Essa
lacuna pode levar a crença errônea, e sem fundamento, de que o espiritismo
desde então não sofreu convulsões, permanecendo coerentemente praticado segundo
seus princípios desde aquele fatídico 31 de março de 1869. Allan Kardec negou
que o Espiritismo fosse uma religião em algumas ocasiões – em O Que é o Espiritismo? consta
interessantes passagens1, mas está na Revista Espírita de novembro de 1868 o texto mais polêmico.
Intitulado Sessão Anual Comemorativa do
Dia dos Mortos, transcrição de discurso proferido por ele na Sociedade Parisiense
de Estudos Espíritas, por ocasião deste dia em 1868, afirma o seguinte:
“Se é assim, perguntarão, então o Espiritismo
é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores! No sentido filosófico, o
Espiritismo é uma religião, e nós nos vangloriamos por isto, porque é a
Doutrina que funda os vínculos da fraternidade e da comunhão de pensamentos,
não sobre uma simples convenção, mas sobre bases mais sólidas: as próprias leis
da Natureza.”
Allan Kardec
tratava da comunhão de pensamento, elaborando uma analogia que permitiu essa
estranha afirmação, quase nunca entendida completamente – esta analogia
presumiu que uma religião ideal se fundamenta em laços de moral e identificação
de pensamentos, trazendo em consequência a fraternidade, a solidariedade e a benevolência
mútuas. Tendo em conta os diversos sistemas que a Filosofia pura abarca, não é
difícil compreender que Allan Kardec falava em termos hipotéticos, no sentido
de se lançar teses e antíteses quanto a isto, alcançando-se a síntese que
comprovaria sua primeira e principal afirmação, negando reiteradamente o
Espiritismo como uma religião – mesmo por que, mais adiante nesta sua
explanação, ele questiona: “Por que,
então, temos declarado que o Espiritismo não é uma religião?” – ou seja,
com assiduidade o Codificador negava a aplicação deste conceito ao Espiritismo.
E, ainda mais adiante, sentencia:
“Não tendo o Espiritismo nenhum dos
caracteres de uma religião, na acepção usual da palavra, não podia nem devia
enfeitar-se com um título sobre cujo valor inevitavelmente se teria equivocado.
Eis por que simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral.”
Consideradas as tantas ocasiões em que o Codificador registrou o Espiritismo como uma Ciência, é de surpreender que hoje se pratique uma religião em seu nome. Como se deu, afinal esta metamorfose? Ela legitima ou adultera o sentido original da Doutrina dos Espíritos? A Historiografia é uma ferramenta importante aqui, e embora o espaço impeça, vale revelar aos ignorantes dos fatos que, na virada do século XIX para o XX, as Obras Básicas e os volumes intitulados Os Quatro Evangelhos de Jean Baptiste Roustaing, eram tomados como fruto de um mesmo sistema doutrinário, e sobre este equívoco a FEB foi fundada. Como constatou já alguns tantos autores, a figura do advogado Roustaing, conterrâneo e coetâneo de Allan Kardec é praticamente desconhecida do ‘sujeito espírita brasileiro’, e sua obra idem. Contudo, para as primeiras gerações dentre estes, ambos eram uma e a mesma cousa, ou melhor, a obra do bordelês era tratada como a ‘revelação da revelação’, e os aderentes da FEB eram exortados a crer que este era superior as Obras Básicas do Espiritismo. Mas, do que se trata Os Quatro Evangelhos?
Jean Baptiste
Roustaing foi um advogado de Bordéus que, empolgado com a nascente Doutrina dos
Espíritos codificada por Allan Kardec, filosofia que tomou contato durante o
período de convalescença de uma moléstia, coordenou uma série de sessões
psicográficas com a médium Émille Collingnon, que deram origem a Os Quatro Evangelhos. Esta obra,
dividida em três grossos volumes, são o conjunto de mensagens ditadas,
supostamente, pelos Espíritos dos quatro evangelistas – Mateus, Marcos, Lucas e
João – assessorados e sob a supervisão dos Espíritos dos demais apóstolos de
Jesus, e também Moisés. Publicada originalmente em 1866, somados os volumes
contam com impressionantes 1851 páginas. Os
Quatro Evangelhos chegou ao Brasil pelas mãos de Luís Olímpio Teles de Menezes, fundador do Grupo
Familiar do Espiritismo, o primeiro centro espírita do Brasil, em 1865. Além
deste, a promoção da obra de Roustaing contou com os nomes de Casimir Lieutaud,
fundador do Colégio Francês, no Rio de Janeiro, Antônio Luís Sayão, fundador do
Grupo dos Humildes (posteriormente Grupo Ismael), e Augusto Elias da Silva,
fundador do periódico O Reformador,
em 1883. No ano seguinte funda-se a FEB, onde desde sempre se estudou e
divulgou a esta obra. Todavia, do que trata este conjunto superlativamente
volumoso de textos? Há uma gama variada de questões abordadas, mas seu conjunto
principal trata de supostamente corrigir as distorções que os textos dos
Evangelhos sofreram ao longo do tempo, por infindável número de copistas;
explica os Dez Mandamentos mosaicos, as parábolas de Jesus, além de tratar da
natureza deste, e pelo qual a obra é mais conhecida, e cujo misticismo a faz
reconhecível.
O conjunto dos textos, tidos por seus adeptos como revelação, está eivado de contradições, além de vir apropriar-se de conceitos espíritas encontrados em O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns, não fazendo mais que os repetir quase textualmente, com erros pontuais aqui e ali quanto as matérias abordadas, e ao seu entendimento. Mas, se há um ponto que fundamenta a obra de Roustaing como uma farsa, é esta retomada do Docetismo, heresia do século II espargida em diversos extratos da Igreja de Roma que versava que Jesus não possuiu um corpo de carne, mas um corpo aparente, uma ilusão – esta doutrina foi duramente refutada por Inácio de Antioquia e Irineu de Lião, sendo condenada como heresia pelo Concílio Ecumênico da Calcedônia, em 451. Há outros pontos contrários ao Espiritismo na obra – a altura tanta do Tomo IV, capítulo 14, o texto defende que há Espíritos que não precisam encarnar-se por serem bons desde a origem, perfazendo sua evolução a nível unicamente espiritual. Outros, todavia, se deixam fascinar pela maldade, sendo obrigados a encarnar-se; em O Livro dos Espíritos, Allan Kardec tece comentários na questão de número 127 que dão a visão correta deste ponto – “Os Espíritos que desde o princípio seguem o caminho do bem nem por isso são Espíritos perfeitos. Não têm, é certo, maus pendores, mas precisam adquirir a experiência e os conhecimentos indispensáveis para alcançar a perfeição.”
Porém, o texto organizado por Roustaing traz mais surpreendente ideia – os Espíritos bons, estes mesmos que se afirma não precisarem de encarnação alguma, podem falir eventualmente e, ao fazê-lo, são obrigados a se reencarnar em mundos primitivos, como uma espécie de lesma ou larva chamado criptógamo carnudo. Como será possível fazer retroagir Espíritos que, até a pouco, fora ‘revelado’ serem suficientemente bons para não precisarem reencarnar-se? Ao ir contra uma das leis naturais reveladas pelo Espiritismo, faz questionar como puderam crer ser necessária uma ‘revelação da revelação’ que desdiz o que fora exposta na primeira? Espanta sobremaneira que os primeiros espíritas da nação não hajam se apercebido disto, não tenham atentado para tais flagrantes anomalias. Isto, talvez, deva-se a maneira que o texto fora composto, com reescritas e retornos, um verdadeiro leitmotiv hipnótico, a dobrar a consciência, apanhando os incautos numa rede de sofismas sobre sofismas. Quando lançado, em 1866, o advogado Roustaing enviou os tomos para a apreciação de um Allan Kardec em pleno labor da composição das Obras Básicas; polidamente, o Codificador se absteve de aprofundado exame da obra, não se furtando, todavia, a lavrar a sentença, em artigo publicado na edição de junho da Revista Espírita daquele ano:
“Convém, pois, considerar essas explicações como opiniões pessoais dos Espíritos que as formularam, opiniões que podem ser justas ou falsas, e que, em todo o caso, necessitam da sanção do controle universal, e, até mais ampla confirmação, não poderiam ser consideradas como partes integrantes da Doutrina Espírita.”
Jean Baptiste
Roustaing não gostou nada dos termos pelos quais Kardec tratou sua obra.
