais santos desta religião. São Cristóvão, por exemplo, tem sua figura associada a proteção dos viajantes e motoristas, porque se conta que, sujeito forte e muito alto, habitando próximo a um rio caudaloso, fora certa feita admoestado por um garotinho que pretendia atravessar a correnteza para alcançar a outra margem. De bom grado o gigante Cristóvão pôs a criança em seus ombros e partiu com um cajado para dentro das águas – a cada passo o fluxo do rio aumentava em violência, e o garotinho ganhava mais e mais peso. Mas o santo não fraquejou, e ao alcançar a margem oposta, exausto e encharcado, retirou de seus ombros não o menino, mas um homem que se revelou Jesus. A imagem que representa Cristóvão é a de um homem entrando num rio, portando seu cajado numa mão e tendo um menino nos ombros. Todavia, outra história associada ao santo possui uma representação bem mais bestial, mas por uma boa razão. Alto, forte e invulgarmente belo, após a experiência com Jesus em pessoa, Cristóvão converteu-se a vida monástica; porém, constantemente assediado pelas moças em flor, orou fervorosamente a Deus para que o pusesse feio a fim de evitar a tentação sexual. Pediu Cristóvão, recebeu Cristóvão – a partir de então, o santo adquiriu as feições bestiais de um cão, e por conta desta história, para a Igreja Ortodoxa Grega, São Cristóvão é representado como um homem com cabeça de cão.

Numa sociedade que, culturalmente criou outros símbolos e expressões de fé, que a relativizou dentro de um espectro muito estrito da vida em convívio, para certas camadas dos indivíduos que a compõem, como se dá a manifestação do fervor religioso? Do que antes ou até então, em uma ou mais de uma existência passada, era articulada num templo, diante da imagem de um santo, de um deus zooantropomorfizado, como a fé se fará presente na vida intima destes? Assim como a culpa cristã precisou recair sobre a capacidade humana de emporcalhar o meio em que vive, até o ponto de supostamente causar alterações climatológicas significativas, a fé num deus representado por um animal denuncia-se pela adoração a este animal em particular. O afloramento dos atavismos, ou seja, dos caracteres psicológicos do Espírito, que traz de experiências marcantes pretéritas, são a causa de muitos fenômenos estranhos na sociedade atual. Todavia, não apenas por este, mas o espírito próprio do tempo atual, com seus exageros e hipocrisias particulares, é o desencadeador de condicionamentos que arrolam e sufocam indivíduos deste a primeira infância. Indivíduos são condicionados a estudar, trabalhar, relacionar-se, casar-se e ter filhos, ter animais de estimação, professar uma religião, viajar, divertir-se, enfim, toda uma gama de ações comportamentais que são expressos numa espécie de encadeamento, de produção serializada e castradora das potencialidades da manifestação da vida humana em sociedade. Ninguém parece pensar para onde se vai, a que custo, e por que razões – e quando pensa, advém a depressão, a doença mental, o ocaso e a morte em profunda perturbação espiritual.

Acaso a culpa cristã transtornou-se em culpa pela derrocada das condições climáticas favoráveis a vida no planeta, a adoração ancestral tornou-se a cinofilia dos dias correntes, que não apenas contempla aos cães, mas recai sob toda sorte de animais domésticos, os pets. Pela junção de condicionamentos e atavismos, os indivíduos se fecham em verdadeiras correntes de práticas e expressões de uma fé compartilhada, que embora não contemple um sistema doutrinário religioso em particular, de urdidura teórica constituída, não deixam de se assemelhar ao que se pode ver de parte dos cultores de Hanuman e Karni Mata. Clínicas veterinárias e petshops tornaram-se templos de adoração, e os animais verteram em ídolos vivos, representações me miniatura dos atributos mais admiráveis do homem, mas que, em contrate, estes não são portadores – ou, ao menos é o crido pelos devotos dos pets. Tão real é esta seita que se formou nem derredor dos animaizinhos de estimação que todo um complexo credo desenvolveu-se aí - os animais são considerados seres superiores ao homem, capazes de amar sem impor condições e de expressar sentimentos e emoções que denotam alta moralidade e princípios éticos puros, são emissários especiais de poderes de cura sobrenaturais e de identificação do mal; e mais, dotam seus proprietários de um prestígio semelhante àquele outorgado a um sacerdote, emprestando-lhes superioridade moral – claro, todo aquele que comete o pecado de não ser proprietário de um pet, ou sequer lhes ser simpáticos, é necessariamente inferior, ou apenas mau-caráter, semelhante aos torturadores de animais, quando não torturadores em potencial.

Os dados comprobatórios que dão conta desta seita estão espargidos em toda parte, desde conversas informais entre dois proprietários de pets, como também e principalmente, em redes sociais cujo caráter aglutinador fornece o ambiente adequado para a troca de mensagens que apontam para este credo. O ilegítimo conjunto de supostos adeptos do Espiritismo, conhecido por 'movimento espírita', pouco ou nada fornece para apaziguar e racionalizar a questão, fazendo justamente o contrário e se colocando ombro a ombro aos crentes do movimento pet. Obviamente, num exercício contínuo de deturpar o Espiritismo, não poucos vão as letras e aos púlpitos de palestras para alardear inverdades contribuindo ainda mais para a confusão e a descrença na Doutrina. Francisco Cândido Xavier é, pois, um grande exemplo neste sentido – adorador da vida animal, o médium de Pedro Leopoldo tem algumas histórias envolvendo animais em erraticidade. Conta-se que certa noite duas senhoras foram ao encontro de Chico em prantos; choravam a perda de seu cão. Ele as consolou afirmando: “Quando nossos animais domésticos morrem, é comum eles ficarem em nossas casas. Eles são como nós: possuem almas. Os Espíritos que cuidam da natureza costumam deixá-los por algum tempo com o dono até que possam renascer.” Chico não teria como comprovar o que disse, nem se quisesse, pois faltavam-lhe luzes para compreender a questão a contento. Em outra ocasião, quando Chico retornava de seu trabalho como funcionário público, deu com seu cão, de nome Lorde, convulsionando e agonizando na cozinha. Chico narrou mais tarde os últimos momentos deste, quando viu a alma de outro cão surgir e lamber o companheiro, como para apaziguar o sofrimento deste em seu fim. O que tem o Espiritismo a afirmar acerca da questão? Os aderentes da adoração pet não guardam dúvidas quanto ao caráter angelical de seus animais, e que para estes um local idílico no pós vida os aguarda.

