sábado, 3 de agosto de 2019

A quem ombrearia hoje Allan Kardec?

Ninguém de completa e sã consciência há de afirmar de pleno que a Bíblia é um manancial irreprochável de verdades absolutamente coerentes - menos não se esperaria de um espírita, cujo compromisso com a razão deve pairar acima de quaisquer convenções, crendices e tradições. Allan Kardec tinha ciência disto e, de posse da única fonte disponível em seu tempo tratou do que Jesus disse (O Evangelho Segundo o Espiritismo) e do que fez (A Gênese) de modo exemplar. Como um cientista no exercício de sua disciplina, diante das palavras e ações atribuídas a Jesus de Nazaré, tratou-os como fenômenos suficientemente antigos para dar-se crédito total a fonte consultada (O Novo Testamento), lançando hipóteses pelos quais o Espiritismo explica as máximas e os milagres do mestre. Este compromisso com a razão fez que o Codificador lançasse mão de um livro que, apesar de estar no cerne da fé de milhões, não deixa de ser em essência um documento histórico. E a História, ou Historiografia, é uma Ciência humana desprezada com frequência. O 'sujeito espírita brasileiro' não sabe o que se passou entre o desencarne de Allan Kardec em 1869, decorrente de um aneurisma, e o ponto onde ele próprio se encontra, seja sentado numa cadeira de um centro espírita diante de um palestrante, seja no conforto de seu lar manuseando um romance mediúnico ou, mui raramente, uma das Obras Básicas que não O Evangelho Segundo o Espiritismo.

Essa lacuna pode levar a crença errônea, e sem fundamento, de que o espiritismo desde então não sofreu convulsões, permanecendo coerentemente praticado segundo seus princípios desde aquele fatídico 31 de março de 1869. Allan Kardec negou que o Espiritismo fosse uma religião em algumas ocasiões – em O Que é o Espiritismo? consta interessantes passagens1, mas está na Revista Espírita de novembro de 1868 o texto mais polêmico. Intitulado Sessão Anual Comemorativa do Dia dos Mortos, transcrição de discurso proferido por ele na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, por ocasião deste dia em 1868, afirma o seguinte:

Se é assim, perguntarão, então o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores! No sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos vangloriamos por isto, porque é a Doutrina que funda os vínculos da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre bases mais sólidas: as próprias leis da Natureza.

Allan Kardec tratava da comunhão de pensamento, elaborando uma analogia que permitiu essa estranha afirmação, quase nunca entendida completamente – esta analogia presumiu que uma religião ideal se fundamenta em laços de moral e identificação de pensamentos, trazendo em consequência a fraternidade, a solidariedade e a benevolência mútuas. Tendo em conta os diversos sistemas que a Filosofia pura abarca, não é difícil compreender que Allan Kardec falava em termos hipotéticos, no sentido de se lançar teses e antíteses quanto a isto, alcançando-se a síntese que comprovaria sua primeira e principal afirmação, negando reiteradamente o Espiritismo como uma religião – mesmo por que, mais adiante nesta sua explanação, ele questiona: “Por que, então, temos declarado que o Espiritismo não é uma religião?” – ou seja, com assiduidade o Codificador negava a aplicação deste conceito ao Espiritismo. E, ainda mais adiante, sentencia:

Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual da palavra, não podia nem devia enfeitar-se com um título sobre cujo valor inevitavelmente se teria equivocado. Eis por que simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral.

Consideradas as tantas ocasiões em que o Codificador registrou o Espiritismo como uma Ciência, é de surpreender que hoje se pratique uma religião em seu nome. Como se deu, afinal esta metamorfose? Ela legitima ou adultera o sentido original da Doutrina dos Espíritos? A Historiografia é uma ferramenta importante aqui, e embora o espaço impeça, vale revelar aos ignorantes dos fatos que, na virada do século XIX para o XX, as Obras Básicas e os volumes intitulados Os Quatro Evangelhos de Jean Baptiste Roustaing, eram tomados como fruto de um mesmo sistema doutrinário, e sobre este equívoco a FEB foi fundada. Como constatou já alguns tantos autores, a figura do advogado Roustaing, conterrâneo e coetâneo de Allan Kardec é praticamente desconhecida do ‘sujeito espírita brasileiro’, e sua obra idem. Contudo, para as primeiras gerações dentre estes, ambos eram uma e a mesma cousa, ou melhor, a obra do bordelês era tratada como a ‘revelação da revelação’, e os aderentes da FEB eram exortados a crer que este era superior as Obras Básicas do Espiritismo. Mas, do que se trata Os Quatro Evangelhos?

Jean Baptiste Roustaing foi um advogado de Bordéus que, empolgado com a nascente Doutrina dos Espíritos codificada por Allan Kardec, filosofia que tomou contato durante o período de convalescença de uma moléstia, coordenou uma série de sessões psicográficas com a médium Émille Collingnon, que deram origem a Os Quatro Evangelhos. Esta obra, dividida em três grossos volumes, são o conjunto de mensagens ditadas, supostamente, pelos Espíritos dos quatro evangelistas – Mateus, Marcos, Lucas e João – assessorados e sob a supervisão dos Espíritos dos demais apóstolos de Jesus, e também Moisés. Publicada originalmente em 1866, somados os volumes contam com impressionantes 1851 páginas. Os Quatro Evangelhos chegou ao Brasil pelas mãos de Luís Olímpio Teles de Menezes, fundador do Grupo Familiar do Espiritismo, o primeiro centro espírita do Brasil, em 1865. Além deste, a promoção da obra de Roustaing contou com os nomes de Casimir Lieutaud, fundador do Colégio Francês, no Rio de Janeiro, Antônio Luís Sayão, fundador do Grupo dos Humildes (posteriormente Grupo Ismael), e Augusto Elias da Silva, fundador do periódico O Reformador, em 1883. No ano seguinte funda-se a FEB, onde desde sempre se estudou e divulgou a esta obra. Todavia, do que trata este conjunto superlativamente volumoso de textos? Há uma gama variada de questões abordadas, mas seu conjunto principal trata de supostamente corrigir as distorções que os textos dos Evangelhos sofreram ao longo do tempo, por infindável número de copistas; explica os Dez Mandamentos mosaicos, as parábolas de Jesus, além de tratar da natureza deste, e pelo qual a obra é mais conhecida, e cujo misticismo a faz reconhecível.

O conjunto dos textos, tidos por seus adeptos como revelação, está eivado de contradições, além de vir apropriar-se de conceitos espíritas encontrados em O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns, não fazendo mais que os repetir quase textualmente, com erros pontuais aqui e ali quanto as matérias abordadas, e ao seu entendimento. Mas, se há um ponto que fundamenta a obra de Roustaing como uma farsa, é esta retomada do Docetismo, heresia do século II espargida em diversos extratos da Igreja de Roma que versava que Jesus não possuiu um corpo de carne, mas um corpo aparente, uma ilusão – esta doutrina foi duramente refutada por Inácio de Antioquia e Irineu de Lião, sendo condenada como heresia pelo Concílio Ecumênico da Calcedônia, em 451. Há outros pontos contrários ao Espiritismo na obra – a altura tanta do Tomo IV, capítulo 14, o texto defende que há Espíritos que não precisam encarnar-se por serem bons desde a origem, perfazendo sua evolução a nível unicamente espiritual. Outros, todavia, se deixam fascinar pela maldade, sendo obrigados a encarnar-se; em O Livro dos Espíritos, Allan Kardec tece comentários na questão de número 127 que dão a visão correta deste ponto – “Os Espíritos que desde o princípio seguem o caminho do bem nem por isso são Espíritos perfeitos. Não têm, é certo, maus pendores, mas precisam adquirir a experiência e os conhecimentos indispensáveis para alcançar a perfeição.

Porém, o texto organizado por Roustaing traz mais surpreendente ideia – os Espíritos bons, estes mesmos que se afirma não precisarem de encarnação alguma, podem falir eventualmente e, ao fazê-lo, são obrigados a se reencarnar em mundos primitivos, como uma espécie de lesma ou larva chamado criptógamo carnudo. Como será possível fazer retroagir Espíritos que, até a pouco, fora ‘revelado’ serem suficientemente bons para não precisarem reencarnar-se? Ao ir contra uma das leis naturais reveladas pelo Espiritismo, faz questionar como puderam crer ser necessária uma ‘revelação da revelação’ que desdiz o que fora exposta na primeira? Espanta sobremaneira que os primeiros espíritas da nação não hajam se apercebido disto, não tenham atentado para tais flagrantes anomalias. Isto, talvez, deva-se a maneira que o texto fora composto, com reescritas e retornos, um verdadeiro leitmotiv hipnótico, a dobrar a consciência, apanhando os incautos numa rede de sofismas sobre sofismas. Quando lançado, em 1866, o advogado Roustaing enviou os tomos para a apreciação de um Allan Kardec em pleno labor da composição das Obras Básicas; polidamente, o Codificador se absteve de aprofundado exame da obra, não se furtando, todavia, a lavrar a sentença, em artigo publicado na edição de junho da Revista Espírita daquele ano:

Convém, pois, considerar essas explicações como opiniões pessoais dos Espíritos que as formularam, opiniões que podem ser justas ou falsas, e que, em todo o caso, necessitam da sanção do controle universal, e, até mais ampla confirmação, não poderiam ser consideradas como partes integrantes da Doutrina Espírita.

Jean Baptiste Roustaing não gostou nada dos termos pelos quais Kardec tratou sua obra. Desprovido de maiores luzes quanto ao conhecimento da Doutrina dos Espíritos, este, antes que revisar os textos, buscando sancioná-los por meio do Controle Universal dos Ensinamentos dos Espíritos, tratou de cooptar aderentes que tomassem a obra como revelação maior, aderentes estes que floresceram no Brasil de antão, dando sobrevida a obra por meio da fundação da FEB. Claro, Roustaing aí já houvera sido tragado pelo tempo e nenhuma participação direta teve nos eventos que resultaram na transformação do Espiritismo em religião. Para se compreender como isto se deu é necessária uma reflexão que leve a revelar que espécie de Espíritos participaram da composição da obra do advogado bordelês – para tanto, basta pensar a questão do Docetismo. Que interesse há em sustentar que Jesus teve um corpo aparente? Essa ideia fala particularmente a questão da virgindade de Maria, sua mãe – se ela não foi penetrada, mantendo intacto seu sagrado hímen, não seria Jesus a rompê-lo quando de seu nascimento. Assim sendo, não apenas a concepção deste foi miraculosa, como também sua gestação e nascimento, permitindo manter imaculada sua mãe. A questão da pureza mariana é e sempre foi tema candente aos pensadores do catolicismo, e são estes que se podem divisar nas entrelinhas da obra de Roustaing. Qualquer estudioso do Jesus histórico sabe, desde há muito, que a virgindade de Maria e sua concepção miraculosa é um empréstimo, uma interpolação trazida de outros luminares e avatares do período, tais como Krishna, Herácles, Hórus, Dionísio, Mitra, entre outros.

E que interesse haveria por parte dos Espíritos comprometidos ao catolicismo ir ditar esta obra em particular? O obtuso advogado francês foi apenas o conveniente instrumento para se atacar o Espiritismo a partir de um ponto muito próximo do alvo principal – Allan Kardec. Racional e focado em seu trabalho, o professor lionês manteve-se alheio ao assédio espiritual de tal ordem, contando com a ajuda dos bons Espíritos que firmaram acordo de o auxiliar em sua missão (Obras Póstumas). Sem o mesmo pendor, Roustaing e outros tais que, como ele, não se aprofundaram em seus estudos, deixaram-se abater e fascinar por ideias cativantes e sedutoras doutrinas de vanguarda, lançadas por obsessores oportunistas que buscaram e buscam adulterar o Espiritismo, causando sua corrupção terminológica, criando um simulacro de seus princípios que pouco ou nada tem que ver com o que se encontra nas Obras Básicas escritas por Allan Kardec. Vicejando pujantemente em território nacional, Os Quatro Evangelhos de Roustaing estiveram no cerne da fundação da FEB, e na disputa acirrada entre duas vertentes de ‘espíritas’ que naqueles tempos buscavam a hegemonia da prática da Doutrina – os ‘místicos’ e os ‘científicos’.

O embate daria um bom filme – de um lado o hoje desconhecido Afonso Angeli Torteroli, fundador do Centro da União Espirita do Brasil, entidade nascida para organizar a prática espírita nacional, e líder dos ‘científicos’, espíritas que compreendiam o caráter da Doutrina, recusando para esta o conceito de religião. Do outro lado, Adolpho Bezerra de Menezes Cavalcanti, presidente da FEB, e político de certa visibilidade, então apontado por seus sequazes como único capaz de unir sob um mesmo aguião os espíritas e suas práticas, líder informal da corrente dos ‘místicos’, para quem o Espiritismo era uma religião, e este o seu aspecto de maior importância. Triunfou o tirocínio do médico nos meandros da política, arrastando o migrante italiano Torteroli para um ostracismo inferior às notas de rodapé da História. Venceu a religião e, neste dia, morreu o Espiritismo como codificado por Allan Kardec. Claro, os detalhes e acontecimentos desta história, acima resumidos, não permitem uma leitura fílmica, que se queira maniqueísta dos fatos e seus personagens. No entanto, aos vencedores cabe a primazia da versão, e está nas vistas da generalidade do ‘sujeito espírita brasileiro’ a ação mercadológica da FEB, e de outras instituições a ela ligada, no sentido de tornar Adolpho Bezerra de Menezes Cavalcanti, uma figura insigne nos anais da política nacional, em um ser iluminado, santificado, um verdadeiro ídolo religioso. Não poucos aderem a esta campanha de bom grado e coração aberto, ignorando os fatos e os preceitos espíritas mais básicos quanto a prática da fé raciocinada.

A quem Allan Kardec ombrearia hoje? Aos que corromperam seu trabalho e adulteraram o sentido do Espiritismo? Muitos, crendo o Espiritismo como uma religião, aplicam-lhe por similitude os mesmos paradigmas que observam nestas – para este não é estranho que haja ‘alto Espiritismo’ e ‘baixo Espiritismo’, ou ‘Espiritismo de mesa branca’, ou ‘Espiritismo kardecista’ em oposição a um apenas ‘Espiritismo’. Assim como o cristianismo dividiu-se ao longo dos séculos, a crença generalizada prescreve como fenômeno normalíssimo que o mesmo haja ocorrido e ainda ocorra ao Espiritismo, não enxergando razões que justifiquem o atrito, endossando até mesmo o sincretismo, ou seja, a mescla de princípios da Doutrina a outras práticas, religiosas ou não. Assim como uma sopa que necessita de um longo tempo de preparo, ao qual se vai acrescentando aos poucos mais e mais ingredientes, o caldo da cultura nacional tornou-se este pot-pourri indigesto que, para antropólogos, sociólogos, etnólogos e outros tantos homens de Ciência, tem seu valor e imperiosa necessidade de respeito. Mas e o respeito ao Espiritismo? A fidelidade a Allan Kardec e ao seu trabalho são de menor valor? A Historiografia dá a chave do conhecimento e dos tortuosos caminhos da corrupção a que foi submetido o Espiritismo no Brasil e, no entanto, a ignorância é, para justificar prestígios, influencias e narrativas, uma escolha confortável, oportunista e vil. Este comportamento abjeto é justificado por um sem número de escusas de parte de toda sorte de indivíduo, quando diante da verdade – argumentos que rebaixem o valor histórico dessas informações, que os relativizem ou neguem simplesmente, são corriqueiros. Pois, por que embora o ‘sujeito espírita brasileiro’ não saiba de tais fatos, resumidamente aqui apontados, muitos dos que fizeram e fazem do Espiritismo sua profissão, que com ele amealharam fortuna e fama, conhecem o que se passou, sabem da história do espiritismo brasileiro, mas se omitem, assim como padres que não revelam a profundidade dos conhecimentos a que foram expostos no seminário.

É legítima a prática do Espiritismo no Brasil? A que conclusões se pode chegar frente aos fatos? Para Allan Kardec o Espiritismo é a mais perfeita ferramenta de auxílio a religião, emprestando a esta a explicação racional para uma série de fatos reportados como miraculosos e/ou sobrenaturais, cujo registro histórico não inclui apenas as ações de Jesus, mas o de uma série de indivíduos ao longo dos milênios. No mais, o Codificador deixou esclarecidas as razões pelas quais o Espiritismo não pode ser uma religião quando, em O Evangelho Segundo o Espiritismo estabelece os parâmetros da fé raciocinada, em contraponto a fé religiosa – Allan Kardec não busca conciliar o pensamento racional e científico ao pensamento religioso, deixando claro que a expressão da segunda, que crê sem exigir provas, nada tem que ver com a fé a ser exortada ao espírita, a fé raciocinada, que exige provas para que subsista. Sem o esforço para se saber, ao invés de apenas crer, o espírita se resumiria a uma máquina muito confiante, vítima de doutrinas estranhas ao escopo de princípios da Doutrina, ou tão somente católicos que acreditam na mediunidade e na reencarnação – mas, ora, não é o que se observa atualmente neste ‘movimento espírita brasileiro’? A quem Allan Kardec ombrearia hoje?
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1_Extratos de O Que é o Espiritismo?

O Espiritismo era apenas uma simples doutrina filosófica; foi a Igreja quem lhe deu maiores proporções, apresentando-o como inimigo formidável; foi ela, enfim, quem o proclamou nova religião. Foi um passo errado, mas a paixão não raciocina melhor.

Melhor observado depois que se vulgarizou, o Espiritismo vem derramar luz sobre grande número de questões, até hoje insolúveis ou mal compreendidas. Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência, e não de uma religião; (...)

Eis por que, sem ser uma Religião, o Espiritismo se prende essencialmente às ideias religiosas, desenvolve-as naqueles que não as possuem, fortifica-as nos que as têm incertas.

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