Desprovido de maiores luzes quanto ao conhecimento da Doutrina dos Espíritos,
este, antes que revisar os textos, buscando sancioná-los por meio do Controle Universal dos Ensinamentos dos
Espíritos, tratou de cooptar aderentes que tomassem a obra como revelação
maior, aderentes estes que floresceram no Brasil de antão, dando sobrevida a
obra por meio da fundação da FEB. Claro, Roustaing aí já houvera sido tragado
pelo tempo e nenhuma participação direta teve nos eventos que resultaram na
transformação do Espiritismo em religião. Para se compreender como isto se deu
é necessária uma reflexão que leve a revelar que espécie de Espíritos
participaram da composição da obra do advogado bordelês – para tanto, basta
pensar a questão do Docetismo. Que interesse há em sustentar que Jesus teve um
corpo aparente? Essa ideia fala particularmente a questão da virgindade de
Maria, sua mãe – se ela não foi penetrada, mantendo intacto seu sagrado hímen,
não seria Jesus a rompê-lo quando de seu nascimento. Assim sendo, não apenas a
concepção deste foi miraculosa, como também sua gestação e nascimento,
permitindo manter imaculada sua mãe. A questão da pureza mariana é e sempre foi
tema candente aos pensadores do catolicismo, e são estes que se podem divisar
nas entrelinhas da obra de Roustaing. Qualquer estudioso do Jesus histórico
sabe, desde há muito, que a virgindade de Maria e sua concepção miraculosa é um
empréstimo, uma interpolação trazida de outros luminares e avatares do período,
tais como Krishna, Herácles, Hórus, Dionísio, Mitra, entre outros.
E que interesse
haveria por parte dos Espíritos comprometidos ao catolicismo ir ditar esta obra
em particular? O obtuso advogado francês foi apenas o conveniente instrumento
para se atacar o Espiritismo a partir de um ponto muito próximo do alvo
principal – Allan Kardec. Racional e focado em seu trabalho, o professor lionês
manteve-se alheio ao assédio espiritual de tal ordem, contando com a ajuda dos
bons Espíritos que firmaram acordo de o auxiliar em sua missão (Obras Póstumas). Sem o mesmo pendor,
Roustaing e outros tais que, como ele, não se aprofundaram em seus estudos,
deixaram-se abater e fascinar por ideias cativantes e sedutoras doutrinas de
vanguarda, lançadas por obsessores oportunistas que buscaram e buscam adulterar
o Espiritismo, causando sua corrupção terminológica, criando um simulacro de
seus princípios que pouco ou nada tem que ver com o que se encontra nas Obras
Básicas escritas por Allan Kardec. Vicejando pujantemente em território
nacional, Os Quatro Evangelhos de
Roustaing estiveram no cerne da fundação da FEB, e na disputa acirrada entre
duas vertentes de ‘espíritas’ que naqueles tempos buscavam a hegemonia da
prática da Doutrina – os ‘místicos’ e os ‘científicos’.
O embate daria um
bom filme – de um lado o hoje desconhecido Afonso Angeli Torteroli, fundador do
Centro da União Espirita do Brasil, entidade nascida para organizar a prática
espírita nacional, e líder dos ‘científicos’, espíritas que compreendiam o
caráter da Doutrina, recusando para esta o conceito de religião. Do outro lado,
Adolpho Bezerra de Menezes Cavalcanti, presidente da FEB, e político de certa
visibilidade, então apontado por seus sequazes como único capaz de unir sob um
mesmo aguião os espíritas e suas práticas, líder informal da corrente dos
‘místicos’, para quem o Espiritismo era uma religião, e este o seu aspecto de
maior importância. Triunfou o tirocínio do médico nos meandros da política,
arrastando o migrante italiano Torteroli para um ostracismo inferior às notas
de rodapé da História. Venceu a religião e, neste dia, morreu o Espiritismo
como codificado por Allan Kardec. Claro, os detalhes e acontecimentos desta
história, acima resumidos, não permitem uma leitura fílmica, que se queira
maniqueísta dos fatos e seus personagens. No entanto, aos vencedores cabe a
primazia da versão, e está nas vistas da generalidade do ‘sujeito espírita brasileiro’ a ação
mercadológica da FEB, e de outras instituições a ela ligada, no sentido de
tornar Adolpho Bezerra de Menezes Cavalcanti, uma figura insigne nos anais da
política nacional, em um ser iluminado, santificado, um verdadeiro ídolo
religioso. Não poucos aderem a esta campanha de bom grado e coração aberto,
ignorando os fatos e os preceitos espíritas mais básicos quanto a prática da fé
raciocinada.
A quem Allan
Kardec ombrearia hoje? Aos que corromperam seu trabalho e adulteraram o sentido
do Espiritismo? Muitos, crendo o Espiritismo como uma religião, aplicam-lhe por
similitude os mesmos paradigmas que observam nestas – para este não é estranho
que haja ‘alto Espiritismo’ e ‘baixo Espiritismo’, ou ‘Espiritismo de mesa branca’, ou ‘Espiritismo kardecista’ em oposição a um
apenas ‘Espiritismo’. Assim como o
cristianismo dividiu-se ao longo dos séculos, a crença generalizada prescreve
como fenômeno normalíssimo que o mesmo haja ocorrido e ainda ocorra ao
Espiritismo, não enxergando razões que justifiquem o atrito, endossando até
mesmo o sincretismo, ou seja, a mescla de princípios da Doutrina a outras
práticas, religiosas ou não. Assim como uma sopa que necessita de um longo
tempo de preparo, ao qual se vai acrescentando aos poucos mais e mais
ingredientes, o caldo da cultura nacional tornou-se este pot-pourri indigesto
que, para antropólogos, sociólogos, etnólogos e outros tantos homens de
Ciência, tem seu valor e imperiosa necessidade de respeito. Mas e o respeito ao
Espiritismo? A fidelidade a Allan Kardec e ao seu trabalho são de menor valor?
A Historiografia dá a chave do conhecimento e dos tortuosos caminhos da
corrupção a que foi submetido o Espiritismo no Brasil e, no entanto, a
ignorância é, para justificar prestígios, influencias e narrativas, uma escolha
confortável, oportunista e vil. Este comportamento abjeto é justificado por um
sem número de escusas de parte de toda sorte de indivíduo, quando diante da
verdade – argumentos que rebaixem o valor histórico dessas informações, que os
relativizem ou neguem simplesmente, são corriqueiros. Pois, por que embora o
‘sujeito espírita brasileiro’ não saiba de tais fatos, resumidamente aqui
apontados, muitos dos que fizeram e fazem do Espiritismo sua profissão, que com
ele amealharam fortuna e fama, conhecem o que se passou, sabem da história do
espiritismo brasileiro, mas se omitem, assim como padres que não revelam a
profundidade dos conhecimentos a que foram expostos no seminário.
É legítima a prática
do Espiritismo no Brasil? A que conclusões se pode chegar frente aos fatos?
Para Allan Kardec o Espiritismo é a mais perfeita ferramenta de auxílio a
religião, emprestando a esta a explicação racional para uma série de fatos
reportados como miraculosos e/ou sobrenaturais, cujo registro histórico não
inclui apenas as ações de Jesus, mas o de uma série de indivíduos ao longo dos milênios. No mais, o Codificador deixou esclarecidas as razões pelas quais o
Espiritismo não pode ser uma religião quando, em O Evangelho Segundo o Espiritismo estabelece os parâmetros da fé
raciocinada, em contraponto a fé religiosa – Allan Kardec não busca conciliar o
pensamento racional e científico ao pensamento religioso, deixando claro que a
expressão da segunda, que crê sem exigir provas, nada tem que ver com a fé a
ser exortada ao espírita, a fé raciocinada, que exige provas para que subsista.
Sem o esforço para se saber, ao invés de apenas crer, o espírita se resumiria a
uma máquina muito confiante, vítima de doutrinas estranhas ao escopo de
princípios da Doutrina, ou tão somente católicos que acreditam na mediunidade e
na reencarnação – mas, ora, não é o que se observa atualmente neste ‘movimento
espírita brasileiro’? A quem Allan Kardec ombrearia hoje?
___________
1_Extratos de O Que é o Espiritismo?
“O Espiritismo era apenas uma simples
doutrina filosófica; foi a Igreja quem lhe deu maiores proporções,
apresentando-o como inimigo formidável; foi ela, enfim, quem o proclamou nova
religião. Foi um passo errado, mas a paixão não raciocina melhor.”
“Melhor observado
depois que se vulgarizou, o Espiritismo vem derramar luz sobre grande número de
questões, até hoje insolúveis ou mal compreendidas. Seu verdadeiro caráter é,
pois, o de uma ciência, e não de uma religião; (...)”
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