A questão de número 600 de O Livro dos Espíritos versa para o seguinte:

A alma do animal, sobrevivendo ao corpo, depois da morte, fica num estado errante, como a do homem?
Fica numa espécie de erraticidade, já que não está unida a um corpo; não é, porém, um Espírito errante. O Espírito errante é um ser que pensa e age por sua livre vontade; o dos animais não dispõe da mesma faculdade; a consciência de si mesmo é o atributo principal do Espírito. O Espírito do animal é classificado, depois da morte, pelos Espíritos incumbidos disso e, quase imediatamente, utilizado; ele não tem tempo de se relacionar com outras criaturas.

O Livro dos Médiuns, a propósito, exibe o seguinte em seu capítulo XXV, Das Evocações, no item Evocações dos Animais:

36. Pode evocar-se o Espírito de um animal?
Depois da morte do animal, o princípio inteligente que nele havia se acha em estado latente e é logo utilizado, por certos Espíritos incumbidos disso, para animar novos seres, em os quais continua ele a obra de sua elaboração. Assim, no mundo dos Espíritos, não há, errantes, Espíritos de animais, porém unicamente Espíritos humanos.

36 a) Como é então que, tendo evocado animais, algumas pessoas hão obtido resposta?
Evoca um rochedo e ele te responderá. Há sempre uma multidão de Espíritos prontos a tomar a palavra, sob qualquer pretexto.

Então o Espírito canino que, desencarnado vai consolar ao cão agonizante de Chico Xavier o que era? Ora, o Espírito humano que tomou a forma do cão, seja porque assim podem agir os Espíritos incumbidos de lidar com a alma dos animais, seja então um Espírito que pelos animais devota adoração e zelo, e sob a forma de seu objeto de devoção, buscou auxiliar ao pobre cão nos estertores finais. Unidas as crenças dos petmaníacos ao dos supostos espíritas tem subsistida outra questão, uma crença infundada, segundo a qual os animais são dotados de mediunidade. Em O Livro dos Médiuns, o capítulo XXII é todo dedicado a tratar da questão, onde pode-se ler o seguinte trecho, transcrito de uma comunicação de Erasto dada a Kardec, onde se manifesta tão acertadamente acerca do assunto que o Codificador deixou para este concluir:

O cão que, pela sua inteligência superior entre os animais, se tornou o amigo e o comensal do homem, será perfectível por si mesmo, por sua iniciativa pessoal? Ninguém ousaria afirmá-lo, porquanto o cão não faz progredir o cão. O que, dentre eles, se mostre mais bem-educado, sempre o foi pelo seu dono. (...) É certo que os Espíritos podem tornar-se visíveis e tangíveis aos animais e, muitas vezes, o terror súbito que eles denotam, sem que lhe percebais a causa, é determinado pela visão de um ou de muitos Espíritos, mal-intencionados com relação aos indivíduos presentes, ou com relação aos donos dos animais. Ainda com mais frequência vedes cavalos que se negam a avançar ou a recuar, ou que empinam diante de um obstáculo imaginário. Pois bem! Tende como certo que o obstáculo imaginário é quase sempre um Espírito ou um grupo de Espíritos que se comprazem em impedi-los de mover-se. (...) É-nos sempre necessário o concurso consciente, ou inconsciente, de um médium humano, porque precisamos da união de fluidos similares, o que não achamos nem nos animais, nem na matéria bruta. (...) Assim, pois, como não há assimilação possível entre o nosso perispírito e o envoltório fluídico dos animais, propriamente ditos, aniquila-los-íamos instantaneamente, se os mediunizássemos. (...) Sabeis que tomamos ao cérebro do médium os elementos necessários a dar ao nosso pensamento uma forma que vos seja sensível e apreensível; é com o auxílio dos materiais que possui, que o médium traduz o nosso pensamento em linguagem vulgar. Ora bem! Que elementos encontraríamos no cérebro de um animal? Tem ele ali palavras, números, letras, sinais quaisquer, semelhantes aos que existem no homem, mesmo o menos inteligente?

Mediunidade é comunicabilidade, e só pode comunicar-se quem o faz inteligivelmente – um cão não faria mais que obrigar o médium a latir, ganir e se coçar, um papel ridículo que o próprio mecanismo fluídico pelo qual se dá o fenômeno não permite, segundo esclarece Erasto no extrato acima transcrito. Como se pode observar, portanto, os cães não vão para o céu, já que se reencarnam quase que de imediato, e no restrito tempo em que permanecem desencarnados numa espécie de erraticidade, nenhuma interação com outras criaturas ocorre. Isto é o que se encontra na Doutrina dos Espíritos – mas a cada um reside a escolha do credo íntimo, desde que não cometa o crime de corromper a terminologia espírita, ou de se enfileirar dentre os adeptos reais do Espiritismo, destes que estudam e que têm em seus cães, gatos, aves e répteis apenas animais domésticos, e não o seu objeto de culto, ou seu atestado de idoneidade moral.

Nenhum comentário: